Milhares de mortos...

novembro 02, 2020

A morte de um ser é única, de milhares de seres não. Se cada vida importa em sua morte, na morte de milhares de seres, a vida perde importância. A vida de uma pessoa deixa de ser insubstituível para ser substituída por outras. Do uno ao múltiplo é toda a lógica da morte assim como da vida que muda na celebração do
dia dos finados.

Na lógica do uno, é a vida que conta na morte. Celebra-se a vida do morto contando histórias dele, lembranças de seu nascimento, de seus primeiros passos, de quando começou andar, correr pela casa, memórias de uma infância perdida que são reencontradas na morte. A elas se juntam memórias de quando era jovem e foi conhecido por este ou aquele amigo, amiga, namorado, namorada, marido, esposa, os primeiros encontros, os primeiros olhares, risos de um dia, lágrimas de outro, risos e lágrimas de um mesmo dia, afetos de alegria e tristeza que se alternam na vida e se juntam na morte de modo singular. Toda a vida se torna singular, com uma multiplicidade de singularidades que vêm à mente ao menor pensamento. Lembra daquele dia… Se torna impossível pensar sem que se lembre de um detalhe que se torna imediatamente o mais importante de todos mesmo que tenha sido o menos importante quando aconteceu, pois a vida em seu menor detalhe se torna importante no momento da morte.

Na lógica do uno, cada vida tem sua importância na morte e o impossível acontece, a celebração da vida do morto. Vida e morte de unem e já não são vistas como opostos. A vida está presente na morte e a morte na vida. O corpo morto vive na mente de cada pessoa e já não se pode pensar em sua morte sem se pensar na sua vida. A sua morte é sua vida de modo imanente, absolutamente, uma vida… 

Uma vida porque não pode ser substituída por nenhuma outra mesmo que em desespero se deseje isso, pois a morte é única como a vida é para cada ser. Cada ser é vida e morte e este é o princípio da lógica do uno, superar toda e qualquer contradição, qualquer oposição, até mesmo entre a vida e a morte. E é na morte que esta lógica se torna mais presente, quando toda e qualquer contradição se torna impossível, pois é impossível a vida contradizer a morte. A vida deve morrer e não se pode evitar isso.

É o princípio da vida de um ser que, um dia, sua vida encontre a morte, por mais doloroso que seja esse encontro, o pior encontro da vida. Quando ela já não se encontra mais em lugar algum onde se pudesse encontrá-la, quando é perdida totalmente de vista, deixa de ser uma exterioridade no espaço e se interioriza totalmente na lembrança. Sem jamais poder vista, somente revista, sem jamais viver, apenas reviver na mente de quem ainda vive.

No encontro da vida com a morte, portanto, há uma união de vida e morte no ser único que se torna uno e une todos os seres em suas vidas únicas na lembrança do encontro deles também com a morte, com a mortalidade de todos os seres vivos que é celebrada entre risos e choros na morte da vida de um único ser que une todos os seres.

Na lógica do múltiplo, tudo isso se perde, pois a morte perde a importância e, com ela, a importância da vida. Já não é possível pensar na morte e tão pouco na vida. Os milhares de mortos não contam histórias, são contados na história como um número, uma quantidade de mortos sem qualquer lembrança de suas vidas, de quem eram, o que fizeram. São notícias que se têm deles e não histórias de sua vida, por mais destaque que se dê a eles na capa de um jornal tentando-se colocar os milhares de fotos ou nomes deles sem nunca caber a todos. Com os milhares de mortos há uma redução da importância da morte assim como dos mortos na capa de um jornal e se a vida importa é a de uns mais que outros para chamar a atenção das milhares de mortes, não dos mortos.

Não é a morte de uma vida que é celebrada é a de milhares e isso é uma contradição da morte, pois não se pode celebrar milhares de mortos, contar a vida de cada um deles, somente contá-los como números ou narrar seus nomes como se contasse os números, ditos um a um numa lista infindável e intolerável de ser ouvida, que destrói toda e qualquer lembrança dos mortos, pois ao serem contados, não se conta suas histórias, e se são lembrados é apenas no nome: Sim, morreu, é um dos mortos. Lembra dele? Não, só de nome.

A celebração de finados não tem fim quando são milhares de mortos e tão pouco a dor na contagem e leitura dos nomes dos mortos. Não há alegria na morte dos milhares de mortos, apenas tristeza, uma infinita tristeza a cada número-nome que se segue, um após o outro, de uma vida após a outra da qual não se terá a menor lembrança para as milhões de vidas ainda vivas em sua alegria, sem dar a mínima importância para os milhares de mortos, para a morte e para a mortalidade de suas vidas. Nas milhares de mortes, a vida se separa da morte assim como a alegria e a tristeza, pois enquanto uns riem em diversão, outros choram sem consolo. Os milhares de mortos não unem ninguém e é como ninguém, um indigente que cada um dos seres vivos morre, sem importância, nem mesmo para quem chora os milhares de mortos sem saber quem são cada um deles: Não importa os milhares de mortos, é a vida que importa.

Nas milhares de mortes, cada vida é reduzida à nada no pensamento. Não há a menor importância dela para aquele que vive e segue sua vida e diz para seguir a vida, pois a vida de uma pessoa já não tem importância nas milhares de mortes. É apenas mais uma ou menos uma para se importar, uma vida pensada de modo econômico, que dá mais ou menos preocupação, mais ou menos ganho para aquele que a conta aos milhares. Devo me preocupar? Morreu. E daí?

Os milhares de mortos não contam apesar do aumento da conta, pois quanto mais se conta menos se conta sobre suas vidas e menos se quer contar sobre elas. Melhor esconder, não contar para ninguém quantas pessoas morreram. Para que contar? Lembrar os milhares de mortos? Já morreram. Melhor esquecer. É o esquecimento que conta nos milhares de mortos e é lembrado a todos se dizendo para esquecê-los.

Esquecer os mortos é o que se faz quando são milhares de mortos. Nem mesmo se sabe quantos morreram, apenas milhares. Também a morte é esquecida. Perde-se a conta das mortes, do morto, da morte e a própria conta deixa de ser importante assim como a vida de cada morto. Ao se atingir mil mortes, a vida passa a ser esquecida em vez de lembrada, não morre mais para aqueles que querem fazer esquecer os milhares de mortos.

É de modo assustador em vez de celebrada que a morte aparece quando é aos milhares e é com temor que se lembra dela. O medo da morte toma conta da vida e a vida de cada um volta a ter importância, mas não dos milhares de mortos. Diferente da morte no uno em que cada vida dos milhares de mortos importa e que cada uma reúne todos os seres, no múltiplo, apenas a vida de quem vive importa e separada da vida de todos os outros seres. Não importa os milhares de mortos e a vida deles, é a minha vida que importa… eu quero viver e não morrer.

Com os milhares de mortos, é a contradição de uns com os outros o que acontece que já não se reúnem na morte e tão pouco na mortalidade, pois os que vivem esquecem que vão morrer e até mesmo negam isso. Não morrerão. Serão salvos por uma cura miraculosa e pelo deus de sua religião. Só aqueles que não acreditam na cura que eles têm e no deus em que acreditam é que morrerão, eles viverão eternamente. Não há morte para eles, só para os milhares de mortos que morreram senão porque deus quis, pois a vida deles não têm importância assim como tem para deus a vida daqueles que acreditam nele.

É a lógica da morte que se perde, assim, em seu sentido fúnebre com os milhares de mortos. Já não faz sentido a morte para aqueles que vivem, a não ser a sua. A lógica do múltiplo é a da perda de sentido e de toda a razão, quando o múltiplo se opõe ao uno e destrói seu sentido que é senão o sentido de uma vida, sua imanência absoluta. Com os milhares de mortos, a morte se torna uma transcendência da vida dos que estão vivos, algo distante e separado da vida deles, se torna algo, ademais, a partir do qual os vivos ascendem em sua vida, adquirem uma potência maior de vida, passam a viver mais para não morrer, sublimam a morte na vida com os milhares de mortos que lembram aos vivos para viverem. É o niilismo do pensamento que acontece deste modo, quando a vida transcende a morte nas milhares de mortos e os vivos passam a viver mais a cada morte. Celebra-se a vida, mas não dos mortos, pois a deles não têm importância para os que estão vivos e para os quais o que importa com as milhares de mortes é viver a vida, o presente e não o passado, a alegria e não a dor, e para isso é melhor não pensar nos milhares de mortos, mesmo que sejam milhares e milhões já.

Não se pode celebrar a vida sem a morte. Quando se celebra a vida independente da morte a vida perde sua importância, inclusive de quem vive sua vida sem se importar com os milhares de mortos, pois sua vida também não importa. A vida de quem vive independente da morte dos milhares de mortos também se torna insignificante, ninguém dá a menor importância para ela. Passa a ser desprezível e não apenas desprezada como a dos milhares de mortos que despreza.

É a substituição da vida pela morte o que acontece com os milhares de mortos e não mais uma união da vida com a morte. Todos morrem com os milhares de mortos. Toda a vida passa a ser desprezada. Qualquer ganho e potência de vida que alguém adquire com as milhares de mortes é já um ganho da morte. É a morte que ganha mais uma vida mesmo viva, pois já está morta, é uma morta-viva, um fantasma que perambula pela terra sem descanso, um zumbi aterrorizante.

Os que vivem da morte de milhares de mortos, que aumentam seu poder econômico e político na vida com os milhares de mortos já estão mortos e não serão celebrados em sua vida nem mesmo na morte como os milhares de mortos. Sua vida deixa de ter importância e é desprezada antes mesmo de morrer e se juntar aos milhares de mortos. Intolerável em seu nome antes mesmo de seu nome ser dito entre os outros, contado entre os milhares de mortos. Sua vida não conta antes mesmo de ser contada. Ninguém a quer contar, sua história será esquecida mais do que a dos milhares de mortos e se se junta a dos deles é só por contar, porque, no fim, faz parte da conta e seu nome é dito apesar do desdém com o qual dito, dito e ao mesmo tempo desdito.

No dia dos finados, os milhares de mortos não podem ser celebrados. Mais do que uma contradição é algo impossível e desumano. Celebrar as milhares de mortes é o fim da humanidade e da vida. Nenhuma vida pode ser esquecida mesmo quando são milhares de mortos. Não se pode seguir a vida simplesmente depois de uma morte, muito menos depois de milhares de mortos, que jamais podem ser esquecidos mesmo que se diga para esquecê-los.

Aqueles que dizem para esquecer os milhares de mortos pelo fascismo na guerra, os milhares de mortos pela ditadura militar, os milhares de mortos pela violência dos policiais militares, os milhares de mortos pela miséria e pela fome a cada dia sem assistência do Estado e os milhares de mortos este ano pela Covid-19 é que devem ser esquecidos e nunca mais serem lembrados enquanto viverem e depois de morrerem.

No dia de finados, apesar de se dizer e se pensar que milhares de mortos não importam, a vida de cada um deles ainda importa, nem o tempo e ninguém fará esquecer os milhares de mortos que vivem ainda na nossa lembrança.

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