Uma vida...

 


A imanência: uma vida... Este foi o último texto de Deleuze publicado. O artigo indefinido uma quer dizer a singularidade da vida indefinida em sua imanência, no que é, enquanto vivida, mas que se define enquanto é vivida, experimentada e é valorizada pela experiência adquirindo uma qualidade. Uma quer dizer também uma quantidade, uma vida definida de modo único que não se repete senão de modo diferente como outra vida. Não se pode, deste ponto de vista lógico, viver duas vidas, apenas uma de cada vez sem qualquer analogia, comparação, semelhança, ou juízo de valor entre uma e outra.

Não importa quantas vida vivemos e revivamos, é apenas uma vida que vivemos. Por mais que existam diversas possibilidades de vivermos a vida, é apenas a uma que a vida se resume e, sem qual, perdemos a perspectiva de viver. A multiplicidade de vidas diferentes não elimina a percepção que temos de que somente temos uma vida para viver e é ela a qual devemos viver ainda que se modifique com o tempo, devenha outra, se torne diferente. Há uma univocidade da vida na qual todos os seus devires múltiplos compõem ou constroem a imanência de uma vida.

Quando pensamos na vida pensamos em algo definido ainda que seja indefinida em nossa existência, como algo que é nosso, uma imanência e não uma transcendência. Vivemos a vida em primeira pessoa, sujeitos a ela ou sujeita a nós por um eu que reiteradamente repetimos em nossas conversas com os outros que também se referem à vida como algo deles, a partir de seus eus. Compartilhamos a vida como uma existência particular, singular, vivida por cada um ainda que seja vivida em companhia com outros e seja compartilhada por todos.

Existe uma individualização da vida em quantidade e uma individuação qualitativa dela ao ser vivida por cada um sem que seja possível viver a vida de outro, por mais empatia que possamos ter em relação a ele, e tão pouco podemos viver outra vida senão como novamente uma vida diferente da que vivemos. Assim vamos vivendo a vida, uma a cada momento em seu devir constante no tempo repetida de modo diferente, uma vida após outra que é a senão a mesma vida num univocidade, isto é, de modo único. Não conseguimos escapar assim do pensamento de uma vida...

E se a vida fosse mais do que uma? Se vivêssemos duas vidas ao mesmo tempo? E a partir de duas uma multiplicidade de vidas desconhecidas, nunca definidas, nem mesmo em uma singularidade? E se o que vivemos não fosse uma experiência de vida, mas de uma multiplicidade de vidas que perpassam num único instante nosso corpo e nossa mente, nossa existência, sem que possamos definir? Fosse, deste modo, um afeto ou um acontecimento intenso ou potente demais para ser definido até mesmo como uma vida? Que possa ser resumido numa definição ou num axioma, quiçá, numa substância, como uma vida?

Talvez se diga que seria muito problemático, pois não saberíamos o que vivemos, que vida teríamos ou deveríamos ter e seria senão uma anarquia sentimental e mental, uma angústia sem fim sobre o que vivemos ou experimentamos como vida. Porém, por outro lado, todos os problemas que temos na vida é porque a pensamos de modo definido ou mesmo indefinido, por nos angustiarmos pelo que vivemos e pelo que não vivemos com vida, pela vida que temos e não temos, ou que deveríamos ter. E deixamos de viver por causa de uma multiplicidade de pensamentos numa vida, mais ainda, deixamos de viver porque nos dizem que a vida é assim, deste e não de outro modo, unicamente, de um modo determinado, ainda que seja indeterminada.

Ao definirmos a vida ainda que de modo indefinido como faz Deleuze, pensamos numa vida a ser vivida, não importa qual seja, que moral ou ética a defina, ou ainda, que pensamento diga o que é a vida, imanente ou transcendente.  Buscamos viver uma vida em nosso corpo e pensamento esperando que dê certo, pois não basta viver a vida, é preciso ser vivida do modo certo, o que nos dá prazer, que satisfaz nosso desejo ou é a que pensamos que deve ser. E se não for, buscamos fazer com que seja de algum modo em meio à dor e sofrimento por não ser, frustrados em nossas perspectivas de vida, sem deixar de pensar nela de modo inconscientemente, reprimida pelas circunstâncias, algumas vezes dramáticas e trágicas, em nossos sonhos de uma vida.

Enquanto vivemos uma vida, a nossa, em particular, diversas vividas perpassam por nosso corpo e mente sem se instaurarem plenamente. São vidas possíveis que se tornam impossíveis a cada momento ao não serem vividas, pois somente é possível viver uma vida e apenas uma de cada vez. Por mais tortuoso que seja o labirinto há uma entrada e uma saída, e deve haver, ainda que a entrada seja também a saída, do contrário, o labirinto é uma armadilha da qual não podemos escapar. Assim é a vida na qual entramos e saímos depois de percorrer diversos caminhos possíveis nos quais podemos nos perder sem nunca conseguirmos achar a saída da vida que vivemos, sem percebermos outras possibilidades de viver.

Perceber as diversas vidas possíveis não é possível assim como não se pode pensar viver as diversas vidas possíveis ainda que se as viva no corpo e pensamento a cada momento. Há um limite de nossa percepção e pensamento sobre a vida ao ser vivida. Todas as possibilidades da vida convergem para uma possibilidade de uma vida que já não podemos definir em nossa experiência e pensamento, mas buscamos definir a cada momento para que não seja vazia, isto é, para que tenha um sentido vivenciado ou vivido.

E assim vivemos uma vida... Mesmo que nunca percebamos ou consigamos pensar na multiplicidade de sua existência enfim. 

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