O ponto de mutação
Este ponto de mutação em que toda a vida evolui não é um ponto único. Passamos por ele em vários momentos em nossa vida. É o modo dramático em que a vida evolui de uma diferença a outra ao se tornar um ser material, vegetal, animal, humano, cada momento deste um momento dramático na existência, não por ser triste, mas por indicar uma mudança na vida, em princípio, de uma vida inorgânica, material ou vegetal, com um corpo sem órgãos, a uma vida orgânica, animal e humana. Nestas últimas a dramatização é mais intensa por ser sensitiva e, no caso do ser humano, consciente, quando o organismo tem consciência de seu drama, sente o devir do drama no seu corpo em temor e tremor a cada momento em que o drama acontece e ele devém numa forma.
Devido esta consciência é no ser humano que a dramatização se torna mais potente, adquire uma sensação, uma percepção, um conceito muito claro e distinto e o ser no qual ele devém adquire não apenas uma forma, mas um corpo no qual o ser se identifica como eu, o que ele é, um ser propriamente dito de carne e osso com todos os afetos inerentes a cada parte dele no drama que é a sua vida, uma vida, e a de ninguém mais. É o momento mais dramático da existência quando se tem a consciência de um eu com todos os afetos alegres e tristes de um corpo que é este, deste ser, e de nenhum outro mais. Um ser diferente de todos os outros, que já não se pode negar, nenhuma negação é possível por meio de uma identidade, de um "eu sou como você", "igual a você", "parecido com você", "idêntico a você", afirmações a partir das quais todo retorno é possível.
Há nesta dramatização, todo um processo involutivo do devir ao ser e do ser ao devir novamente que se repete de modo diferente a cada momento. Do zigoto ao embrião, do embrião ao feto, do feto ao bebê em germe e deste ao bebê nascido, depois da criança ao adolescente, deste à vida adulta até sua velhice e morte, quando o ser se liberta, pois ser já não importa mais, não importa quem se é e com quem se é, um momento de beatitude do ser em que não apenas nenhum retorno é possível como nenhum lamento por não ser é possível. É o momento em que o ser deixa de ser um drama, que a dramatização chega ao fim, a morte, e simplesmente se é sem qualquer forma, sem qualquer consciência de uma forma que devenha ser algo, de algum modo, quiçá trágico.
A cada momento deste a dramatização se multiplica de um ser a outro em sua forma e não se passa de zigoto a embrião sem que uma multiplicidade dramática de acontecimentos devenham no zigoto para se tornar embrião, adquira uma determinada forma, e qualquer acontecimento se torna importante como um mínimo e um máximo ao mesmo tempo, como um ponto de mutação mínimo que altera de modo máximo o ser e sem o qual ele não devém a si e não se torna outro em seguida. Qualquer acontecimento na gestação modifica a gestação do ser no que é e no que vai ser, e a vida pode ser diferente de outro modo, ou nem vir a ser, a beatitude estando em não nascer, morrer antes de ter nascido, não ser antes de ser. Momento dramático da existência em que não se é o que deviria ser, porém, sem qualquer lamento justamente por não ter devido ser de qualquer forma, não haver nenhum devir ao ser, pois simplesmente não era para ser.
O nascimento marca um ponto de mutação dramático na vida quando da não existência do ser em sua consciência se passa à existência de si de modo sensível e consciente e toda a vida evolui de modo acelerado em sua dramatização. A vida devém animal dotada de todos os meios de evolução para devir em ser em cada momento dela de modo diferente na natureza até sua morte sensível sem se ter consciência da vida e tão pouco da morte, apenas sentindo a sensação de temor e tremor em seu corpo sem que se tornem perceptíveis de modo afetivo e conceitual, sem que seja uma vida humana. Isto porque é na vida humana que este temor e tremor sensível do ser que nasce se torna mais dramático por cada sensação ser percebida como um afeto inconsciente do qual se tem consciência muitas vezes e não deixa de ser dramático não se tendo consciência, pois o corpo percebe a mudança, os afetos dela, e se modifica em seu ser inconsciente. Inevitavelmente devimos ser diferente, outro, em diversos acontecimento em nossa vida que fazem do nosso ser humano uma multiplicidade de seres inconscientes dos quais não temos a menor consciência e quando temos o drama se torna maior ainda, pois o ser no que é no tempo e no espaço ainda que momentâneo se perde numa multiplicidade de seres potencializando a dramatização do que é sem retorno a cada momento de mudança, a cada ponto de mutação de seu corpo, de sua vida, numa vida totalmente diferente em si, para si e para os outros.
A consciência do ser humano de todo processo dramático que é a sua vida em afetos e conceitos potencializa ainda mais o drama, faz com que se torne exponencial. Toda a evolução do ser humano se faz em progressão geométrica em número e forma com os afetos mudando a forma do ser, mais quadrado ou mais redondo, retilíneo ou elíptico, duplicando-se, triplicando-se, multiplicando-se em sua forma a cada momento inconsciente no seu corpo como em qualquer animal e também em sua mente como ser humano. É na mente humana que a dramatização da vida se torna exponencial ao infinito a partir da duplicação do ser inconsciente em consciente, quando a consciência duplica e multiplica o drama do corpo finito. É quando cada ser no qual se devém se divide em corpo e mente ao mesmo tempo e não se devém num corpo sem devir também numa mente e em cada devir do ser há ao mesmo tempo um devir do corpo e um devir da mente, um devir finito e um devir infinito, e um devir do finito em infinito, do corpo em mente, uma dramatização do corpo na mente em que a potencialização do drama finita no corpo se torna infinita na mente e cada devir finito do ser se torna infinitamente dramático por não ser como antes no corpo e na mente.
Esta dramatização do corpo na mente é uma virtualização, quando a vida em seu ser atual se torna também virtual e não por menos se atualiza em seguida num processo de diferenciação do atual em virtual e diferençação do virtual em atual. O ser em seu corpo se diferencia e se virtualiza na mente e esta se diferença e se atualiza no corpo e ambos devém diferentes acontecendo esta virtualização e atualização ao mesmo tempo e no mesmo espaço, isto é, como um acontecimento, pois a diferenciação do corpo na mente é a diferençação dela nele. Mente e corpo são, portanto, o ser em toda a dramatização de sua vida. Cada afeto é virtualizado num conceito pela diferenciação e cada conceito atualizado num afeto pela diferençação. O que é inconsciente se virtualiza no consciente e o consciente se atualiza no inconsciente. Cada afeto inconsciente devém um conceito consciente do ser que devem ser e outro ser uma multiplicidade de vezes sem retorno em seus afetos e conceitos a cada momento.
Ao pensarmos no que somos em afetos e conceitos, percebemos o quão dramática é a vida em cada acontecimento dela e esta percepção torna ainda mais dramático seu devir, pois a cada ser temos a percepção de quem somos e de quem não somos, isto é, do ser e do não ser. Ser em cuja forma temos a percepção do corpo e da mente de modo presente no tempo e no espaço, em sua presença, e não ser no qual esta forma se desfaz devendo outra a cada momento sem poder ser mais o que era antes em seu ser, devindo ser diferente. Em cada devir ser diferente adquire-se consciência do ser, do que é em si, isto é, em seu conceito, mas não menos no seu afeto, em sua inconsciência, pois não se é consciente do ser, não se tem um conceito do que é sem se ter um afeto do ser inconsciente no mesmo momento, ainda que este não seja percebido conscientemente num conceito.
É no momento em que temos consciência inconsciente de que não há retorno que o ser adquire maior dramaticidade, que há uma potencialização da existência dramática do ser, que pode vir a ser trágica, com a morte iminente, o ser deixando de ser outro abruptamente, a vida deixando de existir na evolução do seu drama, pondo-se fim ao drama da existência. Neste sentido, a diferença deixa de se repetir em si mesma e o que se busca de modo dramático é a não repetição em si mesma dela, o devir ser novamente. O ser humano quer permanecer em seu ser (in)consciente, quer fugir ao drama da existência, quer retornar a ser o que era antes constantemente em sua consciência e inconscientemente. Quer negar, através do retorno a si, ao que é, ao ser, toda e qualquer mutação da vida, negar o ponto de mutação da vida devindo outra, diferente em seu ser de modo finito em seu corpo e infinito em sua mente, quer negar a vida em sua imanência a partir de uma transcendência dela na qual todo o drama cesse num não ser diferente.
Este momento de negação do ser diferente é o momento de identidade do ser no qual ele retorna a si constantemente para não ser diferente e busca ser o mesmo negando cada mudança de si, sem querer mudar, sem admitir a mudança de si, em si e para si, mas também para os outros. É o momento em que a dramaticidade se potencializa não em duplicidade e multiplicidade no devir do ser diferente, mas em unidade, quando uma vida em sua forma devém a vida em sua forma. É o momento em que todo devir ser se torna um dever ser e a repetição do devir ser se torna uma repetição do dever ser, quando a vida deixa de devir para dever.
Quando a vida passa a dever ser idêntica, o drama da existência se unifica e toda a infinitude do drama na mente e finitude dele no corpo adquire uma forma de ser idêntica a si e análoga, igual semelhante a de todos os outros seres, e todos os seres devem ser da mesma forma, um repetindo o outro identicamente, de modo análogo, igual ou semelhante sem ser diferente. O drama do devir ser diferente se transforma no drama de dever ser idêntico, análogo, igual ou semelhante no corpo e na mente, nos afetos e conceitos, no inconsciente e consciente, a vida devendo vida ao ser vivida e não devindo uma vida diferente em seu ser. É quando todo o drama da vida se torna uma tragédia na qual a potencialização da vida no corpo e na mente se despotencializa, pois o ser deixa de ser diferente, perde em vivência, deixa de ser múltiplo, para ser único, e a vida em sua multiplicidade de vidas vivenciadas se transforma numa única vida vivida em todo seu drama e qualquer diferença dela é trágica por já não se poder mais retornar ao que era antes, não ser mais única, perder sua identidade, deixar de ser quem é, morrer, enfim...
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