Tropeços do amor
Andar é uma das maiores conquistas da humanidade por mais que não percebamos isso no nosso cotidiano e andemos muito em nossa vida. Podemos bem dizer que passamos a vida andando e quando não temos o que fazer é andar o que desejamos, bater perna como dizemos por aqui. Na antiguidade filosófica, isso era chamado de peripatetismo quando Aristóteles chamava seus discípulos para dar uma volta nos jardins do Liceu, algo que se tornou um vício na modernidade como demonstra Poe em seu conto O homem da multidão, bem como uma norma com Kant e suas andanças pontuais, e um pensamento filosófico do andarilho, de Nietzsche, hoje pensado em termos de nomadismo a partir de Deleuze e Guattari, para não falar do chegante de Derrida, este outro andarilho vindo de algum lugar ao qual devemos acolher em hospitalidade.
Há diversas formas de andar e cada um tem a sua, o seu jeito de andar imperceptível a si mesmo como muitas de nossas singularidades. Andar é um passo além de ficar em pé e um passo aquém de caminhar ou passear, uma différance, podemos dizer entre além de um e aquém do outro, e que também define o ser humano, pois qualquer animal pode ficar em pé desde que domesticado e caminhar em alguns casos. Andar é mais e menos do que isso. Não basta ficar em pé, não é necessário caminhar, ainda que andar se confunda com ambos, ainda mais com caminhar, passear segundo sua origem latina ambulare, da qual advém o nosso ambulante e a ideia de que carregarmos algo enquanto andamos. No mínimo, o nosso próprio corpo ao andar, o qual dispomos a cada passo e de passo em passo de um passo a outro.
Se andar é diferente de ficar em pé, caminhar e passear, é porque em todos estes casos há um objetivo muito definido. É preciso ficar em pé para alguma coisa, caminhar até algum lugar ou caminhar apenas admirando o que se vê, o que seria passear. Mas não é preciso andar, isto é, não há necessidade e tão pouco certeza no andar. Pelo contrário, por um lado, há desde a antiguidade uma necessidade humana de não andar, de criar meios de não andar e é senão por uma analogia metafórica com andar a pé, algo redundante, que se diz andar a cavalo, andar de barco, andar de charrete, andar de rede (no caso dos escravocratas carregados numa rede no Brasil), andar de triciclo, bicicleta, patinete, andar de carro, de ônibus, de avião, quiçá, no futuro, em nave espacial para algum planeta. Em nenhum destes casos, obviamente, se pode dizer que andamos e, sim, que não andamos, e a metáfora como transporte linguístico é um dos meios também de não andarmos, de buscarmos não andar a qualquer momento por meio de alguma tecnologia que, em tempos virtuais, retira do ser humano toda e qualquer desejo de andar até algum lugar para ter algo, permanecendo imóvel em um determinado lugar por horas e horas do seu dia. A tecnologia digital virtual vai além da analogia e da metáfora, neste caso, pois ela cria o paradoxo do nomadismo contemporâneo que é andar sem sair do lugar como se estivéssemos a todo instante numa esteira eletrônica.
Por outro lado, se andamos mesmo assim é porque vemos outros andarem desde a infância e todo o nosso corpo humano se dispõe a isto ainda que informe em seus ossos, músculos, equilíbrio labiríntico e mente. Porém, nada, absolutamente nada nos dá a certeza de que andaremos como aqueles que vemos andar, e de fato não andamos, ainda que caminhemos igualmente seguindo os mesmos passos de muitos antes de nós passeando na vida. Mais ainda, há também a incerteza que faz parte de cada passo que damos desde o primeiro passo de nossa vida quando poderíamos apenas engatinhar nela, com a segurança de um animal em suas quatro patas, sem nunca cairmos, a não ser de uma certa altura em que nos coloquemos, o que isto nos faz senão pensar em todos os meios analógicos, metafóricos, digitais e virtuais, tecnológicos, enfim, que nos dê segurança de não sairmos do lugar ou que saiamos de um lugar para outro em segurança, medindo cada passo que damos ao andar.
Se não há necessidade e certeza em nosso andar, com certeza há o tropeço, a queda, o sofrimento, o choro e o desejo de não mais andar em algum momento. A incerteza do primeiro passo nos adverte e nos ensina para toda a vida também que em nenhum momento estaremos preparados para andar tal como nos preparamos para caminhar ou passear. Não há como prever o passo seguinte. Não há como prever o equilíbrio de nosso corpo na breve fração de segundo de um passo a outro na infância e por toda a vida. Cada passo é um momento de insegurança que vivenciamos não por temer a queda propriamente, pois não sabemos se vai existir pelo erro em nosso passo, e a criança muito menos sabe, mas porque simplesmente tememos andar e, ao andar, tropeçar, cair, sofrer, chorar e não desejar andar.
Se andar é uma das maiores conquistas da humanidade, ele é também um de seus maiores traumas, pois a incerteza que há em andar, de que o passo pode falhar e podemos cair nos paralisa. Não é o tropeço, a queda, o sofrimento e o choro o problema para a criança assim como não é para nós, adultos. O problema é o andar, simplesmente por um pé após o outro, pois andamos praticamente inconscientes quando crianças, sem sabermos o que fazemos e não por menos assim em muitos momentos de nossa vida adulta. Cada passo é medido, mas nenhuma medição nos faz prever o passo que damos em algum momento. Há um a-partamento entre um passo e outro que é a separação e ligação entre os passos o qual pode ser medido no espaço e tempo de modo causal, mas nunca previsto na infinidade de consequências de cada passo que damos em nosso destino.
Todos os cálculos físicos e metafísicos que fazemos sobre nossos passos não equivalem a cada passo que damos em nossa vida que é irredutível deste modo à previsão, ainda que possa haver uma previsibilidade em cada passo que damos. Andar não é apenas uma singularidade do nosso corpo, é uma singularidade em si mesmo como um passo além do outro no qual o além do outro não quer dizer além do passo anterior como uma superação dele ou de si mesmo, do passo em si mesmo, mas um passo diferente do anterior, imprevisto pelo anterior e não podendo ser reduzido ao anterior por uma causalidade e dialética como se fosse uma consequência direta ou indireta dele. Há uma singularidade em cada passo que damos e cada passo que damos define o destino de nossa vida criado a cada momento pelos passos que damos sem saber onde e quando vamos parar, mas sabemos que vamos parar de andar algum dia em algum lugar.
A singularidade do andar está na incerteza de um passo em relação ao outro e isto quer dizer segundo o ditado que não podemos dar um passo além da perna, pois algo pode acontecer, algo imprevisível se manifesta em cada passo que tem a perna como medida, meio de tentar evitar os tropeços na an-dança da vida. É a aceleração ou desaceleração do passo que nos faz tropeçar, quando o temor nós impede de andar ou o destemor nos faz andar despreocupadamente, quando o coração gela ou se incendeia, enfim, quando amamos e desaceleramos o passo diante de alguém ou o aceleramos até si. É o amor, neste caso, que nos faz tropeçar na vida e mais do qualquer outra coisa nela, muitas vezes nos impedindo de andar.
Podemos tropeçar de vários modos, tantos quantos os modos de andar, alguns mais engraçados do que outros, obviamente. Cada pessoa já tropeçou na vida e isto depende singularmente do modo como anda. Cada tropeço é tão singular quanto o andado de uma pessoa e está relacionado à incerteza de seus passos na vida. Assim é também nos tropeços do amor, este momento em que damos um passo além da perna, sem medida alguma, um passo além do outro sem sabermos como fincaremos o pé em seguida no chão. Andar e amar não apenas rimam, também andam de mãos dadas como amantes na incerteza de se encontrarem pela primeira vez sem saberem quando será esta vez ou se será desta vez, ou em outra, e outra, e mais outra, e quanto tempo andará até que chegue a vez que o coração vai gelar ou se incendiar, fazendo-se parar de andar subitamente ou andar apressadamente em desespero ao encontro de quem ama, com a certeza de que é amor desta vez, sem tropeços, ainda que não possa ter certeza disso, o que não importa, pois o importante é andar, amar.
Não importa o quanto digam para não andarmos, andamos, nem o quanto digam para não amarmos, amamos. Podemos resistir mais do que outros e reprimir o amor com muitas coisas em nossa vida, até mesmo com a ajuda de deuses, não deixamos de amar, e há quem implore e reze para amar, faça promessas de amor. Não as que prometemos ao amante, mas para ter algum amor na vida. Desejamos inconscientemente como um passo além do outro um amor, amar tanto quanto andar, e andamos em busca do amor muitas vezes durante toda a vida. Às vezes encontramos um amor, muitas vezes não, encontramos vários, cada um com sua singularidade, com seu jeito de amar e de andar ao nosso lado, andando conosco em algum lugar e por algum momento, e nos fazendo tropeçar diversas vezes, vacilando o passo a cada instante, até estarmos caído por quem amamos.
Olhe por onde anda! Cuidado para não tropeçar! É a advertência que ouvimos quando amamos. É o daimon socrático advertindo sobre o amor que era o único assunto do qual Sócrates sabia falar, como diz no Banquete segundo Platão. Amor sobre o qual aprendeu com uma mulher, Diotima e não com a sua esposa Xantipa, porém em diálogo, de modo metafísico, por meio de uma metáfora do pensamento, e não corpo a corpo, fisicamente, portanto, num pensamento andante. Amor platônico e não desejante do corpo do outro, amor que é uma Ideia, ideal, comedido a cada passo, no qual, ao se dar um passo além do outro, o outro é superado no que é e em sua distância infinita no espaço e tempo por aquele que o ama não importa a distância, sem tropeços, porque também sem andar até ele.
É um amor afrodisíaco o qual muitos buscam em vez do amor erótico, um amor que submete o desejo, que o impede de se manifestar num determinado momento para não tropeçar quando se anda, ama. É o amor de Afrodite a quem deve seguir Eros em companhia, como diz Hesíodo em sua Teogonia, um amor casto, advindo da castração literal do desejo, no caso, o desejo de Céu por Terra. Desejo, Eros, que doma no peito e a vontade dos deuses e seres humanos, diz Hesíodo, e que nos faz errar, ir além de modo incerto sem pensar nas consequências do ato, o passo que vai dar, está dando, sem perceber no que vai dar, que nos faz, portanto, tropeçar na an-dança do amor na vida.
O desejo vem antes do amor, Eros antes de Afrodite, segundo Hesíodo e também Platão. Com Platão, porém, Eros é confundido com Afrodite, que passa a ser duas, a Pandêmia, mais nova, na qual há o desejo do outro em seu corpo de modo mais manifesto, e a Urânia, mais velha, na qual o desejo é reprimido ou não se manifesta mais. Primeiro desejamos, depois amamos, esta é a lógica do amor de Platão, e de certo modo a de Hesíodo, bem como a nossa muitas vezes em nossa an-dança na vida. Mas apesar do que pretende Platão, nós e muitos numa idealização do amor, não há amor sem desejo, este amor que nos faz tropeçar na vida, um amor não platônico que não tem nenhuma relação com amizade, que é também um amor anti-edipiano que não tem nenhuma relação com a família, em princípio com o Céu e Terra como Pai e Mãe cósmicos, e que é deste modo um amor não-familiar e tão pode ser reduzido a algo familiar por analogia como uma fraternidade entre irmãos ou uma amizade entre amigos que são como irmãos, ainda que se busque isso.
Não há nada de familiar no amor visto deste modo, pois é literalmente um amor pelo outro, quando o outro não é visto de modo familiar, quando o desejo não é submetido ao casar desde o princípio e a uma segurança que se quer ter com o outro em aliança no casamento como se tem com um pai, com uma mãe, um irmão ou algo familiar como um amigo. Neste caso, um amor diferente do amor pelo semelhante que é senão um amor por si mesmo tendo o outro como seu reflexo, um amor narcísico de alguém que se depara diante do outro como espelho que reflete aquele que o olha e o faz encontrar a si mesmo. Amor diferente do que dá segurança para não dar um passo em falso, tropeçar, cair, sofrer, chorar, andar, enfim, diferente do amor que faz estagnar o ser em sua an-dança na vida e parar de andar, amar.
Por vir antes, o desejo é o princípio do amor, é a sua arkhé não apenas no espaço e no tempo, mas de modo fundamental, aquilo sem o qual não é possível e tão pouco existe o amor. Não é com os nossos pais e mães que aprendemos a amar o outro enquanto outro, pra somente é possível neste caso amar o outro enquanto semelhante. Mesmo na relação erótica entre Terra e Céu, o desejo vem antes da relação familiar de ambos, posto que Terra pariu Céu de si mesma, de um orgasmo dela consigo, de uma masturbação cósmica por assim dizer, num desejo transbordante de si por um outro que não existia antes e que fosse uma borda, um limite para si mesma, outro que a amasse além do amor por si mesma, amor diferente do seu por si como outra.
Não há desejo senão pelo outro diferente do amor que é por si mesmo, de modo individual e familiar. É o desejo que nos faz amar o outro além de nós mesmos, que nos faz transbordar, ir além dos limites, dar o passo em falso, tropeçar e, no tropeço, percebermos senão que amamos como nunca amamos ninguém antes em nossa vida, mesmo que já tenhamos amado outras vezes, pais, mães, filhos, e em desejo outras pessoas. É o desejo que nos faz andar inconscientemente e amar sem consciência alguma de que amamos a não ser pelos passos que damos até o outro, incontroláveis mesmo quando estamos parados, batendo as pernas sentados, nervosos à espera do próximo passo, um beijo, um abraço, o corpo em direção ao outro efusivamente a cada passo diminuindo o espaço entre si e o outro, cada distância entre um corpo e outro, do menor ao maior contato progressivamente.
É o desejo que nos faz, enfim, e-namorar, andar e sair de casa para estar com o outro em vez de ficar nela, de casar, que nos faz viver a incerteza do amor em vez de ter a segurança familiar dele, e que nos faz tropeçar ao andar e andar mesmo com os tropeços produzidos pelo amor quando desejamos o outro enquanto outro. Cada tropeço que damos no amor é devido ao desejo de estarmos com o outro, em sua proximidade e não distante dele, sofrendo consigo no sentido de ser afetado por si em alegria e tristeza, potência e impotência em algum momento em vez de indiferente aos seus afetos em nome de uma Ideia de amor, castidade e fidelidade familiar. É o desejo do outro que faz do amor algo diferente na an-dança da vida, singular a cada passo que damos e o qual somente podemos saber o que é quando damos um passo adiante, quando andamos em direção ao outro sem sabermos se o passo que damos em sua direção vai nos dar alegria ou tristeza, mas com a certeza de que vai ser ambas dependendo do passo que damos conforme nosso desejo e que é o e desejamos, ser alegre ou triste com aquele que amamos.
Negar o desejo saciando-o muitas vezes é o que muitos buscam com o amor. Cansar de an-dar. Deixar de an-dar. Matar o desejo tendo um orgasmo. Fechar os olhos sem olhar mais para o outro, sentir o corpo do outro. Por fim ao desejo, à an-dança dos corpos em seus movimentos lado a lado, tropeçando um no outro. O orgasmo é o amor platônico, o amor realizado por uma ideia, o amor que põe fim ao desejo do outro, pelo outro, que sacia o desejo enquanto carência do outro como si mesmo e não desejo pelo outro enquanto outro.
A cada orgasmo pensamos que o amor é não tropeçar, que é tirar os pés do chão, em vez de pô-los, um pé após o outro an-dando na vida, desejando o outro a cada momento em cada passo que damos sem nenhum orgasmo que possa diminuir o desejo pelo outro, sem carência dele, posto que não é algo que nos completa, mas que desejamos em nossa incompletude, sem nunca termos alguém que nos complete, pois, como se disse no início, andamos sempre sozinhos em nossa an-dança na vida, por mais que alguém ande ao nosso lado e nele moremos, namoremos, por algum momento.
Se não existe amor sem o desejo, tão pouco o desejo permanece sem amor. É o amor que dá continuidade ao desejo, o que desacelera ou acelera nossos passos desejantes pelo outro. O amor é a continuidade do desejo, o desejo de continuar an-dando, lado a lado ou até o outro continuamente, não necessariamente o outro sendo a mesma pessoa. Pois o desejo e o amor não se limitam a um como não se limita a si a não ser no romantismo trágico que nos faz morrer pelo outro sem conseguir mais andar, amar, desejar novamente.
E é por o desejo e o amor não se limitar deste modo que senão continuamos a an-dar, dar um passo além do outro, sem a necessidade e certeza do desejo e do amor, mas com a certeza de que desejamos quem amamos andando conosco em qualquer momento, em qualquer lugar, enamorados por si.
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