Na calçada de casa...
Tenho um prazer estranho em ver o tempo passar, um costume de ficar horas e horas sem fazer absolutamente nada, absorto em meus pensamentos. Mal de filósofo, pode-se dizer, mas é bem mais do que isso. É um costume muito antigo que vem de ficar sentado na calçada de casa, um costume de gerações passadas que quase inexiste em muitos lugares das cidades urbanizadas em condomínios fechados ou sem se poder sair de casa para não ser alvejado e morto num conflito de traficantes ou destes com policiais. O que é um pena pois se aprende muito na calçada de casa.
Venho de uma geração em que a calçada era a extensão da casa como hoje são as tecnologias de comunicação com ou sem Internet. A calçada era o limite entre o interior da casa e o exterior do mundo, uma exterioridade na qual nos encontrávamos com os outros para conversar, brincar ou simplesmente existir olhando o tempo passar. Era na calçada que aprendíamos um pouco mais sobre nós, em conversas com outros da família, quando o passado vinha à tona entremeado com o presente das notícias, de quem vem e quem vai. Ali, parados, navegávamos entre as memórias e saberes antigos misturados com novos saberes, recém-chegados aos ouvidos, vindo de nossas cabeças. Era na calçada que se pensava na vida.
Passávamos tanto tempo parados na calçada conversando que criávamos raízes, todavia, raízes nômades, pois levávamos a casa para o lado de fora. Cadeiras, televisão, rádio, comida, tudo que pudéssemos tirar de casa estava nela como suporte para as conversas, pois era a exterioridade que buscávamos depois de tanto viver interiormente. Sair de casa era costume em vez de ficar em casa como hoje, obrigados pela pandemia ou pelo medo de cada dia. Se era o exterior que buscávamos, porém, não era para longe de casa, para além da calçada, o que era proibido como os mares abertos para os antigos. A calçada era a margem, o limite, e, para além dela, monstros bradavam nos fazendo voltar como medo para casa: Se sair de calçada, vai apanhar...
Era na calçada que também se namorava e conhecíamos mais sobre nossos corpos querendo não estar ali, buscando algum lugar escondido, deitando um no colo do outro em abraços mal dados de tão contorcidos. A aspereza do chão contrastava com as carícias de mãos e bocas que se perdiam sem se preocupar com a multidão que observava os corpos fazendo casa um para o outro. Difícil saber até que ponto a calçada deixava de ser o exterior de casa para ser o próprio interior dela, invertendo os lugares, se tornando a nossa casa, pois fazíamos tudo nela, até o que não podia, quando, de tanto ver o tempo passar, a madrugada vinha e os olhares adormeciam.
Se a calçada de casa era o limite entre o conhecido e o desconhecido estávamos sempre nos conhecendo nela a cada dia mais um pouco e onde eu me encontrava quando estava perdido na vida, em meus pensamentos, sozinho. Era nela que todos os problemas se desfaziam em pensamentos infindos. A solidão não era problema, pois a calçada estava ali para fazer companhia e para atrair companhias como ponto de encontro com os amigos.
Bastava sentar na calçada para um ou outro chegar, sem precisar marcar o lugar, pois ali era o nosso lugar. A calçada era o lugar da sociabilidade mais superficial e mais íntima, mas burlesca e mais séria, e não precisava de outra diversão, apenas estar ali, entre amigos. E se houvesse o que beber, melhor ainda, pois a calçada é o melhor amigo dos bêbados na vida, está sempre ali para os acolher depois dela perder o sentido. Era na calçada, sozinho ou entre amigos, que descobríamos o que era a vida em seus sabores e alegrias para além das tristezas do dia a dia.
Foi na calçada de casa que praticamente comecei a filosofar quando não tinha mais ninguém para conversar e me tornava pouco a pouco estranho aos outros e a mim mesmo. Apesar de na adolescência não ser mais proibido ir além da calçada, era nela que eu gostava de ficar, sentado no chão, olhando a rua. Os pensamentos fluíam como as pessoas à minha frente indo de um lado a outro, se encontrando e se despedindo, sem darem muito atenção ao que estava em volta. Eram estranhos conhecidos que todos os dias passavam por ali.
Em um dos momentos mais difíceis na minha vida, foi uma calçada que me salvou. Na porta da casa de minha avó paterna Raimunda Branca, no cidade de Pentecoste, adulto eu via o tempo passar como se fosse menino ao lado dela, todos os dias no fim da tarde até a hora dela dormir, e mais um pouco em alguns dias depois que ela dormia. Em silêncio, o mundo se perdia nos nossos pensamentos a não ser quando uma ou outra pessoa cumprimentava minha avó e seguia o seu caminho enquanto nós seguíamos o nosso, parados, ali. Ela já pouco falava e muito se repetia em sua memória e eu só ouvia e respondia a mesma resposta várias vezes, vários dias, enquanto sua memória se perdia junto com seus pensamentos. Em geral, perguntava se meu pai, meu irmãos estavam bem, coisa de família.
Na calçada nos divertíamos como poucos sabem fazer hoje em dia, isto é, sem fazer nada, apenas deixando o tempo passar e a vida existir, um em companhia do outro. A distância de gerações não importava, apenas estar ali. Ao lado dela a vida fazia pouco a pouco fazia sentido novamente para mim depois de se tornar vazia. Aprendi com ela na calçada o que havia perdido, o prazer de simplesmente existir.
Cada dia ao seu lado quando todos os outros não vinham ou se despediam me mostrava o quanto viver, por mais difícil que seja, pode se resumir a sentar numa calçada ao lado de alguém em silêncio com o simples prazer de estar ali. Sentado ao seu lado na calçada me encontrei novamente em mim até o dia que parti, de volta para casa, para a vida que tinha deixado para trás, deixando agora ela sozinha, na calçada, enquanto ela podia. Curado dos males da vida, eu sorria a cada retorno para lhe fazer companhia novamente na calçada até não voltar mais lá e hoje saber que mesmo que volte ela não estará mais ali...
A calçada onde aprendi a existir ao seu lado de modo simples está triste em minha lembrança, sem sua companhia, ao saber que ela partiu para além da calçada, da vida...
Em memória de Raimunda Branca, 93 anos de vida e não sei quantos sentada na calçada...
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