A democracia racial e a terceira via do capitalismo


Jornalistas repercutem cada vez mais a necessidade de um "terceira via" na política brasileira numa tentativa de criar um povo que não vote em Bolsonaro ou Lula, considerados "radicais extremistas". A justificativa é que ambos os candidatos criam uma "polarização" na política, inadmissível para os jornalistas, pois não querem o povo de esquerda e do PT e nem o povo bolsonarista no poder. Querem um novo povo, um povo por vir que não seja mais de esquerda, tão pouco de direita bolsonarista, apenas um povo de direita formado por cidadãos de classe média e medíocres. Querem o retorno da ideia de uma "democracia racial" no Brasil na qual brancos, negros e indígenas viviam harmonicamente num "país tropical abençoado por Deus e bonito por natureza", isto é, um capitalismo cordial como terceira via do capitalismo.

No que diz respeito às reportagens jornalísticas, é preciso tratá-las não simplesmente como se referindo a fatos, mas também a opiniões que são, sobretudo, ficções sobre os fatos, uma narrativa deles, um modo de relacionar os fatos e estabelecer entre eles uma conexão. A ideia de uma "terceira via" é uma narrativa que resulta da opinião de quem não quer mais um governo de esquerda do PT no poder e nem bolsonarista, que relaciona os "dois governos" como fatos criando uma conexão entre eles a partir do "extremismo", da "polarização", do "radicalismo" e, deste modo, produzindo uma ficção que é a "terceira via" assim como foi criada a primeira via, o capitalismo, e a segunda via, o socialismo, e uma outra via, o comunismo, nunca realizada, uma pura utopia.

Somente há uma "terceira via", porque há duas outras vias, e estas não são, obviamente, a da esquerda e a do bolsonarismo, pois estes são apenas representantes das vias de fato, onde a luta de classes acontece entre aqueles que defendem o capitalismo (empresários e os "empregados" pelo capitalismo para evitar o socialismo) e aqueles que defendem o socialismo (trabalhadores que não se submetem a serem empregados pelos capitalistas tendo em vista o comunismo). Uma luta de classe que é, desde o início do capitalismo comercial, uma luta de raças, etnias, gênero e sexualidade, e do ser humano com a natureza, portanto, de brancos e negros, brancos e indígenas, homens e mulheres, heterossexuais e homossexuais, humanos e inumanos ou transumanos envolvendo tons de pele, culturas, gêneros e sexualidades diversas, diferentes. Mais ainda, uma luta de classes que é continental, entre duas terras que se opõem a partir de um oceano Atlântico, a terra ameríndia e a terra europeia, em particular, mas que é também um luta de classes de outros continentes, como a África, muito tempo antes, e uma luta histórica ainda que se busque ocultá-la da história criando terceiras vias históricas.

A "terceira via" criada por jornalistas, neste sentido, é a narrativa de uma "democracia racial" com a qual se buscou criar um "povo brasileiro" como um "povo cordial" que não diz respeito apenas ao Brasil, mas à América enquanto continente, e não os Estados Unidos da América.  É uma "terceira via" mundial na luta de classes que busca criar uma "democracia mundial" com a união de todos os povos de esquerda e direita, capitalistas e socialistas, brancos, negros e indígenas, homens e mulheres, heterossexuais e homossexuais e toda a diversidade de gênero e sexualidade existente num povo por vir. No caso, uma criação americana, propriamente dos Estados Unidos, pois foi a partir dele que surgiu a ideia de uma união dos povos ao "acolher" todos em suas terras, um acolhimento que diferiu em cada povo, mas cujo objetivo era senão criar uma mão-de-obra extensiva para o desenvolvimento capitalista, em particular nos Estados Unidos, pois os estrangeiros, migrantes e imigrantes em seu desespero por trabalho, famintos por guerras locais e mundiais eram a melhor reserva para a exploração do trabalho no capitalismo americano. Todos os países, e regiões e Estados dentro deles, que "abriram" seus braços para acolher estrangeiros, imigrantes e migrantes se desenvolveram rapidamente, pois a força de trabalho é barateada e pode ser formada rapidamente por meios de cursos profissionalizantes ou enquanto exerce o trabalho ilegalmente.

Na medida em que a luta de classes se tornou uma luta de Estados e "mundial" na Europa que a América, e particularmente os Estados Unidos, se tornou a "terceira via" para o capitalismo e socialismo criando um capitalismo cordial que acolhe todos os povos, raças, etnias, gêneros, sexualidades e animalidades em sua narrativa. Criou-se a partir de então a ficção de que o capitalismo da América, em particular o dos Estados Unidos, salvaria o mundo dos "extremismos" do socialismo soviético de esquerda e do fascismo nazistas de uma direita. Em outras palavras, criou-se um meio literalmente de se apagar a luta de classes no mundo, no caso, a luta de classes da esquerda e da direita extremada, criando uma direita moderada como terceira via do capitalismo, deste modo, matando dois coelhos com um cajadada só.

O que se denomina aqui como capitalismo cordial é o resultado direto da colonização com um apagamento não só de uma cultura e de um povo, o colonizado, mas da própria luta de classes no capitalismo. O objetivo é um apaziguamento, uma "harmonia entre os poderes", do empresário e do trabalhador de se revoltar contra ele que é, sobretudo, uma domesticação do trabalhador para além de sua cultura, gênero e sexualidade, como se ele fosse uma folha em branco. Trata-se de criar um novo povo para o capitalismo, um povo por vir absolutamente capitalista, cujo dinheiro não é mais o equivalente universal de troca e, sim, o próprio capitalismo em seu modo de ser vendido como modo de ser americano ou modo de vida americano, o "America Way of Life", novamente, não necessariamente o dos Estados Unidos, ainda que ele seja o modelo, pois se trata do modo de ser cordial americano.

O modo de ser cordial americano do capitalismo é o que busca apagar a luta de classes, bem como todos os seus matizes de raça, etnia, gênero, sexualidade e animalidade criada pela colonização capitalista europeia. Apagar todo o capitalismo europeu que resultou nas duas guerras "mundiais" na Europa e criar um novo capitalismo, o capitalismo 3.0, não mais comercial e industrial, agora tecnológico, o capitalismo que tem sua "alma" no marketing e propaganda das mídias e internet. É por meio da propagação de uma narrativa, e não mais da narrativa em si mesma, no caso, a narrativa da cordialidade americana que o capitalismo busca criar um povo por vir apagando desde o início aquilo que fez com o que a luta de classes se desenvolvesse, a colonização das Américas.

O capitalismo cordial americano é o capitalismo que acolhe todos aqueles que querem fugir da luta de classes que se tornou de raças, etnias, gênero, sexualidade e animalidade, ou ainda, da luta de todos contra todos de Hobbes. Não por acaso Hobbes é o principal teórico atual do capitalismo cordial, pois foi por meio da violência do Estado soberano que o capitalismo se impôs na colonização acabando com a ficção de acabar com a luta de todos contra todos na América e produzir uma "segurança" para todos, esta que é o principal objetivo do capitalismo moderno para além da fraternidade, igualdade e liberdade dos povos como bem expôs Marx a partir da questão judaica. A segurança produzida pelo Estado soberano é para o próprio capitalismo em sua luta de classes e colonização, esta última que é o meio de expropriar e explorar tudo que é vivo para transformar num produto material sem que qualquer luta, isto é, resistência contra si.

O capitalismo cordial americano busca evitar a luta porque a luta representa a resistência ao seu modo de vida americano descendente dos europeus e de toda a colonização das Américas. É a luta de classes que ele busca evitar como princípio mesmo do capitalismo, a origem a qualquer busca apagar de todas as lutas modernas e contemporâneas. Neste sentido, incapaz de uma superação da luta de classes, o capitalismo busca um apagamento da luta de classes, produzido ademais, pelos diversos matizes dela na contemporaneidade. É como se os indígenas fossem exterminados sem a colonização, os negros fossem oprimidos e excluídos pelo racismo sem a escravidão produzida pelo capitalismo, as mulheres fossem oprimidas e excluídas sem o homem capitalista a lhe impedir de trabalhar, preferindo que ela fosse uma serva como dona de casa ou objeto sexual, os homossexuais e diversidade sexual oprimidos e excluídos como doentes sem os heterossexuais liberais capitalistas na economia, porém, conservadores no costume, permitissem o seu desejo de se realizarem e, por fim, a animalidade e vida na Terra morresse sem a matança e transformação delas em objetos mercadológicos em suas carcaças, jaulas ou como produtos do mercado.

Enfim, é como se toda a exploração capitalista como causa de tudo que a modernidade produziu em termos de opressão e exclusão não existisse apesar dos seus efeitos e é senão isto o efeito do apagamento histórico do capitalismo da luta de classes inerente a ele que é um apagamento da diferença em si mesmo e em relação a ele mesmo por meio de uma cordialidade. A cordialidade é o apagamento das diferenças que possam resultar numa luta de classes no capitalismo, por seguinte, em todos os matizes dela. Foi a partir do apagamento da luta de classes no Brasil a partir da cordialidade que se produziu a narrativa de uma democracia racial entre bancos, negros e indígenas, bem como de todas as raças mundiais que imigraram do estrangeiro para o país. Foi a partir do momento em que a luta de classes se tornou uma luta de Estados em guerras mundiais que a cordialidade americana se tornou o princípio do capitalismo mundial, pois na América não havia luta de classes, nem de Estados, muito menos de povos, pois havia apenas "um só povo", "uma só nação", formados por todos os povos e nações, e "um só Estado" a trazer segurança para a América, o Estados Unidos da América, além de "um só Deus", o cristão, a salvar todas as almas.

A terceira via do capitalismo é a via cordial da direita buscando superar a esquerda e a direita extremista capitalista, como se a luta fosse entre a esquerda e a direita extremista, e não uma luta de classes no capitalismo que a direita representa, semelhante ao que aconteceu na Segunda Guerra Mundial a partir da qual a direita capitalista americana se tornou uma alternativa ao socialismo stalinista e o fascismo nazista de Hitler. Contudo, a direita capitalista cordial acolhedora de todos os povos lançou bombas atômicas no Japão, não nos europeus, assim como a direita cordial lança bombas e atira em povos negros e indígenas, bem como em mulheres, LGTQIA+ e não em homens brancos, e destrói a natureza para transformá-la em produto nas Américas. A cordialidade é o apagamento da violência do próprio capitalismo representado pela direita no poder. É um povo cordial o que o capitalismo busca produzir atualmente, acolhedor de outros povos, contudo, por meio da violência, da submissão e exploração de outros povos a si como seus empregados, isto é, servos e trabalhadores ao mesmo tempo.

A cordialidade que criou um "democracia racial" e um "povo americano" não passa, deste modo, de uma ficção capitalista a qual se confunde com a realidade, a ficção de um acolhimento que é, sobretudo, uma violência e exploração daqueles que já não tem mais lugar no capitalismo, pois a luta de classes se tornou uma luta de Estados a destruir toda a vida social e natural. É a ficção de acolhimento dos povos, raças, etnias, gêneros, sexualidade e vidas no capitalismo como se este fosse a salvação de todos eles. É a ficção do Estado soberano como segurança à luta de todos contra todos quando a única segurança que produz é a do próprio capitalismo tentando evitar que a luta de classes se torne uma guerra civil e uma guerra mundial. É a ficção da mídia que busca uma harmonização dos poderes, evitar a luta de classes entre pobres e trabalhadores e a direita que apoiou o fascismo bolsonarista para se proteger da esquerda, do socialismo e do comunismo. É a ficção da própria realidade em sua luta a partir do apagamento da luta nela e do fascismo produzido pela própria democracia na medida em que ela é o direito dos iguais e não dos diferentes, daqueles que vivem na desigualdade produzida pelo capitalismo.

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