O velho e novo mundo
O mundo é o que compreendemos dele. Quando nascemos, o mundo parece uma novidade. Cada objeto iluminado pelo sol é algo vivo aos nossos olhos infantis. Olhamos para o mundo com espanto começando a filosofar, como diria Aristóteles e tantos outros, pensando na novidade do mundo em cada coisa ao alcance dos olhos e das mãos que nos induz a crer que o mundo é algo novo quando, pelo contrário, é bem velho, e a única novidade nele somos nós.
O nascimento é uma novidade no mundo, uma possibilidade do mundo ser diferente, de tudo nele evoluir ou ser revolucionado. Não somos nós que devemos esperar algo do mundo, uma chance, uma possibilidade, é o mundo que espera isso de nós. O mundo não é um problema, nós que somos para ele. Como no filme Matrix, nós somos o Escolhido, todos nós e não apenas um, pois quem salva a Matrix não é um homem ou ser, mas a conexão de todos os seres num sistema integrado de informações lógicas e afetivas compreendido como o mundo. Ou ainda, como diria Benjamin, é preciso salvar os fenômenos, o que quer dizer senão salvar o mundo. Mas de quem? De nós mesmos. E por quê? Para se manter vivo.
O que o mundo espera de nós é que o salvemos da destruição, pois esta é o destino dele e de todos nós nele, como parte dele, como o mundo tal como compreendido. Se elegemos um salvador para o mundo é senão por querermos fugir à responsabilidade de salvá-lo, de transferir para outros aquilo que somente nós podemos fazer, o que o mundo espera de nós como seus herdeiros. A destruição do mundo é a nossa destruição como seres mortais, destinados à morte, da qual não podemos escapar senão por uma separação da alma imaginada e acreditada por Platão em sua fé órfica, posteriormente cristã, mas também de muitas religiões que fazem com que se busque não uma salvação do mundo e, sim, de si mesmo, de sua alma no mundo desalmado no qual teoricamente se vive, um mundo selvagem ou bárbaro, portanto não civilizado. Isto é, não cultivado pela razão ou pelo pensamento em si mesmo, o pensai por vós próprios iluminista, ou ainda, pelo sentis por si próprio romântico.
Nada mais ilusório, neste sentido, do que o pensamento da separação religiosa e filosófica da alma em relação ao mundo, ou ainda, do homem em seu pensamento racional e sentimento afetivo, buscando em si mesmo e para si mesmo a salvação de si mesmo do mundo diante dele, considerado de perdição ou mera aparência quanto à essência do que se compreende dele. Não é possÃvel salvar o mundo, deste modo, sem salvar a si mesmo, pois somente com a salvação da alma é possÃvel chegar a um mundo novo, que é tão somente inteligÃvel já que não pode ser percebido pelos sentidos, ou seja, não pode ser o que é, de fato, objetivamente, mundo. A ideia de um mundo novo depende, por sua vez, de um novo ser que não é o homem imaginado pelos iluministas e românticos modernos em sua busca incessante de razão e de vida para além do mundo, e que tão pouco é a divinização do homem imaginado pelos religiosos e filósofos que submetem a razão à fé em si no homem em si mesmo como deus.
Este novo ser é um ser que não é separado do mundo em seu pensamento e sentimento, razão e sensibilidade, senão ligado a ele. Um ser que por mais separado que se imagine do mundo, no mundo, para além do mundo, compreende que não está jamais separado dele, e, sim, ligado a ele, que é o mundo e não o centro do mundo. Tal ser, obviamente não pode ser um eu, ou a variação inconsciente dele como um id, nem a superioridade egoica do ser humano em relação ao mundo como um eu consciente de si mesmo, já que não pode ser definido em si mesmo como algo novo no mundo, pois é tão velho quanto ele quando compreende que é o mundo e não simplesmente parte dele, menor ou maior infinitamente. Se há uma novidade no mundo é somente a deste ser que se percebe como o mundo que precisa ser salvo de sua própria destruição, mesmo que isso venha a acontecer, e seja mesmo seu destino.
Salvar o mundo ainda que ele esteja fadado a ser destruÃdo, e nós nele em nossa mortalidade, não é uma ideia pura, isto é, uma ideia possÃvel apenas teoricamente, já que, na prática, nenhuma salvação é possÃvel. Não há nenhuma imaginação, fé e crença investida nisto, já que há a compreensão de fato da destruição do mundo. Salvar o mundo é a compreensão simplesmente de que é preciso fazer com o que o mundo continue vivo não importa o que aconteça amanhã, mesmo, portanto, que o sol não apareça como pensava ceticamente Hume, pois não haverá sol amanhã se não houver quem esteja vivo para vê-lo.
Manter vivo o mundo é manter vivo aquilo que nos faz viver, aquilo para o qual vivemos, aquilo no qual vivemos, que é fundamental, portanto, para nossa vida. É ser responsável pela vida em si que nunca é a mesma na medida em que nós aparecemos nela quando nascemos. Nascemos para a vida e não para a morte. A morte é o que é, a vida é o que pode ser diferente. O ser é para a vida e não para a morte. É preciso compreendermos o mundo para sermos compreendidos por ele. A vida dele depende da nossa vida assim como a nossa depende da dele, pois não há separação da nossa alma com o corpo do mundo. A compreensão de alma é já a compreensão de que o mundo precisa ser salvo em seu corpo e isto não é possÃvel se alma se separa ou é compreendida como separada dele.
A separação da alma em relação ao corpo é o abandono do mundo a si mesmo, à sua própria sorte, sua própria vida como uma coisa da qual nos desvencilhamos por seu peso, pela gravidade que dá à vida que queremos que seja ligeira e leve. É a ideia de que o mundo é um estorvo para a vida e que não precisamos viver nele ou que ele não precise de nós. É a crença religiosa e filosófica mais antiga e arraigada que faz surgir na modernidade o individualismo racional e afetivo de que não precisamos do mundo e o mundo não precisa de nós, de que cada um basta a si mesmo.
Não é possÃvel salvar o mundo compreendendo o mundo desta forma obviamente. O resultado disso é o niilismo religioso e filosófico de que não há salvação para o mundo e para nós nele, o que nos resta é uma ataraxia ou o nirvana, um vazio enquanto espaço que nos separe das turbulências e agitações do mundo, ou ainda, da agitação do nosso corpo e mente nele, de todo o choque de átomos em turbilhão, cada átomo compreendido em si mesmo sem qualquer ligação com outro ainda que se ligue a outros. Nada mais exemplar, deste modo, do que compreender o mundo como se fosse uma tabela periódica na qual cada elemento é visto separado do outro em seu valor, como um mundo a parte, ou ainda, com o mundo à parte.
A ideia de que nascemos para morrer é a compreensão do mundo em sua fatalidade mortal e não em sua possibilidade vivente. É a do mundo como algo já morto porque tendente a morrer e, mais ainda, que deve morrer, quanto mais rápido melhor, para cumprir seu destino. O destino se torna a desculpa para o homem então compreendido como ser que abandona o mundo à destruição e espera a sua própria destruição nele. Há uma compreensão do destino como o meio de se livrar da culpa por não conseguir salvar o mundo, pois considera-se que o mundo é o que é, é isto mesmo, não pode ser mudado, não pode ser diferente. No caso, uma compreensão civilizada do destino do mundo, isto é, uma compreensão na qual o mundo é já algo à parte, um objeto ou coisa percebida seja por afetos, seja por uma razão, do qual se está separado e pode ser deixado de lado como um brinquedo para quem é adulto.
Para uma compreensão selvagem e mesmo bárbara do mundo, que é senão a compreensão de um novo ser de um novo mundo, há muito descoberto, já velho antes mesmo de seu descobrimento, o destino não é o que impede uma ação e uma salvação do mundo, é o que impele a isso, não por alguém, todavia, mas por todos como o mundo a ser salvo. Não há um eu que vá salvar o mundo, tão pouco um eu que vá se salvar dele, muito menos um eu que é o mundo. O mundo é todos aqueles que vivem nele e compreendem que devem salvá-lo para serem salvos, que esta é a responsabilidade de todos diante do mundo, da vida, em si. Para este ser selvagem e bárbaro, este ser novo de um novo mundo, não existe também propriamente outro, o mundo, pois o outro é o ser-do-mundo, aquilo que é o mundo quando se transforma, isto é, quando sobrevive na medida em que se é ele e não um sujeito nele ou sujeitado a ele.
Para este novo ser de um novo mundo, o mundo é, portanto, velho, e é preciso fazê-lo viver em sua velhice. O mundo está sempre prestes a morrer e é preciso mantê-lo vivo. A velhice do mundo é a nossa, ainda que tenhamos nascido nele a um instante atrás, somos o sopro de esperança que lhe resta a cada momento para se manter vivo.
Ao nascermos, herdamos o mundo. O mundo passa ser o nosso mundo. Todavia, podemos nos livrar dele, buscar uma liberdade em relação à opressão do mundo sobre nós, sua gravidade, vivermos a nossa vida e não a dele, traçarmos uma linha de fuga na qual possamos viver alheios à compreensão que temos do mundo como opressão, dor, lamento, tristeza, sofrimento. Buscarmos destruir o mundo e quem vive nele antes de sermos destruÃdos por eles sendo assim livres em nosso pensamento de vivermos livres no mundo e do mundo, num mundo à parte, o nosso mundo, no mundo como nossa propriedade privada.
A ideia de que o destino do mundo está em nossas mãos é a ideia de que podemos salvar o mundo, mas o mundo não pode ser salvo, tão pouco nós nele. Não há qualquer possibilidade de salvação à vista para o mundo. Se dizemos que é preciso salvar o mundo é porque é preciso salvar o mundo da própria ideia de salvação que faz do mundo algo que precisa ser salvo. No limite, a salvação do mundo é não a ideia redentora do mundo por um fé ou crença em algo novo e, sim, a ideia de que é preciso mantê-lo vivo. Manter vivo quer dizer salvá-lo de algum modo ainda que não haja salvação, mantê-lo a salvo, seguro, protegido contra a destruição que é senão a de cada um de nós como ele.
Manter o mundo vivo é não sucumbir a tudo que impele à morte inevitável dele e nossa como ele. É pensar e se deixar afetar pela vida do mundo e nossa a cada momento em que a morte aparece inevitável buscando-se evitá-la, todavia. Vida do mundo e nossa que não é, ademais, a vida de uma cultura humana em particular em detrimento de outras por qualquer costume, dogma, lei, razão ou fé, posto que se o mundo é a compreensão que temos dele, ele nunca é a compreensão em particular que temos dele, a opinião ou o pensamento racional-afetivo que temos por ele. A compreensão do mundo nos compreende e não a nossa compreende a dele. Há sempre algo mais a ser compreendido em relação ao mundo do que sonha a nossa vã filosofia e, mais ainda, a nossa vã religiosidade.
O que compreendemos do mundo é um universo em expansão que se descortina constantemente à nossa frente para além do horizonte de nossa compreensão, um mundo que se estende a cada passo que damos em direção à sua compreensão infinita, já que não limite para ela, e o finito ou limite é apenas o da nossa compreensão em particular dele, como a que temos ao nascer, pensando que o mundo é novo quando é bastante velho e nós também nele. Cada passo que damos neste velho e novo mundo que surge ao nascermos é, neste sentido, um passo que nos leva à queda, por não sabermos como equilibrar o mundo e a nós nele. E mesmo que aprendamos a andar nele, há sempre a possibilidade de queda a qualquer instante sob nossos pés de modo que o corpo e a alma devem manter o equilÃbrio constante com o mundo.
Se há uma queda do céu é porque o mundo caiu e nós com ele. É preciso manter o equilÃbrio do mundo e com o mundo, pois sem isso não há vida possÃvel e nenhum destino poderá evitar a culpa pela destruição do mundo. Tão pouco pode a certeza que se tem de uma salvação da alma com a destruição dele é possÃvel, pois esta certeza somente existe se existir um mundo do qual se livre, se liberte, seja sacrificado, morto enquanto corpo para salvar a alma dos que não se importam com o mundo e a vida e sonham com um mundo além do mundo vivo, um mundo eterno, sem vida.
A vida eterna somente é possÃvel no velho e novo mundo. Fora dele, não há vida. Há apenas a certeza de que se vive, porém, já sem vida, sem mundo, de que tudo está perdido e não há salvação. A civilização chega assim ao seu limite de compreensão do qual não pode mais fugir e o mundo se torna um grande ilusão, uma aparência para os olhos espantados com o mundo novo à sua frente sem saber que é velho, muito velho, mas em vez de ser deixado à morte, é preciso manter vivo. O mundo civilizado é, assim, um mundo compreendido numa eterna ilusão, visto apenas em sua aparência, desprovido de qualquer essência, já que esta é a de uma alma que pensa compreender o mundo, mas não o compreende e vive a ilusão de um mundo novo constantemente mesmo diante de toda a velhice dele. É o mundo moderno em sua ânsia por um mundo novo que destróis a cada momento o velho mundo e se destrói nele por não se poder mais viver, manter-se vivo, e é melhor morrer.
O retorno ao mundo selvagem e bárbaro é o retorno à compreensão do mundo em sua sobrevivência e de todos com ele. É a compreensão de que não se vive sem o mundo é preciso lutar para mantê-lo vivo contra todos aqueles que lutam para destruÃ-lo e se destruÃrem nele. Homens que vivem para a destruição do mundo e no mundo sem se preocuparem com a morte dele e nele. Homens que buscam armas para destruir o mundo em vez de uma cura para seus males. Homens lobos de si mesmos que destroem tudo que veem pela frente. É preciso manter o mundo vivo, protegido bem longe deles.
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