A última alegria
Toda a questão socrática que este diálogo assim como outros de Platão suscitam, a saber, se Sócrates é um personagem histórico ou fictício através do que escreve Platão e outros, pode ser resumida assim na ausência dele como mestre aos seus discípulos e como cada um lida com sua perda tentando imortalizado com suas palavras como faço hoje com minha amiga. São inevitáveis os elogios a feitos memoráveis no momento de luto, quando à tristeza pela ausência, buscamos a presença de quem estava conosco há tão pouco tempo, sorrindo para nós, alegrando-nos, ensinando-nos com suas palavras como viver melhor. A morte, esta ausência inenarrável, faz-nos perder as palavras e são as imagens que as salvam neste momento o fenômeno da linguagem tornando presente quem está ausente em nossas mentes e ouvidos, fazendo-nos lembrar de falar em meio ao silêncio que nos domina diante da morte.
Parafraseando Sócrates, podemos dizer que à cada alegria sobrevém uma tristeza, mas também a esta uma outra alegria, e assim se resume a existência nesta e noutra vida, após a morte. Alegria e tristeza fazem parte de nossa existência e não há vida sem isso. A alegria do nascimento e de uma presença no mundo é também a tristeza por morrer, pouco a pouco, a cada dia, mesmo que não se saiba, gritando para não morrer de fome em busca de algo que o alimente e o proteja, um corpo que lhe mantenha vivo. Se a morte é o prenúncio do fim da vida é não apenas somente da alegria de estar vivo, mas também da tristeza de viver, e não podemos nos esquecer que ela põe fim tanto às nossas alegrias como aos nossos sofrimentos.
Para quem vive a morte do outro é o fim da alegria de sua presença, mesmo distante, para quem o admira. É uma ausência absoluta. É uma separação definitiva entre dois termos no qual um substitui o outro sem meio termo. A morte substitui a vida sem qualquer possibilidade de perdão ou redenção que somente surgem a partir de um sentimento de culpa e ressentimento por ela, por não se ter presente quem queria que estivesse presente e por não estar presente diante de quem queria estar presente, mesmo no leito de morte.
Para quem morre, a morte também é o fim da alegria de sua presença, mas é também o fim da tristeza de estar presente, o alívio da dor de viver, de todo o sofrimento por uma luta pela vida constante desde o nascimento e a cada doença vivida de modo crescente, progressivo, múltiplo e variado durante a existência. Não são poucas as tristezas em relação à vida, para muitos, muito mais do que alegrias e não podemos concordar plenamente com o que Sócrates diz, pois a cada prazer não sobrevém uma dor somente e, sim, muitas dores, e muito mais do que alegrias, para as quais a única alegria é muitas vezes apenas estar vivo. E não há como discordar de Sócrates na defesa de sua morte diante de tudo que já viveu, ainda mais, tendo em vista seu julgamento, justo conforme as leis de Atenas, mas injusto conforme a ética que ele funda com sua ausência mais do que com sua presença, com sua morte mais do que com sua vida.
É a partir de sua ausência que Sócrates ensina aos seus discípulos a se preparem para a perda de sua presença, para quando ele não estiver mais ali, no mundo, e esta ausência dominar seus corpos e mentes como uma dor insondável pelas palavras. Se Platão faz das últimas palavras de Sócrates uma preparação para a morte, este não é um diálogo enlutado que visa fazer da morte o motivo de uma tristeza profunda. Ao manter vivas as palavras do mestre em sua mente, mesmo não estando presente quando as proferiu, Platão demonstra que a ausência daqueles que admiramos em diálogo pode ser suplementada pelas palavras escritas fazendo-nos dialogar com ele em sua ausência, orar por eles quando nenhuma oralidade não é mais possível consigo.
Deixar algo escrito é deixar um rastro de presença de alguém em meio à ausência que a sua morte produz em nossas vidas não necessariamente em palavras, uma lembrança basta, qualquer arquivo que nos lembre a origem de alguém que esteve um dia presente entre nós. Escrever é deixar marcas da existência. É com o corpo que se escreve e nos fazemos presente para além da morte, um corpo inviolável que retumba na cova e dentro de nós, como parte de nós, presente em nós como crianças no colo de uma mãe, acolhidos pela terra. O corpo fúnebre acolhido pela terra ainda que em cinzas é a presença absoluta de nossa existência diante da ausência que impõe toda morte.
Se a cada alegria sobrevém uma tristeza, como ao prazer sobrevém a dor, existe por fim sempre uma última alegria, a alegria da morte, não por quem morre. Esta última alegria é a alegria que nos dão os que estão prestes a morrer para nos fazer alegre e nos dar prazer por um breve momento buscando diminuir a tristeza e a dor por sua ausência em seguida. São as palavras de despedidas do corpo que revive em sua presença para viver eternamente nós, em nossas lembranças dele...
Foi assim que minha amiga, mestra, filósofa, Sandra Mesquita deu sua última alegria a nós, a alegria por continuar viva antes de morrer e mesmo depois da morte, fazendo sorrir a quem a ama e a admira pela última vez, fazendo o que sempre fez em vida, dar uma infinita alegria para quem conviveu consigo, quem sentiu e ainda sente no corpo e na alma a alegria de sua presença como uma marca indelével de sua existência. Como uma das maiores filósofas que já conheci, ela sabia que alegrar-se diante da morte é sorrir para a vida, mas alegrar-se por quem morre é ser fascista. Diante de quem morre, não há alegria, somente a tristeza pela ausência de sua vida, mas diante da morte Sandra nos lembrou mais uma vez que devemos sorrir para ela e é com o sorriso alegre dela diante da morte que como filósofa que ela nos ensina esta última alegria: a vida que nos resta a ser vivida, mesmo com a tristeza infinita de sua ausência.
In memoriam de Sandra Mesquita, filósofa, professora e amiga com quem aprendi que a filosofia é para nos dar alegria mesmo quando a tristeza é infinita...
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