Fim dos tempos

março 05, 2021


Existe um momento em que o tempo acaba, por mais que cantemos a plenos pulmões com Cazuza que o tempo não pára. A sensação, porém, não é igual a de outras coisas quando acabam. O fim do tempo é o fim de algo que não acaba, de um fim que nunca chega ao fim, pois o tempo não pára…


Se existe o fim do tempo, este fim nunca chega ao fim, pois o tempo continua. Seu fim não tem fim. É uma sensação desesperadora de que algo nunca vai acabar, que continua perpetuamente acabando. Não por demora, mas porque é algo que ainda está acontecendo. O fim dos tempos é um acontecimento, é o que está acontecendo, não hoje, mas há muito tempo.

Há sempre o fim dos tempos. O momento em que se percebe que o tempo acabou, que não é possível fazer mais nada a não ser esperar que ele, enfim, acabe. Não se trata de aceitar o fim e, sim, de perceber que este é o momento do fim, que o fim acontece, queiramos ou não. É preciso compreender quando o tempo acaba sob pena de ficar perdido num tempo que não existe, na melancolia do tempo que passou, por mais que não tenha passado, que continue passando.

Estamos no fim dos tempos a todo tempo. A cada momento da nossa vida o tempo acaba, mas percebemos pouco isso, a não ser quando temos a percepção clara e distinta, como diria Descartes, de que é o fim, de que o tempo realmente acabou. Ou, como diria Tom Jobim cantando com Elis Regina, é quando vêm as águas de março fechando verão que, por mais que acreditemos que são promessas de vida em nossos corações, não deixam de ser tristes pela destruição que causam em nossa vida, pois É o pau, é a pedra, é o fim do caminho...


O fim dos tempos é o fim de tudo. Não que tudo vai acabar agora como se vivêssemos um apocalipse. É a percepção de que tudo acaba com o tempo, inclusive o tempo, cujo fim produz a sensação de que tudo acabou e não há salvação, pois ninguém está a salvo do fim do tempo. Há o momento em que o nosso tempo acaba como se o tempo nos pertencesse de algum modo assim como pertence a cada coisa que "vive" seu próprio tempo.

Somos seres no tempo, disse Heidegger, mas o tempo só é o tempo em nós, pois apenas em nós ele chega ao fim, apenas em nós ele é, portanto, em si mesmo, percebe-se que acabou. Fora de nós, o tempo nunca acaba. O tempo rejuvenesce com as plantas e animais a cada estação, permanente nos minerais e na Terra, está em constante expansão no universo mesmo que este se retraia, nunca chega ao fim a não no ser humano. É só com o ser humano que o tempo acaba e, consigo, tudo…

Isto quer dizer que não é o ser humano que é destinado à morte como ser mortal e para a qual, desde Platão, a filosofia prepara. É o ser humano que destina tudo à morte, incluindo o tempo. Não são as coisas que acabam, incluindo o tempo, somos nós que acabamos com elas, pomos fim ao tempo de sua existência. Determinamos que o tempo delas acabou, para o bem e para o mal, delas e de nós mesmos.

É preciso que o tempo chegue ao fim, não importa quanto tempo o fim dure e se pense que nunca chegará ao fim. Em algum momento, o tempo deve acabar e somos nós que determinamos seu fim, bem como a nós mesmos com ele, pois não se pode pôr fim ao tempo sem pôr fim a tudo. O fim dos tempos é o fim da humanidade, quando a existência humana chega ao fim dela mesma, por si mesma e não por qualquer determinação divina escatológica como acreditam os religiosos. É o ser humano que determina sua própria morte, ainda que sua morte não seja produzida por si mesmo, pois é ele que diz a si que chegou ao fim, que agora é o fim.

Quando o fim chega, porém, não está no poder do ser humano, pelo menos não no poder de um ser humano pensado idealmente, como se pensa comumente. Não há um fim do tempo humano senão um fim dos tempos humano, pois o ser humano não é algo único e o mesmo, é diferente em cada existência e o tempo difere com cada uma delas. O tempo acaba em cada um de modo diferente ainda que se pense que é o mesmo sempre. A humanidade se renova como o tempo, como tudo na natureza, mas não o ser humano. O ser humano sempre chega ao fim em sua existência. É o seu destino. Ele se destina à morte, por ser incapaz de se destinar à vida.

Se a ética é algo tão complicado na existência humana é senão porque o ser humano se destina à morte e não à vida, por mais que queira viver. O seu desejo de vida se confunde com um desejo de morte, a sua e de outros, e ele se torna irresponsável pela sua vida e a dos outros. O destino aqui não é nada de divino ou uma missão religiosa, é o objetivo, o fim, o que o ser humano define para sua vida, no caso, a morte. Dizer que o ser humano é mortal quer dizer, neste sentido, que o ser humano se destina à morte, que busca a morte em vez da vida, e não é difícil encontrar exemplos atualmente para comprovar isso quando o ser humano nega uma vacina que pode lhe salvar a vida, quando mente de vários modos sobre uma pandemia mundial e para si mesmo dizendo que ela não existe para continuar "vivendo a vida" enquanto se destina para a morte cada vez mais rápido, e também outros, quando com sua negação produz o fim dos tempos de milhares e milhões de vidas pelo desejo dele "viver a própria vida".

Não é possível ser ético sem pensar na morte de si e dos outros, no fim dos tempos, seu e dos outros, no destino da vida à morte. Contudo, não é possível ser ético pensando na morte e não na vida. Ser ético é pensar na vida para além da morte, o que não quer dizer querer viver mais a vida num carpe diem em que a morte é esquecida pelo desejo, nem quer dizer viver mais a vida em "outra vida" na qual não se morre mais, mas também não se vive como se vive na vida. Pensar na vida para além da morte, de modo ético, é pensar em cuidar da vida, a sua e de tudo que vive, para que viva mais não importa de que modo vive. É pensar em não pôr fim a tudo, isto é, no tempo da vida.

Se preparar para a morte é cuidar da vida.  É saber que é preciso cuidar da vida mesmo diante de todo sofrimento. É ser responsável por si e por outros porque a vida dos outros depende de si assim como a sua depende da dele, não importa o quanto se transfira a responsabilidade por sua via a outros, incluindo os deuses, responsabilizando-os pelo que acontece na sua vida. Cuidar da vida é cuidar de si, de seu corpo e dos seus pensamentos, ou ainda, de sua alma e espírito, sem se abster de viver a vida. Cuidar da vida é ser ético. 

Nada demonstra mais o fim dos tempos do que quando há uma total despreocupação com a vida, quando se tem a sensação de que tudo está perdido, que a vida acabou. Não há mais o que fazer, o fim está próximo, Jesus Cristo está voltando. É a sensação de que não importa o que se faça para viver, a morte é o destino. Não se pode mais escapar dela, todas as linhas de fuga foram emaranhadas num laço que nos envolve e já não podemos mais fugir. Não porque não desejamos fugir, mas porque são muitos que impedem a nossa fuga, são muitos os que anseiam pela morte, pela nossa morte, pela morte dos nossos e pela morte de muitos, inclusive a mando de deus que como pai, neste caso, quer matar seus próprios filhos demonstrando assim o fim dos tempos. 

O fim dos tempos é a sensação de que algo chegou ao fim, mas este fim nunca acaba, de um esgotamento de forças diante de um fim que nunca chega ao fim e que desejamos, por fim, que acabe logo. Não é o fim da vida que desejamos, a nossa e de outros, mas que chegue ao fim o que acaba com ela, o que nos faz sofrer, que chegue o fim do tempo disso que é contra a vida ou desses que são contra ela, disso que, no sofrimento, se confunde com a própria vida vista como um sofrimento que queremos que acabe, mas contra o qual devemos lutar para que a vida não acabe, lutando contra todos que querem vê-la sofrer, destinando nossa vida à morte como eles destinam à morte as suas. É preciso lutar contra aqueles que desejam a morte e contra o desejo de morte em nós para nos livrarmos do sofrimento que nos causam. É preciso cuidar da vida, a nossa e de outros, defender a vida contra o desejo de morte ao qual o ser humano se destina, ainda mais quando tudo parece perdido, e são muitos o que destinam sua vida à morte, estimulando todos à morte com suas palavras sem qualquer responsabilidade da vida, a sua e de tudo.

O tempo não pára. Nós que paramos o tempo. É preciso cuidarmos da vida. Nada mais nos resta senão a vida para além do desejo de morte e dos que desejam a morte mais do que a própria vida, e desejam a nossa morte mais do que tudo. O fim dos tempos chegou. Cuidado, há perigo na esquina... Precisamos nos manter vivos. Temos todo o tempo do mundo.



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