O Gambito da Rainha e seu poder


O xadrez é um jogo de guerra e também de Estado como dizem Deleuze e Guattari em Mil Platôs (1980) e, neste sentido, um jogo de homens, por mais que mulheres participem dele, da guerra e do Estado, e uma mulher em particular, a Rainha, conhecida como Dama, esteja presente nele e seja considerada a mais poderosa de todas as peças, principalmente quando há sua abertura como se pode perceber na série que leva seu nome, O Gambito da Rainha (The Queen's Gambit, 2020), de Scott Frank e Allan Scott, baseada no livro homônimo de Walter Tevis (1983).

Se o xadrez é um jogo de guerra, ele não é uma guerra. A guerra é uma demonstração violenta de poder dos homens entre si por meio de combates corporais e de armas, hoje em dia, as mais tecnológicas e destrutíveis possíveis. No xadrez, porém, a única arma utilizada, por assim dizer, é o pensamento, e a rainha como a principal peça do jogo é também a principal arma, a mais poderosa. Ela é, além disso, a única peça feminina neste jogo jogado majoritariamente por homens assim como acontece na guerra e na política de Estado, um dos motivos pelos quais a minissérie O Gambito da Rainha, ser tão importante para compreender a presença de uma mulher nele e seu poder.

Criado há milhares de anos, o xadrez é um dos jogos mais tradicionais do mundo cuja origem histórica remonta ao século VI na Índia como uma derivação do antigo jogo chaturanga. A rainha não existia no jogo indiana. Ela surge na Idade Média quando o xadrez se torna conhecido na Europa a partir do século X ao tomar o lugar do vizir, um conselheiro, ao lado do rei, com o mesmo o mesmo movimento em diagonal do vizir. O nome Rainha, porém, é utilizado apenas nos países de origem protestante, como Inglaterra, para não se identificar com a referência à Nossa Senhora que possui nos países católicos originalmente, chamada de Dama utilizado particularmente pelos profissionais do xadrez. É somente no século XV quando o xadrez passou a ser jogado com as regras atuais que a Rainha ou Dama adquire um movimento diferente do diagonal do vizir, que passa a ser representado pelo bispo, podendo ela a partir de então se mover em qualquer direção.

Segundo Deleuze e Guattari, o xadrez é um jogo de profundidade e de interioridade e o seu objetivo é interiorizar o acaso, o que pressupõe ter o poder de qualquer situação que possa resultar numa destruição da ordem. Não por acaso é, assim, um jogo de guerra do Estado, pois o Estado busca, por meio da guerra, evitar a destruição de sua ordem interior produzida por inimigos externos ou internos. Desse ponto de vista, o gambito da rainha* é a sua declaração de guerra, pois é uma forma de abertura no xadrez com a qual se busca obter o poder do centro do tabuleiro, isto é, a centralidade do poder, além de dar uma liberdade de ação para a rainha no início do jogo.

O gambito da rainha é uma forma de engano, no qual o peão na frente da rainha é adiantado pelas peças brancas para se obter uma abertura na defesa adversária das pedras pretas que podem aceitá-lo ou recusá-lo trocando o seu peão por outro. Na história do xadrez, esta forma de abertura é uma das mais antigas, conhecida desde 1490, porém, não foi muito utilizada até 1920 quando se tornou popular entre os enxadristas, em particular com o mestre cubano no xadrez José Raúl Capablanca no seu jogo contra Alexander Alekhine em 1927, o qual perdeu, depois de ser campeão de xadrez desde 1921. Vista como forma de ganho de mobilidade e eficiência, o gambito da rainha é utilizado para que as peças brancas obtenham mais facilmente o poder sobre as pretas que, de certo modo, se descontrolam diante do poder desta jogada e foi para evitar este descontrole que se criou a defesa indiana deslocando o ataque central das brancas com um deslocamento de uma defesa lateral das pretas, utilizando o cavalo.

Ao possibilitar o movimento da rainha branca, o gambito da rainha também expõe o seu poder que é o maior de todas as peças do xadrez, uma junção do poder das outras peças com exceção do cavalo, que pode saltar sobre as peças e mover em L. Assim como o rei, ela pode se mover em qualquer direção, mas este somente pode se mover uma casa por vez, enquanto ela pode se mover várias casas de uma vez. Neste sentido, a rainha gosta de andar, é uma peça nômade, enquanto o rei gosta de ficar parado, é uma peça sedentária e, como peça mais importante e central do xadrez é o que torna este um jogo sedentário como o Estado, com seu poder centralizador e centralizante. Um poder que ele deve exercer como homem sobre a rainha, mas principalmente como político, pois ela representa no xadrez o poder do povo, no caso, seu patriotismo ou nacionalismo, e é deste modo mais poderosa do que o rei segundo o brâmane Lahur Sessa, quando este explica as regras do xadrez ao rajá Iadava, em O homem que calculava, do escritor Malba Tahan.

É mais poderosa — argumentou Sessa — porque a rainha representa, nesse jogo, o patriotismo do povo. A maior força do trono reside, principalmente, na exaltação de seus súditos. Como poderia o rei resistir ao ataque dos adversários, se não contasse com o espírito de abnegação e sacrifício daqueles que o cercam e zelam pela integridade da pátria?

A partir disso podemos perceber a importância da série O Gambito da Rainha em vários sentidos ao contar a história de Elizabeth Harmon (Anya Taylor-Joy), filha de Alice Harmon (Rebecca Root) e pai desconhecido que perde sua mãe com 9 anos num acidente de carro e vai para um orfanato, onde aprende a jogar xadrez com o zelador Mr. Shaibel. É a relação inevitável da rainha com Beth que torna esta minissérie impressionante ainda mais pelo contexto histórico em que é retratada, a década de 60, quando mulheres são educadas para serem damas, mas não para serem rainhas. Pois é a jornada dela para se tornar uma rainha do xadrez que faz desta série tão profunda e interior como este jogo, pois coloca em questão o poder da mulher como rainha no xadrez e entre os homens como jogadora de xadrez, na guerra e na vida cotidiana, além de subverter a interioridade do próprio jogo em direção a uma superfície exterioridade.

Como jogo de guerra, de Estado, sedentário, de profundidade e interioridade, o xadrez não é um jogo para mulheres e a presença da rainha é algo que foge à sua lógica do jogo que é masculina deste modo. A rainha não ocupa um lugar ao lado do rei aconselhando este como vizir, e, sim, ocupa um poder paralelo e descentralizador do poder do rei ao ser mais rápida do que ele seu movimento para qualquer casa do jogo. A rainha é nômade e, como tal, é uma máquina de guerra que concentra em si os poderes de todas as outras peças, com exceção do cavalo, pois não têm o poder de saltar as peças adversárias. Assim como o rei, ninguém pode chegar perto dela, e somente se pode obter poder sobre ela se resguardando com outra peça.

Com seu poder de se deslocar rapidamente para qualquer parte do tabuleiro é um jogo diferente o que joga, um jogo nômade em vez de sedentário como é em geral o xadrez. Um jogo sentado, com o deslocamento lento da maioria de suas peças, que buscam se fixar numa determinada casa do tabuleiro, esburacando-o, por assim dizer, de tanto permanecerem em determinados pontos sem se moverem. O que torna o xadrez um jogo de paciência, interiorizante, em que cada adversário busca mentalmente surpreender o outro com um movimento de peças que lhe permita vencer a partida antecipadamente, até mesmo antes de qualquer movimento ou sequência de movimento, já se antevendo a derrota.

Por mais que se possa mover rapidamente as peças quase sem pensar jogando um xadrez rápido como acontece em alguns momentos da série, o movimento é parado a todo instante ao se fixar as peças em uma determinada casa, e muito lento no caso dos peões que são a maioria das peças. Com a rainha, assim como com o bispo e a torre, o xadrez ganha mobilidade e, com isso, superficialidade, pois os movimentos dela são rápidos, saltando várias casas rapidamente, podendo estar ora aqui, ora ali, noutro ponto. O poder de movimentação da rainha, porém, é muito maior do que o do bispo e da torre nesse caso, pois não é apenas em uma direção diagonal ou perpendicular em linha reta que ela avança é em todas as direções possíveis em linha reta a partir do seu lugar.

A rainha não anda, ela corre na maior parte das vezes e este é o seu poder: correr, se movimentar constantemente, fluir, ser um fluxo como máquina de guerra no tabuleiro diferente das outras peças que são aparelhos de Estado a proteger o rei em seu "poder" ou, mais ainda, em sua ausência de poder, pois ele é impotente, um covarde que foge constantemente à batalha, à guerra, se escondendo por toda a parte do tabuleiro e só ataca por reação, passivamente. O rei é passivo, paciente, a rainha é ativa, agente. Seu poder está na ação, no ataque, no movimento e não na inação, defesa. A rainha não se defende, não foge, está sempre predisposta a agir, a atacar. A rainha é é uma guerreira, muito mais do que qualquer outra peça, a representação da guerra propriamente dita no jogo de xadrez.

Se a rainha representa o patriotismo do povo, como diz a história mítica de origem do xadrez, em referência ao rei como pai, pater, em seu poder na família e no Estado, mas ela representa antes o nacionalismo, a defesa da nação em referência à Mãe Terra. Se representa o povo que vai à guerra pelo rei e o Estado não é como este, pois seu deslocamento é nômade como o de uma multidão que avança em batalha em corpo, alma e armas enfrentando o adversário e também a morte, corajosamente, sem muitas vezes tempo para pensar e sem nem mesmo pensar. E nisto ela destoa do xadrez como jogo utilizado para aprimorar a mente, de profundidade, pois a guerra que representa não acontece no campo de batalha senão antecipadamente a partir de uma estratégia de ataque, assim como a jogada do gambito da rainha. Na guerra não se pode pensar, deve-se pensar antes dela, saber exatamente o que fazer antes de se pôr em ataque sem pensar como uma máquina de guerra, como mulher, como rainha.

São os homens que pensam na guerra e vão para ela de um modo geral, assim como vão para o trabalho e pensam no trabalho. As mulheres ficam em casa de um modo geral, não pensam na guerra e não vão para ela. Sua batalha é em casa como donas de casa ou damas. Não devem pensar, somente obedecer. Não podem se mover, sair de casa. Devem ter seus passos controlados e, sobretudo, não devem ter poder, isto é, não podem ser rainhas.

É contra toda esta lógica que Beth se revolta no xadrez que não é difícil para ela aprender por ser filha de uma matemática e por a perda dos seus pais impor a si uma interioridade afogando-a cada vez mais em si e fazendo-a ir mais longe como jogadora de xadrez. Porém, como a rainha do xadrez, ela é inquieta, em constante movimento, jogando rapidamente até ser limitada em seu poder de movimento, represada em seu fluxo de desejo de poder. Se há uma interioridade em Beth necessária para ser uma mestra do xadrez já não é a masculina, impassiva e fria durante o jogo, imóvel como o rei no tabuleiro, movimentando-se compassadamente. Não se trata de um interior fixo, a partir de um ponto central a partir do qual se obtém poder como é o interior de um Estado concentrado em um determinado ponto. É um interior fluido que não se detém a não ser quando é represado, limitado por todos os lados, controlado constantemente em sua agitação e variação contínua como Beth em busca de controle sobre seu fluxo de desejo, de pensamento e de poder antes de jogar, antes de controlar o jogo.

Difícil controlar o movimento da rainha, de Beth, e cada vez mais é devido isso que ela se afoga em seu interior, buscando no controle de sua fluidez uma forma de se controlar, ou ainda, no vício de calmantes e de álcool, uma forma de controlar o fluxo do seu desejo e pensamento de ser a rainha do xadrez. Todavia, em sua busca de controlar este fluxo interior é uma mudança no jogo de xadrez o que acontece, pois, ela o inverte na sua superfície que deixa de ser de profundidade, visto de cima para baixo, para ser um jogo de altura, visto de baixo para cima, imaginado o tabuleiro no teto do quarto do orfanato primeiramente, depois na casa de sua mãe adotiva e em qualquer lugar a partir de então sob o efeito de drogas. Beth transforma o xadrez num jogo do exterior e não mais do interior, ou ainda, de uma exteriorização do interior em vez de uma interiorização dele, mudando radicalmente o modo como o jogo é visto. Visto de baixo para cima, o xadrez deixa de ser um jogo de gravidade para ser contra ela, com suas peças suspensas no teto, desafiando a lei da gravidade a todo instante assim como Beth desafia os homens com quem joga e o mais temido, Borgov. Em vez de controlar seu fluxo de desejo e pensamento de poder num interior como convém segundo a lógica do desejo e pensamento masculino no xadrez de modo passivo e paciente, Beth libera este fluxo ao exterior, faz do exterior o fluxo do seu desejo e pensamento de poder no xadrez virado do avesso em sua superfície, invertido.

É quando Beth desafia a lei gravidade que se torna senão a rainha do xadrez e desafia a lógica interiorizante dos homens de Estado que buscam capturar a máquina de guerra feminina para si, ter poder sobre ela. A velocidade do movimento da rainha, de Beth ao pensar e as jogadas, é um desafio à gravidade masculina, uma suspensão da gravidade a partir de um movimento rápido, contínuo, como a ação do guerreiro em ataque numa batalha. Se o poder dos homens no xadrez é estável, Beth é aquela que o desestabiliza desde o princípio quando começa a jogar com seu professor, Mr. Shaibel. Beth é a mulher rainha guerreira que vai para a guerra não contra outro Estado, outro povo, por patriotismo, mas contra os homens. A sua guerra não é em defesa do rei é em defesa de si como mulher capaz de jogar xadrez como os homens e melhor do que eles em qualquer lugar.

O campo de batalha de Beth é toda a sociedade machista de sua época, o machismo dos jogadores de xadrez e também no jogo de xadrez, desafiando os padrões convencionais de etiqueta feminina definido pelos homens para as mulheres como damas e aceito pela maioria delas. Seu desejo não é das outras meninas, tão poucos das adolescentes de sua época, ou ainda, da sua mãe que quer viver a vida com um homem, uma vida de aventura masculina. Beth deseja ser a rainha do xadrez e não deixa que nenhum homem enquanto criança, jovem ou adulto se ponha em seu caminho, ainda que a desestabilizem na caminhada e os deseje em amor. Mas é como rainha que os deseja, sem perder de vista o que quer ser na vida, a maior jogadora de xadrez.

Que a história de Beth em O Gambito da Rainha seja uma ficção e que, neste sentido óbvio, não é a realidade, como insistem em ressaltar ridiculamente diversos críticos da série, porque na realidade os homens e os jogadores de xadrez não a tratariam assim, não deixa de ser o ideal na realidade, que mulheres possam ser mestras de xadrez como os homens, campeãs de xadrez como eles e que, sobretudo, as tratem com o devido respeito como deve ser tal como acontece na série. Que se critique esta série por não ser a realidade é senão a forma mais clara de demonstrar como é a realidade que está errada e quem pensa a realidade deste modo que é senão o da lógica masculina do xadrez, da guerra, do Estado, da interioridade, da profundidade, da gravidade. E, definitivamente, não é esta lógica masculina de pensamento do xadrez e da sociedade na realidade na qual a mulher é passiva, submissa, oprimida e violentada mesmo como dama na realidade o que O Gambito da Rainha senão demonstra, ainda bem, pois não é de mais aias que se precisa no xadrez e, sobretudo, na realidade.

* Apesar do nome profissional ser o gambito da dama é utilizado aqui o termo gambito da rainha seja por conta da série, seja por conta da análise que faz deste nome a partir da série.

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