Penso, logo soul
Penso, logo soul. O que soul? O que soul quer dizer? Muitas são as respostas para soul, em várias lÃnguas, vários tons e cores. A última delas foi na animação Soul (2020), de Pete Docter, e nada mais apropriado do que uma animação para nos mostrar soul. Soul que os latinos chamavam de ânima, um sopro, um ar, uma brisa, cuja origem seria a palavra grega anemos e da qual deriva a palavra animus, o princÃpio pensante na alma, esta que é o significado de soul em português, mas que quer dizer também vida.
Penso, logo soul quer dizer, então, penso logo tenho alma, tenho vida, como nos mostra a animação Soul. Mas se pode mostrar a vida, a alma? E para que serve isso? Em sua obra Sobre a alma, Aristóteles diz que "o conhecimento sobre a alma parece contribuir amplamente para o da verdade no seu todo", mas também que "é bem difÃcil alcançar um conhecimento sobre a alma digno de crédito." Como mostrar, então, soul? Eis um problema não apenas para aqueles que criaram a animação Soul, mas também para todos aqueles que dizem, penso, logo soul, tenho alma, tenho vida. Que alma? Que vida? Que soul?
Obviamente, ao dizermos penso, logo soul, pode-se pensar que soul quer dizer implicitamente eu, o sujeito que Descartes encontrou depois de duvidar de tudo menos do que ele era, um ele igual a eu no caso, ele que era o seu eu ou ele mesmo. Um sério paradoxo lógico, pois o eu era ele, um eu que ao pensar em si, isto é, nele, descobriu que era eu, um sujeito pensante, um eu que pensou que ele pensava, logo era. E, assim, da primeira para a terceira pessoa do singular, do presente para o passado, Descartes pensou em sua alma, quer dizer pensoul.
DifÃcil dizer o que Descartes pensoul, difÃcil dizer o que nós pensamos em nossa alma. Muitas vezes nos faltam palavras e é preciso improvisar como se faz no Jazz, música afro-americana que o professor afro-americano Joe Garden na animação Soul descobriu de improviso ao ser forçado por seu pai a ouvir uma banda de Jazz, e se apaixonou de corpo e alma. Improvisar que quer dizer Jazzar para 22, uma alma nunca nascida que encarna no corpo de Joe Garden depois que ele morre e sua alma na tentativa de voltar a seu corpo acaba voltando num gato... Sim, gato, pois os animais também têm almas já dizia Aristóteles há muito tempo: "a alma é, por assim dizer, o princÃpio dos animais". Também a palavra animal vem de anima, alma.
O que acontece em Soul? Fica em Soul. Dificilmente se consegue passar adiante. Não se pode ensinar o que há em Soul, o que é soul, o que soul. Deve-se improvisar. É o que faz Joe Garden com 22, uma alma que não quer nascer, que não quer viver, uma alma que quer "viver" a "vida eterna", porém, sem nunca ter vivido, uma alma que quer ser uma "alma livre" como diz, no caso, livre da vida, de todo o sofrimento de viver, pode-se dizer, assim como Joe Garden quer se livrar do sofrimento de sua vida como músico de jazz que nunca conseguiu ter sucesso e vive de dar aula de música para crianças. Joe Garden quer viver, continuar vivo, 22 não quer viver e adia constantemente seu inÃcio e seu fim na Escola da Vida sem vida. Uma escola onde almas "aprendem a viver" sem viver. Mas como isso é possÃvel? É preciso improvisar. É o que faz Joe Garden com 22, quando se torna seu mentor, quando vai lhe ensinar o que é a vida sem vida, depois que morre, para tentar voltar à vida novamente.
Eis o problema de Joe Garden com 22 que é também o de Soul, problema de criação da animação, problema filosófico da animação propriamente dita e do ensino e aprendizado: como ensinar o que é a vida para quem não vive? E tão pouco quer viver? Como ensinar o que é a vida para uma alma sem vida, portanto, uma alma morta antes mesmo de nascer, que não quer nascer? Como animar uma alma para que ela queira viver?
Toda a animação Soul e a animação se resume num primeiro momento em como Joe tenta animar 22 para a vida, no caso, a vida dele em sua busca por retornar à vida, pois Joe, como Descartes, só pensa nele, em si, no seu eu que ama jazz e só quer ser um grande jazzista, ainda mais que pouco antes de morrer estava prestes a conseguir sucesso. Porém, o objetivo de 22, uma estudante problemática, é não viver e ela há muito tempo reluta nisso até que, de improviso, acaba por viver como Joe, em seu corpo, enquanto ele revive no corpo de um gato, e este é o outro momento de Soul, de como Joe tenta voltar para sua vida em seu corpo e 22 para sua não vida em seu não corpo até o momento, porém, que 22 aprende a viver com Joe. Mas ele não quer saber da vida de 22, apenas de si, e como muitos mentores dela, não quer lhe ensinar a viver, quer lhe dizer o que é a vida, o que é soul, o que ele é e que todos devem ser como ele.
No fim, Soul não é sobre vida e sobre morte, é sobre ensinar e aprender, mais ainda, sobre ensinar e aprender a viver e a morrer, duas coisas que não se ensina e não se aprende, que não se pode ensinar e nem aprender, não se pode mostrar, nem mesmo através do jazz, da arte, do improviso, é preciso viver e morrer para saber. Somente quando 22 vive no corpo de Joe ela sabe o que é viver, somente quando Joe decide morrer por 22 ele sabe o que é morrer. O encontro de Joe com 22 é o encontro da vida com a morte, um encontro de almas, uma viva e outra morta, e nisso consiste senão a animação, no encontro de uma alma com outra, uma viva e a outra sem vida, quando uma alma afeta a outra para além do corpo vivo ou morto.
Fazer com que uma alma se anime quando não quer viver é o mais difÃcil para quem ensina, principalmente para o filósofo, aquele que ensina senão para a vida, o viver, e muitas vezes erra como professor ao pensar em si, no seu eu, no que ele é e não naquele a quem ensina, no outro que, para muitos professores, não quer saber da vida e são maltratados como animais sem alma, sem vida, como 22, depois que é abandonada por Joe e se torna uma alma perdida, sem propósito, sem missão alguma na vida que ela nem viveu ainda, que não sabe quem é, que soul é, ainda que possa ser qualquer coisa que queira, pelo menos em sua forma.
Para ensinar é preciso soul, alma, vida, é o que Joe aprende depois que perde a sua, quando a vida que tanto buscou não faz mais sentido para si em sua alma como a alma de 22 sem saber o sentido da sua antes mesmo de ter nascido. É quando ambos aprendem a ouvir um ao outro em vez de a si mesmos, um querendo viver, outra sem querer a vida, um temendo morrer e a outra temendo viver, que a alma deles encontram um sentido na vida e na morte. No fim, quando suas almas realmente encontram uma a outra em temor, uma pela vida, a outra pela morte, ambos aprendem e ensinam uma a outra o que é viver e o que é morrer, mesmo que nunca mais se encontrem na vida.
E assim, penso, logo soul seria, podemos dizer, penso, logo encontro sua alma na minha.
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