O médico, o monstro e o fundo d'O Poço
O médico e o monstro (Dr. Jekyll and Mr. Hyde) é um filme de 1941 baseado no livro de terror O estranho caso do Dr. Jekyll e Sr. Hyde (Strange Case of Dr Jekyll and Mr Hyde), de Robert Louis Stevenson de 1886. Dele advém, provavelmente, o ditado "de médico e louco todo mundo tem um pouco", mas talvez sua origem seja mais antiga, advinda do romance O alienista, de Machado de Assis, publicado em 1882. Antiga história de terror e de loucura que é atualizada no governo brasileiro a partir de Luiz Henrique Mandetta, um médico e ministro da saúde de Bolsonaro, o monstro e louco a questionar o combate à pandemia do coronavírus (COVID-19). Todavia, há muito mais do que uma história de terror e loucura na realidade brasileira atual, há o fundo do poço ao qual nos direcionamos com a política fascista de Bolsonaro que pode ser comparado não a Adolf Hitler, mas a outro Adolf, no caso, a Adolf Eichmann, implementador logístico da Solução Final, o plano nazista de extermínio de judeus nos campos de concentração na Alemanha fascista durante a Segunda Guerra Mundial. O fundo de um poço que podemos atingir e no qual não queremos e que vemos representado no filme espanhol de terror O Poço (The Platform, 2019), de Galder Gaztelu-Urrutia, lançado recentemente.
O que une estas histórias fictícias e reais, literatas e cinematográficas, é uma doença individual ou social para a qual se busca uma cura, fictícia e real. Doença particular de um médico, Dr. Jekyll que sofre de dupla personalidade e na busca de uma cura perde totalmente o controle da doença e de si ao se deixar levar por uma personalidade monstruosamente assassina (Sr. Hyde) e pela "liberdade moral" que ela lhe possibilita, isto é, a falta de responsabilidade dos seus atos de "loucura". O fato de ser médico faz com que suas atitudes sejam mascaradas até de pessoas mais próximas como seu advogado Gabriel John Utterson, quem narra o caso e é responsável pelo testamento do Dr. Jekyll no qual é beneficiado o desconhecido Sr. Hyde.
O que é uma doença individual no livro de Stevenson se torna uma doença social com Machado de Assis, quando o Dr. Bacamarte, alienista ou psiquiatra da época, respeitado médico na Europa e no Brasil resolve retornar à sua cidade natal, a vila de Itaguaí, para exercer sua profissão, mas acaba por se dedicar ao estudo da psiquiatria e cria na cidade o manicômio Casa Verde. O que se vê a partir disso é um terror muito mais social do que individual ficcionado por Machado de Assis que demonstra muito antes de Foucault como loucura e poder se entremeiam. Isto porque em sua busca por uma cura da "loucura" das pessoas na cidade, o Dr. Bacamarte começa a internar todos os que demonstram algum "desvio de caráter" estimulando uma revolta armada encabeçada por um barbeiro, o barbeiro Porfírio, também chamado de Canjica, a Revolta da Canjica, para acabar com as internações por terem um objetivo econômico.
Ao deixar claro que não se tratava disso ao recusar pagamentos, o Dr. Bacamarte calmamente evita a revolta e não é interrompido em suas internações, mas não deixa de existir revoltosos até que a polícia chega para conter seus ânimos. Porém também os policiais ficam do lado dos revoltados e o barbeiro Porfírio se aproveita disso para dar um golpe na Câmara de Vereadores e assumir o poder e acabar com as internações do Dr. Bacamarte. Sem sucesso, pois o doutor convence Porfírio que se torna seu aliado e as internações continuam até que outro barbeiro, o barbeiro João Pina entra na história para conduzir uma outra revolta que depõe Porfírio e toma o poder também pretendendo acabar com as internações no manicômio da Casa Verde e também é persuadido a manter o manicômio aberto, bem com estimula ainda mais as internações.
Depois de internar 75% da população da cidade, eis que o Dr. Bacamarte, percebe um primeiro erro, mas de método, pois todos pareciam ter um "desvio de caráter" e não havia nenhum padrão nisso, logo, não podia ser investigado como uma doença. Diante disso, ele conclui que somente aqueles que mantém o que seria uma "firmeza de caráter" são os verdadeiros loucos e interna o vereador Galvão, que queria impedir a internação de vereadores. Por fim, percebe que ninguém é perfeito totalmente em seu caráter e o único que se dizia verdadeiramente com "firmeza de caráter" era ele próprio, o Dr. Bacamarte. Pensando assim libera todos do manicômio e se interna na Casa Verde, pois era o único "louco" ou "anormal" ou "alienado" na cidade, e o fato de ser médico mascarava isso pra si e para muitos, além de políticos se aproveitarem disso para obter e se manter no poder.
Não é difícil perceber uma certa analogia nestas histórias e a atualidade do país diante da pandemia atual do coronavírus (COVID-19) ao vermos, por um lado, a atitude do ministro da saúde Henrique Mandetta e, por outro, a de Bolsonaro, o presidente do Brasil, com a diferença de que na realidade, diferente da ficção, não são as mesmas pessoas, mas duas pessoas distintas. A analogia se faz presente ao percebermos os esforços de Mandetta em atuar contra a pandemia seguindo as diretrizes da Organização Mundial da Saúde como fazem agora todos os governos e os maiores países do mundo que mais sofrem no momento com a pandemia como Itália, Espanha, França, Inglaterra e Estados Unidos ao perceberem que negar a doença como uma simples gripe ou "gripezinha" por seus sintomas levou e pode levar à morte de milhares de pessoas em cada país e milhões no mundo. Neste sentido, o médico Mandetta, no seu último pronunciamento, recomendou o isolamento social, a prevenção por meio de cuidados higiênicos, a informação sobre a doença por meios de canais oficiais de saúde e não redes sociais e congratulou a atuação política econômica social e sanitária de governadores, políticos do Congresso, secretários e todos que fazem parte da área da saúde nos hospitais que estão na linha de frente do combate ao coronavírus e cientistas na busca de uma cura.
Por outro lado, o monstro e louco Bolsonaro nega totalmente a doença considerando-a uma "gripezinha" por conta de seus sintomas e desautoriza tudo o que o médico Mandetta e todos os governantes gestores de saúde no mundo hoje fazem. Pois, Bolsonaro promove e participa de manifestações e aglomeração social contra o isolamento; não se preocupa com atos de prevenção ao se aproximar das pessoas e pega na mão, abraça pessoas nas manifestações (pior, estando possivelmente infectado, já que não mostrou seu exame negativo e se nega a divulgá-lo e que o divulguem, alterando até mesmo a lei de informação para isto); divulga através da Secretaria de Comunicação (Secom) do Governo Federal manifestações contra o isolamento e propaga nas redes sociais informações falsas (fake news) sobre a cura do COVID-19 por meio de hidroxicloroquina, ou cloroquina, que pode matar e já ocasionou mortes de pessoas com sua utilização (ver aqui); além de questionar os canais oficiais de informação da doença como os de governos estaduais e a imprensa dizendo que estão falsificando dados e produzindo "histeria"; por fim, indo contra, minimizando e combatendo as decisões políticas, econômicas, sociais e sanitárias de políticos do Congresso e governadores no combate à doença.
Diante de duas personalidades tão diferentes, não é difícil fazer a analogia com a história de terror do médico e monstro e do alienista e o louco, ainda que não sejam a mesma pessoa. Ambas podem ser a mesma pessoa no caso de Mandetta, pois não deixa de assumir um discurso bolsonarista em sua crítica à imprensa e já ter questionado o isolamento social por pressão de Bolsonaro e seus aliados seguidores. Todavia, Mandetta não é tão monstro assim e sua ação tenta inibir o monstro e louco Bolsonaro de se impor, mesmo que não possa inibir muito, e, como na ficção, sirva no fim para mascarar as atitudes de Bolsonaro para muitos que pensam que se ele como presidente é um monstro e louco, pelo menos tem no seu governo Mandetta para dizer que não é um monstro como muitos pensam e que está fazendo o bem para o país, que está procurando a cura para a doença da "histeria" que estão produzindo por uma "gripezinha" e ele, Bolsonaro, é que quer salvar a nação. A diferença de Bolsonaro para o Dr. Jekyll e o Dr. Bacamarte, da realidade e a ficção, é que Bolsonaro não é um médico na realidade e ele não tem neste caso nenhum apreço pela humanidade, individual e social, no caso, nem apreço por sua vida e nem pela vida de todos os brasileiros, por isto não tem o remorso e a culpa e nunca vai procurar uma cura de fato para si como monstro e louco, tão pouco vai admitir no fim da história que é o histérico, o louco e um monstro em sua busca pelo poder.
Eis um grande problema para nós, brasileiros, mas também para o mundo na realidade diante da pandemia do coronavírus (COVID-19) e que é o fundo do poço no qual podemos chegar análogo ao do filme O Poço (The Plattaform), uma distopia de suspense e terror muito difundido no Brasil recentemente ao pôr em questão a ausência de solidariedade entre pessoas no isolamento social em que vivem, presas numa torre vertical. Isolamento social devido as pessoas estarem presas nesta torre por crimes ou por vontade própria divididas por andares, duas em cada, no qual passam um mês em cada andar e são trocadas com sua companhia para outro aleatoriamente enquanto dormem. Ausência de solidariedade, porque em cada andar tem um buraco no centro por onde desce uma plataforma com a comida preferida de cada um dos presos/hóspedes que passa por todos os andares sem se impedir que qualquer um possa pegar a comida do outro dependendo de sua fome, em princípio, mas também do seu egoísmo, da sua maldade ou da loucura que a fome produz transformando-os em animais famintos comendo o que veem pela frente e até mesmo se tornando canibais. A única regra desta prisão vertical e punição se não a seguir que visa a comunidade e uma certa igualdade entre todos é que ninguém pode acumular a comida guardando-a enquanto a plataforma passa pelo andar e pára pra que cada um deles possa comer, do contrário, todos morrerão de frio ou de calor com o aumento ou diminuição de temperatura na torre.
Em meio a isso não é difícil imaginar que aqueles que estão acima na torre tem o privilégio de se alimentarem primeiro e, logo, comerem à vontade, mas também de fazerem o que querem com a comida, inclusive estragá-la, propositalmente ou não, pois mudando aleatoriamente de andar depois de um mês pode-se comer bem ou mal dependendo do andar em que acorde, e quanto mais fundo na torre, mais fome. Isto quer dizer que a voracidade aumenta quando se chega ao andar de cima devido à fome que se passou no andar de baixo e já não se pode controlar suas ações estragando comida, mas também se pode estragá-la por egoísmo ou maldade não pensando em quem vai comer depois na plataforma de baixo. No fim, quem está no fundo do poço está à mercê da vontade dos que estão em cima e no meio da plataforma e o que acontece em geral é não terem comida para se alimentar e o que lhes resta é o canibalismo numa luta pela sobrevivência do mais forte ou o suicídio. Neste sentido, as ações individuais dependem da estrutura em que estão inseridos para o bem e para o mal, mas também de cada um dentro dela, de como cada um suporta a fome e o que faz por causa dela em relação a si e aos outros, em solidariedade ou não. O grande problema, no fim, é como sair da torre ou como implodi-la de dentro destruindo seu mecanismo por meio de uma solidariedade mecânica, isto é, baseada no parentesco e tradição ou por uma solidariedade orgânica, forçada por uma situação de dependência em geral, em ambos os casos, uma solidariedade coercitiva como diz Durkheim, no filme, estas solidariedades demonstradas pela mãe e sua filha e pelos dois companheiros Gorenga e Baharat no fim do filme.
Com uma mensagem ambígua e paradoxal, o filme O Poço (The plattaform), por um lado, demonstra como ser médico ou monstro, alienista ou louco depende da estrutura em que se está inserido não importa em que andar da torre e que a linha tênue entre um e outro depende da fome de cada indivíduo num determinado momento. Por outro lado, de que é possível escapar a esta estrutura e seu mecanismo com uma certa racionalidade ou misticismo, ou ainda com uma boa vontade, mas não sem violência e sem morte, e de modo algum ileso no corpo e na mente. Ou seja, não se pode ser médico sem ser monstro, ser alienista sem ser louco, sem se conseguir destruir totalmente a estrutura, existindo apenas uma luz no fim do poço, possível, mas ao mesmo tempo impossível que depende de cada um acreditar, sem possibilidade de salvação, apenas manutenção de sua vida, esteja no fundo do poço ou não.
E assim chegamos ao problema mais sério do médico e o monstro, do alienista e o louco, que é especificamente o problema de Bolsonaro quando já não se pode mais discernir nenhum destes opostos e não se pode julgar e incriminar um sem o outro, ou violentar um sem violentar o outro na medida em que são julgados. É a partir de Adolf Eichmann e de todos aqueles que compactuaram com o fascismo nazista alemão antes e durante a Segunda Guerra Mundial, o problema de se obedecer alguém que quer implementar a Solução Final para os judeus na Europa que se pode analisar o problema de Bolsonaro que quer implementar a Solução Final para os brasileiros diante do coronavírus (COVID-19) e dos bolsonaristas que o seguem fanaticamente. A analogia não é sem propósito quando se analisa o julgamento de Eichmann em Jerusalém por ser o implementador da política da Solução Final, pois é ao mesmo tempo descrito como um monstro/louco e como alguém que apenas obedece ordens como militar responsável e, neste caso, age como um médico/alienista, um instrumento apenas de um poder maior que o seu, o de cientistas e políticos que tem o saber de verdade do que fazer e como fazer para evitar a doença que são os judeus para os alemães fascistas na época.
Quando se analisa o que é denominado como enigma Eichmann pode-se perceber como há uma analogia entre esta figura iminente do fascismo nazista alemão e Bolsonaro, não por menos um enigma para aqueles que não sabem como ele conseguiu chegar ao poder. Preso em 1960 na Argentina e julgado um ano depois em Jerusalém como "planejador logístico da Solução Final", Eichmann é representado tanto como um monstro e a representação demoníaca do mal como é representado por alguém extremamente racional, um militar obediente à hierarquia e responsável em suas funções, um exemplo em sua função burocrática militar no regime fascista, alguém que não é um corrupto e, portanto, obedece fielmente e é leal ao Estado, indo até mesmo além do que deve fazer para o bem da nação. Estas duas demonstrações de Eichmann podem ser percebidas na Conferência de Wansee em 1942 quando se decide o extermínio dos judeus da Europa ou Solução Final em relação a eles, pois como diz em Desobedecer, Frédéric Gros (2018, pos. 1251):
Eichmann, presente à conferência como redator da ata de reunião, é logo nomeado 'administrador do transporte': responsável pela logística dos comboios da morte. [Mas] Em 1944, enviado à Hungria, organiza as deportações brutais, as 'marchas da morte', a que dá prosseguimento, mesmo quando Himmler lhe ordena interromper os extermínios, com o pretexto de que quer receber a ordem diretamente de Hitler.O enigma de Eichmann, mas também de Bolsonaro está, por um lado, em se considerá-lo como apenas um "médico" na sua ação logística de promover a Solução Final ou a cura para o problema da Alemanha nazista criada por outros, no caso, a cura para a doença que eram os judeus, considerados uma doença ou raça doentia em comparação com os arianos, o que faz Eichmann ser julgado somente por obedecer ordens, como é o seu desejo no julgamento dizendo que não é responsável por nenhuma das milhares de mortes, por nenhuma marcha da morte com a carreata de trens aos campos de concentração e por nenhuma ação que outros fizeram e levaram à morte. E, por outro lado, considerá-lo culpado por tudo isto tendo em vista que não foi apenas um observador atendendo aos que tinham mais poder do que ele, cientistas ou políticos, mas que deu prosseguimento a tudo isto mesmo quando não era necessário e quando não recebeu ordens para fazer, e assim é tão "monstro" e "louco" quanto todos os outros. Neste sentido, também contribui uma declaração que deu no julgamento dizendo que: "'Eu vou dançar no meu túmulo, rindo, porque a morte de 5 milhões de judeus […] na consciência me dá enorme satisfação'" (EICHMANN apud GROS, 2018, pos. 2888. Nota 2). Mas há ainda o entremeio destes dois lados, em que Eichmann pode ser visto como '' 'oportunista'", isto é, "Do ponto de vista das 'responsabilidades', ele não terá sido nem 'alguém que decide' nem um 'executor' de último escalão", mas em ambos os casos não escapando da responsabilidade menor ou maior (no caso de Bolsonaro não podendo escapar de ser o "'executor' de último escalão").
Diante deste enigma Eichmann, do médico e monstro, alienista e louco, a solução não é fácil diante de um julgamento, imprescindível de qualquer forma pelo país e internacionalmente em relação a Eichmann e como deve ser em relação a Bolsonaro. A dificuldade da solução para este enigma pode ser medida pela seguinte alternativa: ou julgar Eichmann/Bolsonaro individualmente como a "expressão de um ódio semita monstruoso" (no caso de Bolsonaro o ódio semita sendo substituído pelo ódio etnocêntrico, elitista, de classe, patriarcal, heterossexual, machista, cristão evangélico em particular) e livrar todos os outros fascistas/bolsonaristas a partir da expiação do mal que Eichmann/Bolsonaro representa em particular, pois como diz Gros (2018, pos. 1264) em relação a Eichmann: "Puni-lo é apagá-lo da face da Terra para livrar a humanidade de um ser diabólico.", punindo-o por uma moral religiosa como o mal ou filosófica como o mal radical, ou tratado como um louco em sua pulsão de morte; ou, por outro lado, vê-lo como parte de uma "gestão burocrática" que atua no "tratamento racional das massas humanas" e que ele representa apenas politicamente uma economia liberal que não trata pessoas individualmente, em pouca quantidade, numa família com laços afetivos, mas como números não importando se morrem milhares, pois "Quando se trata de matar cinco, dez pessoas, é possível visualizá-las, imaginá-las. Quando são milhares, centenas de milhares, milhões de indivíduos a exterminar [pelo fascismo ou pela pandemia], tudo se torna mais abstrato e inimaginável." (GROS, 2018, pos. 1290) E, neste sentido,
O tratamento de massa aniquila a imaginação do semelhante e destrói a sensibilidade para com o próximo, que estão na raiz da compaixão, do sentimento de humanidade. Os números são mudos, fechados em si mesmos, remetem-se a uma parte de cálculo puramente racional e fria em nós. (GROS, 2018, pos. 1290. Grifos do autor.)O problema de se dizer que Eichmann/Bolsonaro apenas faz parte de um sistema maior é vê como um imbecil ou um burro por agir deste modo tão obediente ao fascismo e à marcha da morte de inocentes e é assim mesmo, diz Gros que Eichmann quer ser visto e julgado para diminuir sua responsabilidade e pena de morte, e não por menos que Bolsonaro também quer ser visto, para não se imputar a ele a pena capital como político, o impeachment, além da pena máxima brasileira já que não existe a pena de morte aqui. Eichmann/Bolsonaro quer ser visto como alguém que faz bem o seu papel, a sua função militar em defesa do fascismo, mas também da nação, do país, do Estado, em outras palavras, do povo ariano (e de brasileiros que se consideram arianos por aqui). Neste sentido, ele assume uma responsabilidade por seus atos que obedecem a um juramento militar que fez à nação, como diz Eichmann (apud Gros, 2018, pos. 1330. Grifos meus.): "Se obedeci, se continuei a servir, ainda que condenasse moralmente a empresa criminosa, ainda que estivesse em desacordo com a Solução Final, é porque eu estava armado por um juramento." O juramento que fez como militar é a sua arma para se defender do julgamento de contribuir para a morte de judeus, é a arma que permite, segundo ele, a sua legítima defesa, arma que o defende do fascismo, sem defender que era seu, mas dos outros, pois diz:
Declarei para terminar que já na época, pessoalmente, eu considerava que essa solução violenta não era justificada. Eu a considerava um ato monstruoso. Mas, para meu grande pesar, estando atado por meu juramento de lealdade, eu devia em meu setor ocupar-me da questão da organização dos transportes. Não fui dispensado desse juramento... (EICHMANN apud GROS, 2018, pos. 1344)Monstro e médico, alienista e louco, fascista ou apenas obediente ao fascismo, Eichmann não deixa de ser responsável por seus atos, mas pensa e quer que se pense assim para se livrar do julgamento dos outros e da culpa, bem como da pensa imposta a ele. Com o poder, age como fascista, sem poder, se diz apenas obediente ao fascismo. Sua atitude, como demonstrou o experimento de Milgran é a de uma pessoa comum que quando é dada a ela o poder e autorização de infligir dor em alguém, faz isto sem contestação, e mesmo que conteste, não deixa de fazer, porque assim o quer mesmo que tenha alternativa de não querer e nenhum prejuízo vá lhe ocorrer se não quiser provocar dor em alguém. Tudo isto resume o fascismo, quando se é tão violento que não importa de modo algum a dor do outro, vista até mesmo com sorrisos abertos e gargalhadas por alguns e este é o fundo do poço no qual podemos chegar em nossa humanidade com Bolsonaro.
Todos aqueles que desprezam o fascismo evocado atualmente por diferenças inerentes à nossa realidade atual deixam de perceber o mais importante, que não importam as diferenças, o fim é o anseio pela morte dos outros e o desprezo por elas, o fim de toda religiosidade, filosofia e cientificidade produzidas em relação à vida, para se viver melhor, até mesmo na morte e depois desta. É o fim de toda a humanidade para além e aquém do fim do ser humano que permanece vivo, mas a vida já não importa para si, a não ser a que ele quer vivo sob o seu comando. Bolsonaro, assim como Eichmann, representa o médico e o monstro dessa vida desumana, na qual a humanidade não sobrevive ainda que viva.
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