É proibido rir

março 07, 2021

Quem já brincou da brincadeira do sério na qual perde quem ri primeiro sabe como é difícil conter o riso. O objetivo é ficar sério diante de outra pessoa, o que parece fácil, mas é extremamente difícil controlar a vontade de rir diante do outro. O mais estranho é que não é preciso o outro fazer nada para rirmos, basta que o riso seja proibido. É a proibição que produz o riso.

Diante de todas as proibições culturais e legais, a proibição do riso é a principal delas. Rir é algo desrespeitoso e ilegal, um desacato diante da seriedade policial, mas também de uma seriedade real. A realidade assim como a realeza não gosta que riam, pelo menos não de si. Mesmo que não se seja sério é preciso manter a aparência de seriedade como no jogo do sério, não podendo rir. Deve-se controlar o riso pondo a mão na boca, mordendo a bochecha por dentro, trincando os dentes, controlar essa força vital que vem não se sabe de onde e nos faz gargalhar.

Nada mais problemático para o filósofo e para o político do que o riso, Sócrates, que o diga, pois, mesmo irônico e tirando do sério seus adversários em argumentos, de certo modo levando ao riso aqueles mais espirituosos ao lerem seus debates, ele não gostou nada da caricatura que Aristófanes fez de si como sofista. Ou, podemos dizer, que Platão não gostou nada disso, de ver seu mestre, o maior filósofo grego até então, comparado àqueles a quem ele o opunha dialeticamente em busca do conhecimento verdadeiro, o de uma Ideia verdadeira para além de uma opinião, por assim dizer, risível. Muito menos gostaram os políticos de Atenas de verem Sócrates ironizando as tradições religiosas e os mitos há tempos cultivados pelos gregos e fazendo, de certo modo, rir aqueles que já não acreditavam nas histórias dos Antigos.

É também antiga a história do segundo livro da Poética de Aristóteles no qual, depois de analisar a tragédia, analisaria a comédia e, portanto, o riso, mas que nunca foi escrito por si, o que alguns muito lamentam. Contudo, talvez devamos nos perguntar se o autor que expressou tão bem a sensação catártica trágica conseguiria expressar de igual o modo o riso e se este não seria senão um riso catártico, isto é, um desdobramento trágico da comédia, um riso trágico, por exemplo, o riso de Édipo rei ao descobrir que matara seu pai, casara com sua mãe e tivera quatro filhos com ela. No caso, o riso de um louco diante da realidade a qual acabava, enfim, de conhecer, oprimido por tudo que tinha feito e do qual buscaria se livrar rindo. Talvez se pense que seria absurdo rir numa situação dessas, mas por que não? O que impede de se rir da tragédia se a comédia é senão o oposto do trágico? 

Ao se considerar o riso como louco diante do que é trágico, o que se demonstra é que o riso é proibido na realidade, ainda mais, quando a realidade se expressa em toda sua seriedade na tragédia, e sua catarse deve ser motivada pelo medo e não pelo destemor. Se o riso é louco é porque é proibido rir diante de uma situação trágica e somente um louco, isto é, alguém que não tem conhecimento ou consciência da realidade poderia fazer isso. Há uma clara oposição do riso à realidade e seria preciso opor todos os conceitos da Poética trágica de Aristóteles para que se pudesse exprimir o riso da comédia, e não se pode dizer, seriamente, que o autor da Metafísica, Ética a Nicômaco e Política, que sustentam ainda hoje a cabeça do Ocidente, fosse capaz se opor a tudo que disse sobre o trágico e esquecesse toda a seriedade de seus escritos.

Fazer rir não é o ofício dos filósofos que se preparam para a morte desde Platão e que negligenciam as paixões do corpo, entre elas o riso. Nada mais estranho, neste sentido, do que a leitura do Banquete de Platão e o Banquete de Xenofonte no qual, neste último, Sócrates é um intrépido personagem motivado pela bebida enquanto no outro um comedido participante que nunca se embriaga e, portanto, não faz rir como Alcebíades ao aparecer bêbado fim do banquete e elogiar o mestre senão por ser tão... sério não cedendo aos seus apelos luxuriantes. O Sócrates de Xenofonte é aquele que Platão em sua seriedade não quer ver como filósofo, um homem comum que ri com seus amigos, pois o filósofo é alguém que não ri.

A proibição do riso, como no jogo do riso, faz senão rir. Eis o problema. Faz rir tudo aquilo que é proibido, tudo aquilo que é sério. O tropeço e a queda, por mais banal que sejam, demonstra algo absurdamente profundo neste aspecto. Sinal de infortúnio, mais ainda, de um infortúnio divino, a queda é o sinônimo de toda a degradação humana segundo a imagem cristão do pecado humano. Rir da queda é senão uma afronta ao desígnio do deus cristão aos humanos, é rir da própria desgraça, rir de deus, de sua autoridade e de sua lei, de sua ordem divina, uma desobediência à desobediência original, um destemor em relação ao poder divino.

Talvez isso nos leve a pensar porque é tão risível o tropeço de alguém e sua queda, pois, nela, é o proibido que nos faz rir. Não se pode rir da desgraça dos outros, da sua queda, que é também a nossa desde o início dos tempos, mas é inevitável o riso, qualquer criança sabe disso. A desordem da queda leva naturalmente, pode-se dizer, à desordem provocada pelo riso. Desordenar é, portanto, o que faz rir, o que faz o riso, e também a função de quem faz rir. Não seguir, naturalmente, a ordem natural das coisas, a ordem dos homens, reis, e deuses.

Eis o paradoxo, que faz senão rir: quanto mais se proíbe o riso, o fazer rir, quem faz rir, mais o riso se produz, mais o fazer rir acontece, mais quem faz rir se potencializa nos fazendo rir, e mais alto o riso produz uma desordem. Quando maior a desordem, maior o riso, quanto maior o riso, maior a desordem. Quanto maior a tragédia, maior o riso diante dela. Há uma oposição do comediante ao trágico ao rir da seriedade do sério.

A cada vez que tentamos limitar com proibições o riso, o que nos faz rir, quem nos faz rir, o riso se potencializa, a seriedade da realidade se torna mais risível, mais se ri da realidade não a levando a sério. O que não quer dizer que a realidade não deva ser levada a sério, que rir da realidade é querer que a realidade não seja a realidade, que ela seja diferente do que é, que o que é trágico não possa ser visto como trágico, e sentido como trágico, em dor e lágrimas. Nisto se demonstra o quanto o riso é incompreendido na realidade e incompreendido aquele que faz rir, o comediante, e também o palhaço, em sua imagem deprimente do comediante, que faz os outros rirem de si, em vez da realidade.

A potência do comediante é nos fazer rir da realidade e não de si mesmo, de sua fraqueza, de sua imperfeição, como nos acostumamos a ver no palhaço depreciando a si mesmo e os outros por questões estéticas. Um rico fazendo rir da condição de um pobre, um branco de um negro, um homem de uma mulher, um magro de um gordo, o belo de um feio, um hétero de um não-hétero, faz rir, mas não é uma comédia, é uma palhaçada. A comédia é rir da realidade, a mais seriamente vivida, não importa se esta realidade é de um rico ou pobre, branco ou negro, homem ou mulher, magro ou gordo, belo ou feio, hétero ou não.

Fazer rir da realidade é o que faz a comédia, o que fez Aristófanes com Sócrates, aquele Sócrates que Platão queria ver na realidade e que o próprio Sócrates queria ver, um velho taciturno, se detendo por horas em seus pensamentos. Não importa se Sócrates era o maior filósofo grego de sua época, não importa se os homens dominavam a cidade, não importa se os homens dominavam as mulheres, Aristófanes se opôs a esta realidade em suas peças As nuvens, As mulheres na Assembleia e Lisístrata. Fazer rir da realidade é o que fazem os comediantes de stand up hoje em dia e comediantes que fazem do rir da realidade ainda sua profissão, não importa a dor que causam, pois a dor faz parte da realidade e é preciso rir dela.

Rir da realidade e não da realidade do outro, bem entendido. Fazer a vida ter graça, independente do que é trágico, e não fazer graça da tragédia do outro. Fazer rir da vida dando-lhe alegria e não fazer rir da vida do outro para lhe dar alegria como um bobo da corte diante de um rei em seu poder real na realidade. Há uma longa tradição no riso que torna todos bobos da corte, palhaços para alguém que tem poder, alguém risível para um poderoso, alguém que faz de si um caricatura, que se disfarça, esconde quem é, para produzir o engano de que é outro, um palhaço, que se traveste para fazer rir de si desprezando sua triste realidade de bobo.

O riso caricatural é um riso do outro, que transforma o outro num bobo diante da realidade, bem diferente do riso comediante, que transforma a realidade em toda sua seriedade em algo bobo. Há uma grande diferença em relação à realidade entre os dois tipos de riso, o produzido pelo palhaço e pelo comediante, pois o primeiro nos faz tão somente esquecer a realidade, como o palhaço esquece a sua própria, a começar por sua fantasia, enquanto o segundo nos faz pensar na realidade, em tudo que ela é, e rir dela, neste sentido, transformando a realidade em nossa mente e não aos nossos olhos.

O palhaço é um bobo da corte, alguém que serve ao rei e se mantém a serviço da sociedade a quem faz rir. O comediante não é mais bobo, não serve a ninguém, e tão pouco à sociedade da qual ele faz rir. Por conseguinte, o comediante é potencialmente mais problemático do que o palhaço, mesmo que se fantasie como um palhaço e pareça bobo como ele. O comediante desafia a sociedade a pensar sua realidade, enquanto o palhaço apenas faz a sociedade esquecer a realidade que vive e, em alguns casos, a realidade de quem vive nela, e faz ri da realidade em que os outros vivem em alguns casos.

Pode-se diferenciar o divertimento que o palhaço produz da comédia que o comediante produz, ainda que ambos façam rir. Em todo o caso, e em ambos os casos, o riso advém senão do que é proibido. Não se pode dizer que não se deve rir de algo, e ainda que esta diferenciação possa nos fazer pensar que o palhaço é menor em relação ao comediante no seu fazer rir na realidade, não é esta a questão, ainda que seja em alguns casos. A questão é que não se pode impedir o riso na realidade. Não se pode fazer o jogo do sério na realidade, pois ele está fadado ao fracasso, ainda que o mais sério vença no final, na realidade.

O riso de quem perde no jogo do sério é o riso do próprio fracasso diante da realidade e não por acaso se diz, neste sentido, que rir é o melhor remédio. Por mais sério que seja a situação e se deva ser numa situação, rir é o que se deve fazer. Há uma ética do riso muito mais do que uma filosofia, pois se a filosofia tem como objetivo a verdade em toda sua seriedade, e a morte num sentido platônico, a ética tem como objetivo a alegria e, por fim, a felicidade da vida, e não se pode ter uma das duas sem rir.

Não se pode fazer uma filosofia do riso sem rir da própria filosofia, do filósofo, de toda sua seriedade e de sua verdade imutável e absoluta. Um filósofo comediante, ou ainda, palhaço, é um filósofo que ri da própria filosofia, que faz pensar na própria realidade da filosofia. É um filósofo alegre e feliz em sua vida e não com a mão no queixo, taciturno, pensando na morte da bezerra.

Se Nietzsche disse que não acredita num deus que não saiba dançar, talvez devamos não acreditar num filósofo que não saiba rir ou fazer rir, pois nem só do trágico apolíneo vive a filosofia, também há o riso dionisíaco.

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