Stop the count: o voto e o jogo democrático


Não há democracia sem voto. O voto é o princípio da democracia. É o que a diferencia de modo singular de outras formas de governo como a tirania, monarquia, oligarquia, totalitarismo, fascismo e ditadura, formas que impedem a participação popular nas decisões da cidade, do Estado e do país através do voto. E, independente de qualquer lei, o voto é obrigatório na democracia.

Há um paradoxo, porém, no voto. Ao mesmo tempo em que é a ação de quem participa da democracia é também a anulação de quem vota, pois as futuras decisões por meio do voto são tomadas por aquele em quem votou na medida em que o voto direto é somente neste momento ou quando cada cidadão vota não em um representante, mas numa decisão que precisa ser referendada pela maioria da população como aconteceu nas últimas eleições dos Estados Unidos sobre diversos tipos de drogas que foram legalizadas em parte ou totalmente em vários Estados. Neste sentido, em geral, são eleitas pessoas para tomarem as decisões que concernem a todos e o fundamento do voto é a confiança de que aquele em quem votou cumprirá o que prometeu em campanha caso eleito.

Apesar da certeza de quem vota, não há, de fato, certeza em relação ao seu voto, seja porque não se sabe se em quem votou vai ser eleito ou se, eleito, cumprirá o que prometeu, não por má vontade, mas porque há muitas coisas que impedem que o eleito cumpra o que prometeu em campanha. O principal problema é que outros foram eleitos justamente para impedir que as promessas de determinado candidato não sejam cumpridas e se fará de tudo para impedir isso. O voto do eleitor é, assim, o pontapé inicial de um jogo democrático que não diz respeito às eleições propriamente ditas e, sim, à toda a democracia, pois tudo quanto diz respeito à vida pública e privada dos cidadãos nela é decidido através do voto daqueles que votam em algum candidato e depois dos votos dos candidatos eleitos como políticos.

A democracia somente funciona se as pessoas puderem votar não só nas eleições como em tudo que diz respeito à sociedade através dos que forem eleitos de modo público ou em qualquer circunstância privada dela. Não importa, todavia, se os eleitos são a favor da democracia ou não, pois pode se votar em alguém que destrua a democracia. Para isto, basta que quem queira destruir a democracia adquira uma quantidade de votos maior do que os que a defendem. Apesar do voto estar diretamente relacionado a uma opinião particular ou verdade universal de alguém, e ser a expressão de uma ou outra, ou de ambas, não é a opinião ou a verdade o que decide no jogo democrático, é a matemática simples da contagem de votos que conta.

É esta fragilidade da democracia a partir do voto senão o temor de vários filósofos ao longo da história e se percebe atualmente quando o futuro das pessoas se resume a uma questão de números ou de algoritmos que definem quem é eleito e o que vai ser feito. Não é possível parar a contagem dos votos, nem recontar os votos sem que se perceba que eles não foram bem contados, o que isto demanda outro problema, pois o bem deixa de ser a expressão de um comportamento excelente ou virtude daquele que age em uma situação problemática ou difícil, ou ainda, algo ideal para ser uma computação dos votos, o ato de saber contar. Tudo que importa para o jogo democrático é isto: a computação dos votos e quanto mais confiável for, melhor, pois se não for confiável, não há jogo democrático propriamente dito.

Não importa, neste caso, se o voto é pelo correio ou pela Internet, o que importa é que se possa afirmar com confiança que determinada pessoa votou em determinada pessoa. É a identidade pressuposta de A=A o que importa, mesmo que A possa ter sido pago por alguma pessoa para votar em A, no caso, pago pelo próprio candidato, ou coagido para votar em A por alguém, no caso, por algum bandido, traficante, miliciano a mando de determinado candidato mesmo que indiretamente. No fim, é a computação do voto de alguém em alguém o que define a regra do jogo democrático, a identidade da democracia e a sua singularidade em relação às outras formas de governo, pois é a única a conceber o voto.

Diante disso, não há nenhuma pressuposição de justiça no jogo democrático pura e simplesmente, pois o pior candidato pode ser o mais votado, desde que votem nele, por direito, pagamento ou coação, não importa as mentiras que diga, o quanto seja preconceituoso, mal caráter e falso fazendo o contrário de tudo que diz ou exatamente tudo que diz dos outros como sendo o mal. A justiça não é o fim do jogo democrático, isto é, não é seu objetivo. Ela é seu princípio ao se dar, por meio de uma justiça distributiva, o direito de todos votarem ou jogarem votando em alguém, bem como não jogarem, se abstendo de votar ou votando branco ou nulo. Porém, mesmo que se decida não jogar, isto é apenas uma ideia, pois, na prática, quem não vota ou vota nulo e em branco faz parte do jogo democrático porque tudo que for decidido posterior às eleições pelos eleitos impacta diretamente a vida de cada um em particular. O que disto resulta uma justiça proporcional também no jogo democrático no sentido de que se cada um sofrerá a ação das decisões tomadas pelos eleitos, não é do mesmo modo, pois depende do quanto os eleitos tomarão decisões em prol de determinadas pessoas, incluindo as que não votaram ou não votaram neles.

Neste sentido, a justiça do meio-termo que é a justiça baseada na equidistância de um ponto a outro, isto é, na igualdade, não existe na democracia, pois a contagem dos votos não pode ser igual, deve haver um vencedor no jogo democrático assim como em qualquer jogo. É a desigualdade que conta na democracia por mais que se queira acreditar pelo direito ao voto que todos são iguais e este é o maior problema em relação à democracia, o fato dela promover a desigualdade em vez da igualdade e da justiça distributiva que pressupõe a partir do direito ao voto ser limitada por uma justiça proporcional em que alguns obtêm não apenas mais votos que outros, mas também mais direitos e privilégios políticos e econômicos do que outros, em geral, os mais ricos ao contrários dos mais pobres. A contagem dos votos pressupõe que uns governem e outros sejam governados e, no fim, é a regra de que o jogo deve ter um vencedor o que conta, que alguns governem e não o povo como se pressupõe a democracia em seu nome.

Se há uma liberdade de participação do povo no jogo democrático a partir do voto, esta é limitada pelo número de votos. O voto de uma pessoa não basta a não ser quando é o voto de Minerva. É preciso que o voto individual se torne um voto em massa para ter algum valor no jogo democrático. É a massa que conta na democracia e não o indivíduo em particular apesar de ser este o que vota nela. Seu voto só importa junto ao de milhares e de milhões de outros votos iguais ao seus. É preciso do voto em massa em um determinado candidato para que seja eleito e aquele indivíduo em particular tenha "voz" no jogo democrático, o que nem sempre acontece, e são muitos os que vivem emudecidos na democracia, principalmente aqueles que vivem à margem dela sem alcançarem votos em massa para terem "voz".

A identidade entre aquele que vota e em quem vota não define a participação propriamente dita do povo na democracia. É apenas sua participação inicial no jogo e que pode ser a única na medida em que não seja eleito aquele em quem vota. Se há o direito e o dever ao voto no jogo democrático, não há nenhuma garantia quanto à participação a partir do voto, pois é a matemática que vai definir isso quando houver o resultado dos votos não só das eleições, mas também dos votos posteriores às eleições. Isto porque não basta eleger um candidato, é preciso que o candidato eleito faça exatamente aquilo que se quer que faça e não traia a confiança de quem votou nele, e nada mais incerto do que isto, ainda mais numa política pluripartidária como a do Brasil em que há dezenas de partidos.

Se o voto é o princípio simples e fundamental da democracia a partir de quem vota em quem nas eleições, ele se torna extremamente complexo na medida em que o jogo democrático passa das eleições de candidatos para a eleições de leis, de decretos, de emendas constitucionais, de decisões em colegiados nos diversos ministérios, secretarias e órgãos de poder e de decisões judiciais nas quais há em geral traição ao voto das eleições. É neste ponto que a contagem dos votos não para e não pode parar no jogo democrático, pois tudo é decidido a partir do voto, e parar de contar põe em risco a democracia em todos os sentidos dela, não apenas no mais primário que é o das eleições.

A democracia é propriamente um jogo de contagem no qual o que obtiver mais votos ganha em qualquer esfera de poder dela. Saber jogar o jogo democrático quer dizer simplesmente aprender a contar os votos, a levar em conta a quantidade de votos necessários para se vencer qualquer eleição e qualquer decisão. Isto é o senso comum necessário para aprender o jogo democrático e todos aqueles que querem realmente ter participação na democracia devem votar em massa em um determinado candidato e em candidatos que votem em massa nas tomadas de decisão das esferas de poder em seu favor, do contrário não terão "voz" querem ter ou mesmo podem ser totalmente silenciado por alguns anos e talvez a vida toda dependendo de quem for eleito e do regime antidemocrático eleito democraticamente para fechar o Congresso e o Judiciário, dando todo poder a militares e ao poder Executivo.

O voto é, portanto, o princípio da democracia, mas também seu fim quando se decide parar de contar os votos dizendo stop the count como dizem os que votaram em Trump, o que quer dizer, literalmente, parar o jogo democrático, algo impossível se se quer que a democracia continue em novas eleições e em todas as decisões depois delas. E por mais que se não se vote, o voto conta como os zeros sem nenhum valor depois do 1 que servem, portanto, para exaltar o poder absoluto mais do que para derrubá-lo.

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