Fala, filósofo!


Para os filósofos nada é mais importante do que falar. Não dialogar, conversar ou tagarelar. Falar. Expor o pensamento através do logos, de um discurso, ainda que seja escrito, pois quando escrevemos falamos, o que escrevemos fala por nós e outros falam por nós através de nós, do que escrevemos, o que falamos em textos. E falam muitas vezes muito mal de nós através deles, através de mal entendidos, não ouvindo direito o que falamos ou não querendo ouvir, querendo dizer o que querem falar, também como filósofos, pretendendo ser um, mas sem ser ainda.

Já muito tempo que os filósofos falam e falam mesmo que não queiram escutá-los. Falam mesmo que não tenha ninguém para escutá-los como se estivessem loucos. Filósofos falam tanto que mal começam a falar muitos percebem que ele é filósofo e dizem: Muito filosófico isso que você falou. E esperam também que falemos, procuram-nos para que falemos sobre algo que estão em dúvida, sobre algum problema: sei lá, fala qualquer coisa, você é filósofo!

De tanto falarem, há quem pense que os filósofos somente falam a verdade, de que nunca mentem, de que nunca enganam e nem se enganam. Pensa-se que ele tem sempre razão, sabem de tudo, afinal, filósofos falam de muitas coisas e sobre tudo de fato. Não temos papas na língua e isto faz com que falemos o que pensamos, sem que muitos concordem com o que falamos, mas falamos mesmo assim, mesmo que não entendam, pois não é fácil realmente entender o que falamos. Falamos muitas vezes sem saber falar, como falar, pois queremos falar de qualquer modo, somos filósofos.

Até mesmo quando estamos sozinhos e estamos calados estamos falando conosco ou com alguém imaginário sem que seja preciso alguém que nos escute. O filósofo não precisa e necessita que alguém lhe escuta, ele escuta senão a si mesmo em sua fala. Pode parecer egoísta, mas não é bem assim. É porque a fala é muito importante e ele prefere escutá-la a escutar qualquer outra e se escuta qualquer outra, a "sua" fala vem primeiro.

Problema filosófico: falar primeiro, ser o primeiro na fala, querer que a sua fala seja escutada primeiro e, pior, em detrimento de todas as outras. Problema do rei filósofo ou do amigo do saber, que se considera o único amigo do saber e todos os outros inimigos dele, do seu saber, do saber que fala e do próprio saber. Problema de quem começa a falar como filósofo e não sabe que escutar-se falar, ser filósofo, não quer dizer negar a fala dos outros que também querem falar. Problema de fazer da fala a sua fala, uma fala única, a única fala possível, quando o rei filósofo se torna um tirano na fala ao fazer dela sua numa ideia.

É a fala que nos torna filósofos e sem ela não somos, é lógico, pois tem relação com o logos, que é um discurso, mas também uma ordem, a ordem de falar e da fala. Podemos e ansiamos falar de qualquer modo, mas não de modo ilógico, nem mesmo quando falamos por meio de paradoxos de sentido, afirmando e negando ao mesmo tempo, falando e negando a fala, o que se fala, quando levamos nossa fala ao paroxismo e até mesmo a uma afasia, sem ter o que falar, sem saber o que falar, nem como falar. Problema mortal para um filósofo: não conseguir falar, expressar seu pensamento. Podemos gaguejar, podemos suspender o juízo em nossa fala, mas não podemos deixar de falar. A afasia é a nossa doença mortal.

Em geral, tudo que os filósofos falam é lógico, advém de um logos e falar é um privilégio do filósofo, um privilegiado na fala. É outra forma de nos reconhecerem: Vixe, como você fala bem. Parece um filósofo! Mesmo quando falamos mal, pois também falamos mal, é lógico, nossa fala ainda faz bem para algumas pessoas. Até nosso modo de falar mal, sendo pessimista e cético acalenta o coração de muitos que dizem: Você falou tudo que eu penso! O mundo é um eterno sofrimento e não tem porque existirmos...

Falamos tanto que as pessoas reconhecem em nossa fala sua própria fala, seu pensamento no nosso pensamento e é como se falássemos por elas ao ponto de repetirem tudo que falamos, tornarem-se semelhantes a nós como modelo de fala, o lugar da fala delas e, não por menos, tomassem a fala de nós. Não importa. Nenhum filósofo tem lugar de fala. Ser filósofo é negar o lugar de fala, pois não falamos por nada que seja uma representação: cor, raça, etnia, gênero, sexualidade, religião e se, por ventura, falamos a partir disso, nada disso nos representa como filósofos, pois não falamos para nós e nem para os nossos, falamos independente de nós e dos nossos, do que seja qualquer perspectiva de senso comum, de um senso que se reproduz numa comunicação em que todos concordam. Nossa fala vai além do que nos representa e não nos pertence como a fala de alguém, de um eu e nem na multiplicidade de num nós, por mais que falemos eu e nos multipliquemos em nós, num povo atual ou por vir, virtual.

Nós, eu, o filósofo não tem um povo para quem falar e do qual fala. Sua fala não é a fala de um eu, de um nós, é a fala do filósofo e qualquer um que se represente nesta fala, inclusive ele, não fala por si, fala por um outro que não é o filósofo, este que fala e vos fala. A fala do filósofo é a de quem não tem por que e por quem falar, mas fala mesmo assim e, por isso mesmo, quiçá, muitos buscam nele alguma representação para si, para sua própria fala, para o que querem falar e não conseguem falar como ele porque não são filósofos, não conseguem ser ainda. São eus, nós, um povo sem fala como ele, mas que não aprendeu a falar ainda filosoficamente.

Nada impede, porém, que o filósofo represente sua fala como tal numa cor, raça, etnia, gênero, sexualidade e religião, pois a fala do filósofo é livre. Dizer que o filósofo não se representa deste modo não quer dizer que ele não possa se representar como tal, que a sua fala tenha um lugar, que haja um lugar de fala dele a partir do qual ele limite sua fala e a queiram limitar. Cada filósofo fala por si e se este si é alguma representação, representado de algum modo, isto não importa para se ser filósofo, importa para quem o quer escutar como filósofo de acordo com sua cor, raça, etnia, gênero e sexualidade como se isto definisse quem o filósofo é e por que ele é filósofo, por que ele fala sem saber que a fala é que é indispensável para se ser filósofo e não quem a fala.

É a fala e não quem fala que define o filósofo, uma fala que não é sua, entendendo por sua todas as determinações que fazem da fala algo próprio e a apropriado para alguém que o escuta e se representa ou se sente representado em sua fala considerando-se idêntico a ele em seu pensamento e sentimento de modo empático, como se estivessem no lugar dele, no seu lugar de fala, o dele e o de quem o escuta e que quer estar junto a si ouvindo-o falar constantemente. Há também quem queira tomar o seu lugar da fala, de modo antipático, desterritorializando seu pensamento e sentimento depois de o ter territorializado em algum lugar, agindo e reagindo de modo político à sua fala, tornando-se seu inimigo, o inimigo da fala do filósofo. Representa-o e tenta destruir sua representação, como se o filósofo vivesse do que sua fala representa politicamente e não do que ela é para si como algo que, politicamente, não é seu, sua propriedade, algo própria, de um eu oposto a um não-eu em qualquer representatividade que possa ter o eu para o outro e o outro para si.

Se o filósofo fala e a fala é importante para si não é porque há nela uma identidade sem a qual ele não possa viver diante dos outros, representando-se para os outros a partir do lugar que fala. A fala do filósofo é importante porque ele se diferencia dos outros e é uma diferença em relação aos outros o que busca em sua fala, sem que esta diferença se oponha aos outros como seus inimigos de fala. A fala do filósofo é diferente, isto é, é uma fala que difere no momento em que ele fala e cuja diferença constitui a fala do filósofo, mas não dele, pois se é algo singular do filósofo, não é própria ou particular dele por sua cor, raça, etnia, gênero, sexualidade e religião.

Qualquer um pode falar e pode ser filósofo, mas poucos são filosóficos em sua fala e nem mesmo os filósofos são filósofos a todo momento em que falam. Não é sempre que sua fala é filosófica, que os filósofos falam. Há momentos em que sua fala é a fala de todos e de qualquer um, um senso comum e  também um nonsense, algo sem sentido até mesmo para si, e eles se contradizem no que falam, falam sem pensar, sem serem filósofos, sem pensarem no que falam, sem pensarem na fala e na importância que ela tem para si e sem a qual não existem.

Se a fala é tão importante para o filósofo é também porque poucos se preocupam com o que falam. Falar não importante para muitos. O que importa é o que dizem, é a representação de sua fala, como a fala ecoa na mente de muitos e faz muitos concordarem consigo e querem com sua fala se tornarem representantes de muitos. Apego ao som da fala, de sua voz, de suas palavras, e não à fala. Falam o que pensam, mas não pensam no que falam e, por isso, não são filósofos, mesmo que ainda possam ser. Querem ser o som, a voz, a palavra de muitos e nunca a de si, a fala de um filósofo.

O filósofo é o único que fala por si e por ninguém mais. Falar por si é já falar como filósofo e não como um eu filósofo. É personificar-se na fala como filósofo, no que fala fazendo da fala a fala de um personagem que fala esvaziado de qualquer eu e qualquer nós, mas não de qualquer responsabilidade, pois depende da fala e do que fala, e somente existe a partir da fala, do momento em que se fala, de um ato de fala, que, todavia, não é a fala de um ator ou autor. Se o filósofo é um personagem ele não é a criação de um ator ou autor, de alguém que cria a fala de um personagem e a pode retirar a qualquer momento, ou nem mesmo dar a ele uma fala. O personagem que é o filósofo é uma persona originada da própria fala no momento em que fala e como fala e ninguém fala como ele, por ele, nem tão pouco lhe diz o que falar, como deve ser sua fala.

A fala origina o filósofo e o filósofo se origina pela fala, mais do que pelo que fala. É este suplemento da fala, um falar a mais do que outros falam que faz dele um personagem criado por um ato de fala propriamente dito e não por alguém para falar deste ou daquele modo e falando como filósofo quando assim lhe aprouver. Não há encarnação filosófica e, sim, desencarnação do filósofo enquanto personagem, persona que se origina ao se desprender de sua carne, osso e subjetividade (alma, eu, espírito, consciência) de modo diferencial.

É um a-partamento de si que cria o filósofo a partir da fala de um personagem que é si e nunca o mesmo. Ninguém se torna o mesmo quando se é filósofo e nem se é filósofo para se tornar o mesmo. Nunca nos tornamos quem somos quando nos tornamos filósofos, pois nunca tornamos a quem somos depois de ser filósofo. Não há retorno, nem eterno retorno, para o filósofo, quando alguém se torna filósofo. Ser filósofo é já abandonar qualquer perspectiva de retorno possível ao ser em sua identidade, ao que é, até mesmo no futuro. A fala nunca retorna a não ser de modo diferente, isto é, em a-partamento consigo, e é na diferença da fala, num a-partamento consigo pela fala, que nos tornamos filósofos sem qualquer possibilidade de retorno a nós mesmos, a não ser quando se fala por outro, que não é o filósofo, o personagem, mas sua representação em carne e osso falando em alto e bom som no teatro e espetáculo da vida até que esta silencie, mas não o filósofo, que ainda fala por muito tempo mesmo que silencie ou seja silenciado em sua vida.

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