Miles Davis, o artista e quem ele é


Conhecemos o artista antes de sabermos quem ele é e acreditamos que o artista e quem ele é são a mesma pessoa e amaldiçoamos um como o outro confundindo ficção com realidade sem saber que, na realidade, nunca conhecemos um e outro, pois ambos se misturam no devir de suas diferenças. Assistir ao documentário Miles Davis: inventor do cool (Miles Davis: birth of the cool, 2019), de Stanley Nelson, faz perceber o quão distante estamos de conhecer o artista sem saber quem ele é e quem ele é sem a arte, sem nunca saber quem é quem.

Já no começo do documentário percebemos o quão difícil é percebermos a diferença entre o artista e quem é, pois, como diz Miles Davis, "A música sempre foi para mim uma maldição. Sempre me sentir atraído por tocar. Está em primeiro lugar na minha vida. Vou dormir pensando nisso e acordo pensando nisso. Está sempre presente. É minha prioridade." É assim, não por menos, que a arte nasce, quando já não se pode mais evitar o ato da criação disto que já não é mais si mesmo, mas a possessão de algo que o torna artista, no caso de Miles Davis, um músico. Tudo muda deste então e nunca mais se é quem é, a arte começa a fazer parte de quem é e quem é dela, vive-se literalmente pela arte, pois é a arte que mantém o artista vivo, isto é, aquele que é o artista e muitas vezes não se sabe quem é até que alguém documenta e testemunha sobre sua vida, amigo, familiares, ilustres desconhecidos que nem se sabia que faziam parte dele.

É uma estranha sensação assistir ao documentário de um artista como Miles Davis depois de escutar suas músicas. Amamos e odiamos ao mesmo tempo o artista e quem é como muitos daqueles que o conheceram em vida. Amamos por sua arte, por cada nota que soa e permanece nos nossos ouvidos por um longo ou breve tempo, mudando imperceptivelmente nossa percepção, introduzindo nela uma variação de afetos que muda quem nós somos, como mudou a si, quando começou a tocar e nunca mais parou, nunca mais quis parar, como nós ao escutarmos Kind of blues... Odiamos porque aquele artista que, em meio à nossos afetos tristes nos produz alegria com suas harmonias desarmoniosas, também produz afetos tristes quando conhecemos um pouco de sua vida. E não é fácil admitir esta tristeza, suportar afetos tão tristes produzidos por sabermos quem é um pouco, tanto quanto os alegres pelas suas músicas.

Mas, no meio desta desarmonia de afetos que é a desarmonia do artista e quem ele é, Miles Davis, não diferente de muitos outros artistas grandiosos como ele, como Nina Simone, cujo documentário O que aconteceu, Nina Simone? (What happened, Nina Simone, 2015), segue uma mesma linha melódica crescente e decrescente e crescente novamente num ritmo alucinante, ouvimos Miles Davis dizer: "Viver é uma aventura e um desafio. Não tinha a ver com ficar parado e ter segurança. (...) Para continuar criando, tem que se comprometer com a mudança." É então que percebemos o quanto não conhecemos o artista e muito menos quem ele é ao pensarmos que deva ser tão grandioso em quem é como é grandioso para nós enquanto artista. Não queremos que falhe, nem na arte, nem na vida, não lhe damos o direito de falhar, de correr o risco que Miles Davis resolveu escolher, e somente um artista pode escolher, que é o risco de falhar, e fez das falhas, de sua vida e em sua arte, quem foi e o artista que foi.

Herbie Hancock, pianista que tocou com Miles nos faz perceber o quão falha é nossa visão do artista e de quem foi Miles Davis quando diz: "Em outras palavras, não se fie no que você sabe. O que ele estava procurando era o que você não sabia." Miles fez de sua arte a arte do não saber, de não saber quem é, de não saber como se torna um artista, só se sabe improvisando, isto é, falhando, corrigindo uma nota com a nota seguinte, deixando o erro ali, sem esquecê-lo, como parte de sua vida e de sua arte. Mudou com a arte e esta mudou com ele numa variação constante de quem era e do artista que era em seus afetos e sons, afetando com seus sons e soando seus afetos a cada nota, melodia, harmonia e desarmonia do artista e de quem era.

A cada momento do documentário compartilhamos com os testemunhos de quem foi e do artista e oscilamos nos afetos e sons, mudando invariavelmente nossa percepção de si. A música nos aproxima de si e quem foi nos distancia, como foi com quem o conheceu como artista e quem era, principalmente, as mulheres que o amaram e ao artista, e também o odiaram, separando-se por não aguentarem mais. É não por menos a partir delas, destas que estiveram tão próximas a si que o artista e quem é mais se distanciam e se diferenciam em nossa visão e conflituam aos nossos olhos a nos fazer escolher e decidir, como elas, entre um ou outro, pois com os dois não podemos conviver, ninguém consegue, a não por um breve momento.

É impossível separar o artista de quem ele é, a ficção da realidade, dir-se-ia, o que resta é suspender o pensamento fenomenologicamente, não por não se querer decidir entre um e outro, mas porque qualquer decisão entre um e outro, o artista e quem ele é, destrói ambos. Já não podemos olhar para um ou outro sem lamentarmos por não ser um só, mas totalmente diferentes, o artista e quem ele é, e já não podemos olhá-lo do mesmo modo que antes. Talvez se diga que, neste momento, a realidade perde o seu véu e olhamos para ela com os olhos abertos, mas, de fato, isto não acontece, pois é o levantar do véu que se interpõe entre a realidade e a ficção que faz existir uma na outra, uma transpassando para a outra, e depor o véu é já perder uma e outra, a ficção e a realidade.

Querer decidir entre quem se é e o artista é querer separar duas coisas que só existem juntas, ainda que diferentes. É querer submeter a diferença a uma identidade, a uma única escolha, ou o artista ou quem se é. Tudo aquilo que o artista já não pode fazer desde o momento em que a criação, esta possessão de que fala Miles Davis, domina quem se é e já não se pode mais ser quem se é sem ser artista. Já não podemos separar Miles Davis em quem em seus demônios da possessão da própria arte e seus sons angelicais. Demônios e anjos fazem parte de quem e é do artista que ele é, como de muitos outros artistas dominados pela criação artística que ninguém, além deles, ou de outros artistas, poderá compreender como é, pois jamais se põem em risco como eles e do risco mesmo de perecerem em quem são, do artista que são.

Há quem não entenda, pois isto mesmo não é questão de entendimento, como é possível que se esteja diante de duas coisas completamente diferentes, quem é e o artista, quando se está diante de uma e a mesma presença, pois assim visa ou  aqueles que somente conseguem ver uma coisa ou outra, sem conseguir perceber a variação de uma a outra, o devir de uma na outra Devir não dialético porque não há oposição, as diferença não se opõem e, sim, a variam de uma a outra, uma na outra, um afeto num som e este num afeto. Neste sentido, diz Miles: "Criatividade e genialidade em qualquer tipo de expressão artística não tem nada a ver com a idade. Ou você tem ou não, e ser velho não o ajuda a conquistar isso." Criatividade e genialidade não está nos opostos, ser velho ou novo, mas no que você faz no momento, no improviso, com seus afetos e os sons que pode criar a partir de cada momento variando-os, afetos e sons, um no outro, devindo quem é no artista que é em variação contínua.

Quem quer ver um e outro, o artista e quem ele é como um só ou quem quer ver apenas um dos dois, ou ainda, quer opor um ao outro, e odiar um pelo outro, em geral, o artista por quem ele é, nunca vai entender que é deste devir de quem é no artista que é e do artista que é em quem é que nasce a arte, desta harmonização das diferenças em si mesmo e em seu arte. Um momento singular que Miles Davis levou ao absoluto ao democratizar o jazz harmonizando suas diferenças e as de quem tocava consigo, artista como ele, potencializando cada um em quem era e no artista que era. E somente uma criação artística consegue harmonizar as diferenças, sublimar as diferenças, qualquer juízo teórico ou prático, de valor, sobre elas.

Não importa se você gosta de jazz, de quem foi e o artista que foi Miles Davis, ao assistirmos o documentário sobre si percebemos esta sublimação, uma suspensão do juízo, o dele e o nosso, e é preciso perder o juízo para se perceber o quão grandioso é o nascimento da arte a partir deste devir de um no outro. Uma grandiosidade que se impõe sobre quem se é e dificilmente se consegue suportar sem falhar, mas é das falhas, mais do que das não falhas que a arte nasce, dos afetos tristes mais do que dos alegres. E talvez Miles Davis nunca admitisse, mas o que sua professora de música na escola de artes Juilliard lhe disse talvez tivesse razão, quando disse numa aula que o blues vem do sofrimento negro e de sua escravidão, pois ao olharmos para sua vida em retrospecto, difícil não perceber isto, o que não quer dizer que o blues, ou mesmo seu jazz, seja de sofrimento.

O artista e a arte nunca valorizam o sofrimento, e tão pouco visam reproduzi-lo, e talvez fosse isto que Miles Davis quisesse ensinar sua professora e por isto abandonou a escola de música para tocar, e também para sofrer sendo quem era. Não é do sofrimento que a arte nasce, não é preciso sofrer para se ser artista, não é dos afetos tristes que se compõem uma música, mas tão somente dos afetos, de suas variações e das transformações destas variações em sons e tons que afetam nosso corpo e alma. Se são alegres estes afetos, nos alegrando e, se são tristes, também, pois não há tristeza na arte, somente em quem se é e não se pode evitar ser, triste em algum momento com o racismo, a dor de uma separação, o amor perdido, o juízo que já não se tem mais, entorpecido pelas drogas e não sublimado pela arte como foi Miles Davis em alguns momentos.

No fim, tudo não passa de realidade, a do artista e quem é. Não há diferença entre ficção e realidade, a não ser na ilusão daqueles que não veem nenhuma realidade na arte, de que não há ficção e, sim, virtualidade, uma virtualização da realidade, um elevar da realidade à excelência. Algo que poucos de nós conseguimos em algum momento a não ser que sejamos artistas como Miles Davis, o inventor do cool, não importa quem ele seja, pois se não fosse quem foi, nunca seria o artista que foi e ainda é para nós que continuamos sem saber quem é.

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