A morte negra
Assim como a morte do seu personagem no filme Destacamento Blood (Da 5 Blood, 2020), de Spike Lee, a morte de Chadwick Bosemam é simbólica para o movimento negro que ele representou nos papéis de Jackie Robinson, James Brown e Pantera Negra, demonstrando o protagonismo negro na história, na guerra, esporte e música.
No filme Descatacamento Bloog, Chadwick interpreta o papel de Norman Earl "Stormin' Norman" Holloway, um militar em ação na Guerra do Vietnã que propõe aos seus quatro amigos negros em batalha roubar um carregamento de barras de ouro enviado pelos Estados Unidos para o Vietnã do Sul para ajudar no combate ao comunismo do Vietnã do norte, Vietnã dividido à época. A decisão de roubarem não é motivada pelo desejo de riqueza tão comum ao capitalistas e, sim, de restituição histórica pela exploração dos negros como força de trabalho escrava do capitalismo representado particularmente pelos brancos dos Estados Unidos então colonizados pela Inglaterra, bem como pela morte deles devido à escravidão nas plantações de algodão e ao racismo depois da colonização. O discurso de Norman aos amigos de batalha demonstra, neste sentido, a intenção do filme de Spike Lee: relembrar politicamente a morte de milhares negros escravizados e mortos pelos brancos no período da colonização e pelo racismo, mas também com o envio de tropas negras para enfrentar um inimigo que não estava nos Vietnã do Norte e tão pouco era o comunismo, e, sim, o racismo estruturado pelos Estados Unidos como ideal de uma nação forte.
Vamos tomar esse ouro em nome de cada soldado negro que não sobreviveu. Cada irmão e irmã levados da Mãe África para Jamestown, Virgínia, em 1619. Vamos dar o ouro ao nosso povo. (Stormin' Norman)
A morte de Norman no filme é uma surpresa tanto quanto a morte de Chadwick hoje, pois foi algo inesperado, mesmo esperada numa guerra, e é o que enreda o filme assim como a morte de Chadwick enreda a história do movimento negro no cinema com seus papéis, mesmo que também sua morte fosse esperada devido o câncer desde 2016. Tanto no filme quando na vida real, portanto, sua morte era esperada: no filme, por estar numa guerra, na realidade, por estar com câncer. E tanto num como na outra foi inesperada, e isto é senão o que define a morte: algo inesperado o qual estamos à espera, ou que nos espera mesmo que não a esperemos. Não esperamos a morte, nem a nossa e nem a dos outros, mas estamos à sua espera ao sabermos que vamos morrer algum dia, mas se a esperamos é de um modo inesperado que ela nos chega, como um pensamento do futuro no passado em que vivemos, que é o nosso tempo atual, assim como do passado no futuro, com a lembrança do passado na atualidade. Em ambos os casos, um fantasma que aparece à mente daqueles que estão vivos.
É como um pensamento, uma lembrança e um fantasma da morte dos negros na Guerra do Vietnã, pelo racismo nos Estados Unidos e pela escravidão que Norman aparece no filme Destacamento Blood, lembrado pelos amigos na viagem de retorno ao Vietnã para recuperar o tesouro, o passado a lembrança de Norma e de tantos outros que enterraram durante a guerra. À medida em que buscam o ouro perdido, o fantasma de Norman é lembrado, aparece em cenas do passado com eles e se mistura aos fantasmas de cada um dos amigos atormentados pela lembrança da guerra, principalmente Paul (Delroy Lindo), o que mais sofre no retorno ao Vietnã numa guerra particular com sua consciência, com o filho, com os amigos e consigo mesmo carregando a culpa por ser o responsável indiretamente pela morte do amigo, a qual bloqueia em seu pensamento atribuindo à morte dele aos vietcongues. É ele que relembra constantemente o amigo morto, que carrega sua morte a todo instante e em todo o filme é a morte que aparece nas lembranças da guerra, do racismo, da escravidão dos negros e na busca dos bloods pelo ouro que retorna às mãos deles e de outros em maldição, matando aqueles que o encontram.
Assim como uniu em vida os amigos bloods, ensinando a história dos negros quando não estavam guerreando e a "não cair no papo anticomunista do governo" na época da guerra, visto pelos amigos como Malcolm X e Martin Luther King ao mesmo tempo, armado e pacifista, ou Muhammad Ali com sua arte de derrubar o oponente e se esquivar dele, Norma une os amigos depois da morte como um fantasma, uma lembrança e um pensamento. É Norman que impede os amigos de surtar na guerra, principalmente quando sabem da morte de Luther King e querem derramar o sangue branco com raiva e não o norte-coreano comunista, ainda mais que, como diz Ali no início do filme, os vietcongues não o tenham feito nada consigo e, como diz Norman aos amigos, são os brancos que o fazem sentir que não vale nada porque:
Toda vez que saio de casa, a polícia está patrulhando meu bairro como uma batida.
O pensamento, a lembrança e o fantasma da morte também está presente no filme Pantera Negra (Black Panther, 2018), de Ryan Coogler, no qual Chadwick interpreta T'Challa, então príncipe de Wakanda, um reino fictício na África, pois ele vê seu pai morrer inesperadamente num atentado terrorista na ONU, o que faz se tornar chefe da Tribo Pantera e rei de Wakanda, depois de passar por um desafio como guerreiro e receber o espírito do guerreiro Pantera Negra. O fantasma da morte e, particularmente, da morte de seu pai e ancestrais desse guerreiro mítico aparece particularmente no ritual de passagem dele de príncipe para rei, quando é enterrado vivo após o desafio e, sob o efeito da planta alucinógena Erva Coração, diz ao fantasma do pai num Plano Ancestral não estava preparado para a morte dele. A preparação para a morte do pai é o que representa o ritual de passagem do príncipe T'Challa a rei de Wakanda, chefe guerreiro da Tribo Pantera e descendente do guerreiro mítico Pantera Negra, e aquilo que um pai deve principalmente ensinar ao filho como diz o fantasma do pai a si:
Um homem que não preparou seus filhos para sua própria morte falhou como pai.
A preparação para a morte faz parte do ensinamento guerreiro da tribo Pantera Negra e do super-herói Pantera Negra desde que o primeiro guerreiro Pantera Negra ingeriu a Erva Coração, uma flor contaminada pelo metal "vibranium" presente num meteorito que caiu na África há muito tempo e o fez ter super-poderes. Diferente de outros super-heróis, o Pantera Negra utilizou o poder do vibranium para unir as tribos wakanda e criar tecnologias avançadas para se isolarem do mundo e viverem em paz em vez de em guerra tentando dominar outros povos ou defendendo o mundo da guerra entre povos e dos criminosos como acontece com a maioria dos super-heróis Vingadores estadunidenses, aos quais o Pantera Negra se juntar quando a guerra se torna "infinita" e atinge os wakandanos. Mas antes da Guerra Infinita, para os negros africanos de Wakanda, o comunismo não é o inimigo e, sim, os brancos que querem destruir o mundo com suas tecnologias e deles que os wakandanos se defendem com sua tecnologia e o Pantera Negra com sua armadura super-avançada e sustentável.
Assim como Thor, outro herói mítico que se torna super-herói, o Pantera Negra não é o resultado de uma fantasia, ainda que sua história seja uma ficção literária dos quadrinhos, e ele não se fantasia. Não veste uma roupa azul-escarlate ou negra para combater o crime ou uma armadura de ferro como máquina de destruição. Sua armadura é uma máquina de guerra que não visa a guerra, é a arma e ao mesmo tempo uma ferramenta que defende sua vida e que, em sua versão mais avançada, absorve a energia de golpes e tiros aumentando seu poder, uma arma e ferramenta sustentável portanto. O poder do Pantera Negra, porém, não está em sua armadura, mas na força e inteligência de ancestrais mortos que souberam utilizar o que dispunham materialmente para se tornarem mais poderosos para enfrentar a morte, para se tornarem imortais. Se a armadura do Pantera Negra é o que dá imortalidade ao seu corpo durante as batalhas, são seus ancestrais que o fazem viver eternamente ao darem imortalidade à sua alma, ao fazerem viver como uma pantera negra quando morrer assim como seu pai e outros guerreiros panteras negras.
Permanecer vivo é o que buscamos na realidade e também os super-heróis na ficção, mesmo depois da morte. É o que qualquer pessoa espera e os negros sobretudo na guerra histórica contra o racismo que os lembra da morte a cada batida policial nos Estados Unidos e no Brasil. Há muito tempo os negros buscam permanecer vivos apesar das armas apontadas para suas cabeças por policiais brancos que os veem como inimigos, de modo racista por serem negros, e não simplesmente como bandidos. Os negros são vistos como inimigos pelos brancos não importa se são ou não bandidos, e se se tornam bandidos não é por diversão ou desejo de riqueza simplesmente como muitos brancos, ainda que a diversão e a riqueza também faça parte do banditismo negro. Não é o desejo de ir contra a lei ou de riqueza simplesmente o que impele os negros ao banditismo, é também um desejo de ir contra o sistema que os oprime os desfavorece numa sociedade racista estruturada para os oprimir, violentar e explorar como a sociedade estadunidense e a brasileira em particular.
Para fugir ao desejo de ir contra o sistema através do banditismo e para permanecerem vivos ao racismo inerente à sociedade, nos Estados Unidos e no Brasil, foi no esporte que os negros encontraram suas armaduras guerreiras e se tornaram superpoderosos como super-heróis. Os uniformes os tornaram imunes à morte, diminuindo a sensação de segregação na realidade em que vivem e os integrou na sociedade, assim como a arte. A partir do esporte e da arte eles passaram a ser vistos não mais como inimigos, mas dotados de habilidades e de uma inteligência que os brancos racistas pensavam que eles não tinham comparando-os a "macacos", a uma "raça" inferior. Foi no esporte, mais do que na arte, que os negros começaram a rivalizar com os brancos e, sobretudo, começaram a se defenderem do seu racismo com inteligência e habilidade em vez de armas, ao contrário do que fazem os brancos, armados em frente de casas com fuzis estupidamente diante das manifestações do movimento negro contra as mortes recentes.
Foi com habilidade e inteligência que o jogador de basebol Jackie Robinson, assim como muitos outros negros, fugiram à alternativa do banditismo e da morte pelo racismo, mas não ao racismo. Em sua interpretação de Jackie Robinson no filme 42 - A história de uma lenda (42, 2013), de Brian Helgeland, Chadwick Boseman demonstra como foi com Jackie que aprendeu, por assim dizer, a enfrentar a morte pelo racismo ao controlar a raiva como Norman pede aos bloods, não deixando a raiva que têm dos brancos se volte contra ele. A raiva que Robinson sente quando seus colegas não bloods recusam a jogar com ele no time do Brooklyn Dodgers e a cada vez que é chamado de "macaco" pelo técnico adversário que o faz quebrar um taco na perna depois de não conseguir rebater uma sequência de lances é a mesma raiva que muitos negros estadunidenses devem controlar diante do racismo e que os levou ao movimento político do partido dos Panteras Negras na década de 60, às manifestações pacifistas pelos Direitos Civis com Luther King, mas também ao não pacifismo de Malcom X quando a raiva se tornou incontrolável para alguns. Isto porque é uma raiva que vem desde a escravidão que encarna como fantasma da morte em cada negro e a qual Jackie Robinson sente particularmente na temporada de 1947 retratada no filme quando faz parte do time do Brooklyn Dodgers como único negro da equipe.
A interpretação de Jackie Robinson por Chadwick, assim como a do Pantera Negra e de Norman, é extremamente realista, não tanto por interpretar fielmente, neste caso, um jogado de basebol tal como ele foi na realidade, mas por demonstrar a realidade de todos os negros na sociedade racista estadunidense. Sua necessidade de controlar a raiva para não se autodestruir a cada viagem e jogo é o que todo negro deve ter como virtude para enfrentar a morte pelo racismo, assim como todo guerreiro, herói e super-herói em batalha numa guerra. O número 42 do uniforme de Jackie Robinson foi sua armadura, o modo como conseguiu se defender da morte e se tornou imortal no basebol jogando pelo Dodgers e a interpretação de Chadwick como Jackie é a lembrança de todos os negros que no esporte, na guerra e principalmente no cotidiano enfrentam a morte pelo racismo todos os dias.
A interpretação de Chadwick em 42 demonstra o enfrentamento da violência e da morte pelos negros no seu cotidiano, não importa se são bandidos, pobres e trabalhadores ou jogadores famosos e ricos. Nenhum deles escapa à raiva e à necessidade de controlá-la diante das violências que sofrem a cada dia por desejarem fazer algo e serem discriminados por sua cor e inferiorizados como "raça". Nenhum deles escapa ao fantasma da morte cotidiana pela arma de um policial branco, ou ainda, pelo fuzil de um adolescente branco que busca policiar a cidade contra os negros estimulado por um presidente racista que busca defender a nação contra os negros, considerados inimigos desde a guerra de Secessão estadunidense declarada senão por aqueles que queriam defender o direito de escravizar e matar os negros quando bem entendessem. Uma guerra que perdura até hoje, pois o racismo nada mais é do que uma declaração de guerra aos negros como diz Kuame Ture, ativista político do Movimento dos Direitos Civis, em 5 de abril de 1968, numa das cenas do filme Destacamento Blood.
Os EUA declararam guerra aos negros.
Uma guerra que mata milhões e para a qual os estadunidenses se armam incentivados por Donald Trump na presidência dispostos a matar muito mais em defesa de uma nação forte outra vez, o que quer dizer, racista, contra a qual Chadwick Boseman lutou na realidade e na ficção como negro e todos devem lutar lembrando as palavras de Angela Davis em 11 de novembro de 1969 mostrada também no filme Destacamento Blood, e que o filme de Spike Lee representa com maestria, pois como ela diz:
Se não associarmos o que acontece no Vietnã e aqui, logo viveremos uma época de total fascismo.
O fascismo historicamente é a defesa do racismo quando os brancos se veem como uma raça superior, ariana, e devotam sua vida à guerra contra os negros, seus inimigos muito mais do que os judeus, e o que fez os Estados Unidos não verem perigo no fascismo nazista de Hitler antes de entrarem na guerra, não devido aos nazistas, mas ao ataque japonês em Peal Harbor. É a morte negra pelo racismo que a morte de Chadwick Roseman representa em todos os personagens que interpretou mesmo que sua morte tenha sido por câncer na realidade. A morte negra não é uma morte biológica, propriamente, ou uma morte que moralmente traz paz, é uma morte histórica, resultado de uma necropolítica como diz Mbembe, e é, podemos dizer, a morte propriamente dita, uma morte esperada na história pelos negros diante do racismo por serem negros, mesmo que eles nunca a esperem, e que chegue sempre inesperada, e a qual todos esperamos inesperadamente em relação aos negros através do racismo.
Assim como existe uma razão negra segundo Mbembe, podemos dizer que existe uma morte negra, uma morte que não representa a paz perpétua e que é senão o contrário disso, pois é uma morte que não nos deixa em paz, que chega frequentemente à mente negra como um pensamento futuro, uma lembrança, um fantasma devido ao racismo, e que não chega aos brancos da mesma maneira e pouco aos mestiços, no caso destes somente quando são vistos como negros pelo racismo. Uma morte negra que não se opõe a uma "morte branca" ou morte dos brancos ou que as desvaloriza, tão pouco a dos mestiços, ou desvaloriza a morte de quaisquer outros, pois é uma morte produzida historicamente pelo racismo. Não é uma morte, portanto, produzida por uma disciplina moral, tão pouco por um deixar morrer biologicamente aqueles que não importam para a biopolítica do capitalismo estadunidense, brasileiro ou mundial. É uma morte produzida pelo racismo historicamente que torna a sociedade e economia política capitalista exclusivamente branca, ainda que os negros façam parte dela.
Na sociedade e economia política racista do capitalismo, a morte negra não tem um significado biológico ou moral, tem um significado histórico, pois lembra, traz à mente o pensamento e o fantasma do racismo contra o qual os negros lutam historicamente durante toda a vida na guerra declarada a eles por brancos, mestiços e até mesmo por outros negros, e cuja violência nem mesmo as armaduras impenetráveis dos super-heróis conseguem evitar. É uma morte pensada propriamente a partir da história em seu futuro como o que há de vir aos negros pelo racismo, em seu passado advindo do racismo contra seus antepassados e no seu presente como morte propriamente dita pelo racismo que enfrentam a cada dia. Enquanto histórica, esta morte não traz paz, muito menos uma paz perpétua, pois assombra como fantasma os negros todos os dias e a nós quando pensamos na morte negra ainda que não sejamos negros, pois a morte histórica dos negros nos une independe da biologia e da moral de uma cultura para sempre, e é ela senão que nos faz imortal como a armadura do Pantera Negra.
Nenhum comentário: