O amor em Soulmates


Quando o comediógrafo Aristófanes fez, enfim, seu discurso na obra Banquete, de Platão, após ser substituído por Erixímaco devido uma crise de soluço que teve, ele não provocou risos em seus ouvintes, pois o que descreveu foi a peça romântica mais trágica de todas, que inspiraria Romeu e Julieta, de Shakespeare, e Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe, uma peça que ainda faz doer e muito a alma de todos os amantes atuais e também no futuro como demonstra a série Soulmates (2020), de William Bridges, que segue a característica trágica do discurso de Aristófanes que é já, senão, o de Platão que faz do comediante um trágico e se vinga de modo velado do que Aristófanes fez com o discurso de Sócrates em sua peça As nuvens, quando inverteu o discurso do mestre de Platão transformando-o num sofista.

Se o objetivo de Platão era, de certo modo, desprestigiar o comediógrafo, o fato é que o discurso de Aristófanes é o mais memorável de todos nesse dia em que os maiores dramaturgos da época, ele e Agatão, se juntaram com outros ao maior filósofo da Grécia antiga até então, Sócrates, e falaram sobre o Amor num symposium após o banquete na casa de Agatão em celebração por sua vitória na competição teatral daquele ano. Mesmo aqueles que nunca ouviram seu discurso, nem tão pouco leram Platão, jamais esquecem a Ideia de uma alma gêmea relacionada ao amor expressa por Aristófanes em poucas palavras, mas de um alcance tão mítico quanto as palavras de Homero em suas obras Ilíadas e Odisseia e tão metafísico quanto a filosofia de Platão, ainda mais que é senão a metafísica da Ideia de Platão, e da ideia de amor em particular, o que Aristófanes expressa em seu mito da alma gêmea no amor.

De modo resumido, sem qualquer pretensão de discursar sobre o amor, Aristófanes narra a história de seres duplos em cabeças, braços e pernas (um homem, uma mulher e um andrógino) que são divididos em seus corpos pelo raio fulminante de Zeus para serem contidos em sua arrogância de se acharem superiores aos deuses, mas, depois de divididos, são recompostos em seus corpos por Apolo. Separados de si mesmos, isto é, do outro igual a si, daquilo que os completa ou complementa, cada ser vaga em busca da parte que lhe falta, o homem do homem, a mulher da mulher e a parte masculina do andrógino da parte feminina andrógina. Assim surge o amor como busca por um outro que lhe completa, complementa, igual a si mesmo, sua outra metade ou sua alma gêmea a qual nunca é completa, mesmo que seja encontrado, pois nunca estas partes separadas se tornam unas novamente, já que parte sexual de um com outro é colocada para trás de modo que seus corpos não se encontram totalmente de frente como é comum acontecer, uma forma de Zeus fazer com que o amem e não um ao outro, ou a si mesmos, de modo único, em arrogância. Porém, o que não foi previsto curiosamente pela métis ou onisciência de Zeus, eis a ironia aristofânica, ou a descrença de Platão nos mitos, foi que os seres humanos assim divididos viessem a sofrer absurdamente e morrer pela falta ou perda do outro igual a si, da sua alma gêmea, o que faz Zeus se compadecer deles fazendo com que o sexo se torne possível ao colocar a parte sexual deles para frente, em vez de para trás, de modo que sua benevolência fizesse com que o amassem.

A benevolência de Zeus não parece ter dado resultado para alguns que, desde então, se amam de tal modo que sofrem até a morte ao serem impedidos de estarem com seu amor, o que faz do amor o motivo trágico por excelência, mesmo que não seja um amor propriamente sexualizado como é em relação às almas gêmeas. Porém, como demonstra o mito de Aristófanes, não existe amor sem que se possa ter sexualmente o outro, isto é, sem desejo pelo outro, sem uma compatibilidade total dos corpos, independente de qualquer perspectiva natural de reprodução. Neste sentido, o mito da alma gêmea no amor não se restringe à heterossexualidade originada da divisão do andrógino em homem e mulher, pois há também o amor na homossexualidade e no lesbianismo, além de outras variações sexuais, e em todos a busca pela alma gêmea.

O que Aristófanes narra em seu mito clássico sobre a alma gêmea no amor é o ponto de partida, senão, da série Soulmates, porém, com contornos ainda mais trágicos, pois a tragédia não é simplesmente não encontrar sua alma gêmea, é também encontrá-la. Há uma problematização do mito que Platão não ousou fazer, por ter uma Ideia de amor clássica, crente na Ideia de uma alma gêmea como a própria Ideia de conhecimento na medida em que, para ele, tudo que conhecemos já conhecemos. A busca do conhecimento é assim a busca de uma alma gêmea perdida cujo encontro possibilita a plenitude de nossa alma não mais dividida dialeticamente e, sim, unida na Ideia de um só ser, único, imutável e permanente.

Tudo no discurso platônico sobre o amor, desde que Aristófanes o pronuncia no Banquete, é sobre uma Ideia inesquecível, a do próprio amor, sem a qual não é possível viver, ou ainda, não é possível viver sem sofrimento, nascendo e morrendo eternamente. Isto porque, sem conseguir ter uma Ideia, ou ainda, sem conseguir ter seu amor na vida, sua alma gêmea, a vida é mutável como tudo na natureza e o ser vive fugazmente com outros seres. É preciso o conhecimento de uma Ideia para viver sem sofrimento, sair do ciclo de vida e morte natural e alcançar a felicidade de uma vida eterna ao lado dos deuses, assim como é preciso encontrar sua alma gêmea, o amor da sua vida, para poder viver feliz, ainda que, no amor, seja difícil viver sem sofrimento.

O que acontece de modo clássico quando se encontra a alma gêmea ou a Ideia é um afeto de alegria ou uma Ideia de felicidade, tal como nas histórias de príncipe e princesa encantada que vivem, enfim, felizes para sempre, ao encontrar o ser amada. Mas e depois do encontro com a alma gêmea? De modo clássico não existe depois, pois ao se encontrar quem ama, ou Ideia, há a plenitude do ser único, imutável e eterno, é o fim da história em toda sua dialética de afetos alegres e tristes, pois a vida se tornou absoluta.

Para pensar este depois, é preciso deixar de lado o mito, a filosofia e a literatura clássica, e mesmo moderna, para compreender o amor de um ponto de vista contemporâneo como acontece na série Soulmates que, se retoma o mito da alma gêmea no amor é senão para desconstruí-lo em contextos diferentes do discurso mítico de Aristófanes e filosófico de Platão e outros filósofos platônicos. A partir desta perspectiva desconstrutivista que a série de certo modo pressupõe, não se trata de negar que exista uma alma gêmea, pelo contrário, se torna bem claro desde o primeiro episódio que a alma gêmea existe e de modo comprovado cientificamente pela empresa Soul Connex, mais ainda, que não é uma ficção científica para daqui a milhares de anos, e, sim, muito brevemente. Mais ainda, como antigamente e de modo clássico, a alma gêmea é encontrada através do olhar, no caso, uma análise da retina, e à primeira vista, quando aqueles que recebem o resultado já se sentem apaixonados por quem deu match como nos aplicativos de relacionamentos atuais.

De um modo ao mesmo tempo clássico, ao resgatar o mito da alma gêmea no amor, e moderno, ao enfatizar a demonstração científica de que existe uma alma gêmea, bem como contemporâneo, ao problematizar o que acontece depois de encontrar a alma gêmea, Soulmates consegue demonstrar em poucos episódios, seis no caso, como a ideia de alma gêmea no amor e a própria Ideia platônica são problemáticas. Neste sentido, há uma dúvida que se mantém em cada episódio colocando em questão não apenas a ideia de alma gêmea, mas também a ideia de que existe apenas uma alma gêmea, de que se é possível amar apenas uma pessoa verdadeiramente. Todavia, o que não há dúvida é que o amor não é simplesmente heterossexual, mas também homossexual e lésbico, ou em qualquer variação possível da sexualidade, tal como no mito aristofânico-platônico.

Além disso, não se nega que exista uma alma gêmea que é o amor da sua vida, mas também que isto seja o mais importante ou o essencial para a vida de uma pessoa ao ponto de a fazer sofrer interminavelmente e, por ventura, morrer. Se há uma tragédia constante na série não é a busca do amor verdadeiro ou de uma alma gêmea e, sim, o encontro dela, quando este encontro desconstrói a aparência do amor que se tinha por alguém, posto em questão pela descoberta da alma gêmea, no sentido da Ideia platônica, seja porque desconstrói a ideia que se tem de alma gêmea, que é de alguém igual a si no sentido da Ideia platônica em sua essência. Mais ainda, desconstrói a ideia de que a alma gêmea é alguém que esperávamos que fosse de algum modo, isto é, a crença de que um dia encontraremos alguém que nos ame como queremos ser amado. Por fim, desconstrói a ideia da própria alma gêmea de um ponto de vista mítico, filosófico e, mais importante, cientificamente, posto que retira da ideia de amor qualquer perspectiva determinista e objetivista demonstrada pela ciência que resulta senão num mito como advertiram há muito tempo os teóricos críticos de Frankfurt.

Colocar em dúvida o amor pelo outro como tábua de salvação da vida ao serem vistos como alma gêmea é o grande mérito de Soulmates ao demonstrar que o amor visto deste modo clássico através de um mito e reforçado por métodos científicos só leva ao sofrimento de um e do outro e a um pacto de morte ou parceria na morte como declaram dois personagens em determinado episódio, relembrando o clássico Romeu e Julieta, para, no fim, perceberem que o que importa é ser parceiros na vida, buscando viver por amor e não por morrer por ele. Neste sentido, a ideia de uma alma gêmea é uma ideia destrutiva, mais do que construtiva das relações, e não por acaso tradicionalmente as culturas não a valorizam, porque a busca incessante pelo amor, como demonstram alguns episódios, leva ao sofrimento e morte dos personagens, ou ainda, à obsessão. Isto não quer dizer, porém, que não se deve buscar um amor na vida ou alma gêmea, algo bem claro na série, porque o amor assim como a filosofia, e Platão soube perceber ou fazer perceber isso, é uma busca constante do que é melhor para nós, do que nos faz feliz, com ou sem alguém ao seu lado, amando-se como outro ou o outro como a si mesmo, mas o que se coloca em questão é até que ponto uma alma gêmea pode nos fazer sofrer na vida.

Todavia, é preciso amar o outro sem que o outro seja sempre o mesmo, único e imutável, uma alma gêmea única, aquilo que esperamos que seja, pois, nem mesmo nós somos o mesmo, ainda mais depois que encontramos nossa alma gêmea, o amor da nossa vida, seja lá onde esteja e com quem esteja, pois é impossível ser o mesmo quando se ama alguém. Que cada um busque o amor onde estiver e como for em sua diferença, eis o que esta série nos motiva a pensar sem que nunca este outro nos leve ao sofrimento ou que nós o façamos sofrer por ser nossa alma gêmea, pois isto não é amor, é obsessão, uma doença pela falta do que se quer ter e não pode ter. Neste sentido, como diz um dos personagens, "Às vezes, escolher o amor é escolher abrir mão.", inclusive de sua alma gêmea se lhe faz sofrer ou faz você fazê-la sofrer.

Nenhum comentário:

Tecnologia do Blogger.