Aquele abraço...

março 13, 2020

O abraço é o mais próximo que podemos estar de alguém. Só podemos abraçar alguém se estivermos próximos dela. Ter alguém próximo é o princípio do abraço. Não se pode abraçar quem está distante, somente lembrar aquele abraço, passado e porvir, lembrado de se ter dado um dia e que se espera dar novamente, no retorno, e eterno retorno daquele que queremos próximo ainda que distante, para abraçar, mesmo que não queira nos abraçar, forçando um abraço com o desejo de querê-lo ter próximo a si, como amigo ainda que seja seu inimigo.

Apesar de, ao nascer, sermos envolvidos nos braços de uma mãe e de um pai, e sermos ninados no aconchego do peito por um bom tempo depois, mal começamos a andar deixamos de ser abraçados e a recusar abraços mesmo como se fossem prisões. As pernas nos dão liberdade para corrermos em casa dos nossos pais, livrando-nos de suas mãos a querer nos pegar, não mais para nos abraçar, mas também para nos bater. Ao poucos mais para bater do que para abraçar e, pouco a pouco, recusamos os abraços de nossos pais, sentimos vergonha de sermos abraçados por eles, de todo o mimo dado a nós, tratando-nos como um bebê ou criança que já não somos, não queremos ser, ansiosos por nos vermos como adultos aos 3, 4, 5 anos de idade algumas vezes em birras vencidas apenas pelo cansaço.

Duram poucos os abraços do pai e da mãe, dos irmãos mais ainda, muitas vezes inexistem. Pais recusam, muitas vezes, abraçar os filhos por uma falta de jeito, por muito tempo não serem abraçados por seus pais com a mesma recusa destinada por uma tradição que obriga à mulher-mãe o cuidado da criança e da qual o pai se serve para recusar pô-la nos braços por não ter jeito, isto é, costume, o costume que diz para ele não pegá-la, pois isto é coisa de mulher. Questão de tradição, religiosa, mas também de legitimidade, de herança, de direito, em que se dá direito ao homem-pai de recusar abraçar o filho, de não o tirar do chão onde era colocado à espera do abraço que legitime sua paternidade, que lhe dê uma herança, um nome e riqueza.

À mulher-mãe, obviamente, não se pode, segundo a mesma tradição dar-se este direito. A mulher é mãe quando carrega o filho, dentro de si antes de nascer e abraçado a si quando nasce, que o envolve já em seus braços mesmo quando está com ele ainda em germe na barriga e espera ansiosa por tê-lo ao peito. É a mulher ao ser mãe que nos ensina o abraço, um abraço que ninguém mais pode ensinar, com seu próprio corpo nos envolvendo antes de nascer e do qual sentimos falta depois de nascidos. Uma falta nunca compensada, traumaticamente superada, pois permanece, para todo o sempre, em nós, a lembrança daquele abraço, o abraço de mãe, o abraço que nos faz viver como o abraço da terra, considerada por isto mesmo nossa mãe, o qual sempre buscamos em vida e temos, em morte, para sempre, de volta àquela que nos abraçou em vida, nossa mãe, que partiu antes de nós, ou nós antes dela, e, por ela esperamos abraçados pela terra como nossa mãe na ausência desta.

Diz-se do abraço que é feito de braço, mas é todo o corpo que se abraça, que se envolve num abraço. Ao recusarmos os abraços maternos e paternos, ou nos serem recusados, é todo o corpo que sente falta de um abraço, e chora. É todo o corpo que se faz presente em cada lágrima e que se ressente da ausência de um abraço à medida em que o recusamos, que nos distanciamos dos braços de nossas mães e pais, querendo ser grande. Aos poucos, percebemos, porém, a grandiosidade do nosso erro infantil, pois é um abraço que mais desejamos, não apenas dos de nossas mães e pais, mas de alguém, amigos, namorados, maridos, filhos, filhas e até mesmo de um inimigo que se faz, na carência de um abraço, nosso amigo.

A depender do caso, porém, a recusa e o distanciamento dos abraços de mães e pais, o isolamento em quartos fechados, em livros, mídias e redes sociais, não dão mais chance para abraços, para a menor possibilidade deles. O abraço é visto como um mal, como uma invasão de privacidade, como um assédio, como um excesso de carinho, de aconchego, de amor indevido. Não se pode abraçar, deve-se mesmo recusar qualquer abraço, qualquer contato minimamente do corpo ao se abraçar, acostuma-se a viver sem abraçar e ser abraçado por alguém, recusa-se qualquer proximidade e qualquer um que se pretenda como próximo, amigo ou inimigo, em abraço.

O corpo, acostumado a andar sozinho, recusa os braços e abraços de alguém. Envolve-se tanto consigo mesmo que já não se envolve com mais ninguém, e nem deixa que o envolvam em seus braços e abraços. O peito materno já não é lembrado mais e o paterno, que nunca existiu, não se deseja mais em alguém. Édipo está morto. Não há mais luto pela morte do pai e do suicídio da mãe, pelos abraços não recusados de ambos ou recusado a eles. Há apenas o peito vazio, para fora, para o mundo que não o abraça e não pode lhe abraçar mais.

Antes de nascermos, o ventre da mãe é nosso mundo e o mundo a partir dela nos abraça, envolve-nos nos seus braços, toda a natureza envolvendo-se, fazendo-nos parte dela, deste mundo que nos abraça. É o abraço do mundo que começamos a perder ao nascer e que buscamos nos braços de nossa mãe, de uma mulher, mais do que de um pai, de irmãos e irmãs, amigos, amantes, namorados ou companheiros que o mundo nos possibilita. É o mundo que recusamos ao não querermos abraçar alguém, um mundo por vir em seus braços, sermos envolvidos por si, o mais próximo possível.

No abraço de alguém encontramos um mundo, passado e por vir, perdido e encontrado ao mesmo tempo. Um mundo, para além de uma casa, que é nosso lar, no qual moramos e namoramos nos braços de alguém em amor e amizade pelo outro, nosso por ele e dele por nós, não necessariamente recíproco, igual em medida, ainda que o outro seja nosso inimigo, não queira abraços, qualquer proximidade, e mesmo assim o damos, diante de toda recusa. Ao se recusar o abraço é a possibilidade de um mundo novo que se recusa e um antigo que se perde mais ainda, e com ele uma humanidade perdida diante de todo nosso individualismo, toda nossa independência, de querermos viver só, sem os braços e abraços de alguém que nos quer salvar, resgatar.

O abraço que se dá em alguém que recusou o abraço do mundo, e mesmo destruiu os abraços de alguém, é a possibilidade de, num mundo novo, resgatar o ser humano que se foi um dia, aquele que, em germe, foi abraçado pelo mundo, pela mãe, por um pai, e que aprendeu a não querer abraços de alguém, mais ainda a querer destruir todos os abraços que alguém queira lhe dar ou dar em outros. Dar um abraço é dar a possibilidade de uma nova vida a todos aqueles que já a perderam e mortos em vida já não tem mais quem os carregue, que os ponha nos braços, os abrace, e, em pranto, chore a morte do seu corpo morto em vida, excluído de todo e qualquer abraço, até mesmo do abraço da morte, aquele abraço dado em quem amamos quando morto tentando fazê-lo viver novamente...

Nada mais humano, neste sentido, do que um abraço. Abraçamos, inevitavelmente, quem, próximo de nós, consideramos nossos amigos, quem substitui o abraço materno, quem, em seu abraço, resgata-nos o abraço do mundo, e, neste sentindo, queremos mais ser abraçados do que abraçar. Queremos abraços e fazemos dos outros nossos amigos para abraçá-los, e amantes, namorados e maridos, para nos abraçar mais ainda e não deixarmos de ter quem nos abrace, mais do que dar-lhes abraços muitas vezes.

Todavia, nada mais demasiado humano do que abraçar um inimigo, aquele que destrói e quer destruir todos os abraços do mundo, aquele que não suporta ver alguém se abraçando, sendo abraçado, que, carente de abraço, recusa todo e qualquer abraço, toda e qualquer proximidade, aquele para o qual ninguém substitui o abraço de mãe e vive a ausência deste abraço sem querer qualquer outro em troca. É ao abraçar o inimigo que ultrapassamos todas as barreiras, fronteiras, horizontes possíveis de nossa humanidade, que o humano se torna demasiado, excessivo, falso, não verdadeiro, que se pensa que há abraços demais. Não por acaso ultrapassar estas barreiras que nós mesmos nos pomos como humanos é o mais difícil em ser humano, e que é requerido que se faça a partir de uma ética, seja ela religiosa, filosófica ou científica, amar o próximo, mesmo que ele seja estranho, desconhecido, diferente, de outra raça, etnia, cultura, estrangeiro considerado um inimigo, um criminoso que não mereça um abraço, mesmo estando próximo, muito próximo de nós.

Eis o limite em que nos pomos em nossa humanidade, mas também a uma religiosidade, filosofia e cientificidade: abraçar o inimigo. Dar algo bom a alguém mal. Ser bom com quem não é bom. Não é só uma questão de justiça, humana ou divina, uma obrigação moral, é uma questão ética abraçar alguém, e não abraçar também no caso, recusar dar um abraço ou recebê-lo. Faz parte do humano que somos abraçar ou não abraçar, e somente abraçamos quem não apenas está próximo, mas quem consideramos próximo o bastante para não temer abraçar, temer sermos presos em seus abraços, pior, mortos por seus braços que nunca aprenderam a abraçar.

A dificuldade de abraçar um inimigo é a dificuldade de sermos demasiado humano, de ultrapassarmos a nossa própria humanidade, de vermos os outros como inimigos, aqueles a quem devemos recusar um abraço. Ser demasiado humano é algo que a religião, a filosofia e a ciência requerem e dificilmente nosso senso comum, de abraçar amigo e não abraçar inimigos rejeita. É a nossa desculpa, afinal, por sermos humanos, e não conseguirmos ir além disto.

Quando no Evangelho de Mateus, na Bíblia cristã, é dito aos cristãos que se querem ser cristãos, "filhos do vosso Pai que está no Céu", é preciso que "Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem.", justificando que "Ele [deus] faz com que o sol se levante para os bons e os maus" e, com este sol não por menos abraça a todos; ou quando Nietzsche como Zaratustra aconselha o amor do distante antes do amor do próximo, por distante se podendo pensar aquele que está distante da humanidade tal como esta conhece a si mesma, aquele que é outro, requerendo que nos tornemos super-homem, que superemos a nós mesmos em nossa humanidade, indo além do humano que somos; ou ainda, quando a ciência, com suas criações tecnológicas, nos faz pensar as máquinas como o super-homem e não como nossas inimigas, em consonância com o que Nietzsche diz de que "acima do amor dos homens está o amor das coisas e dos espectros", que é o "o amor do distante e do porvir", isto é, o amor do super-homem, do Homem de aço dos quadrinhos criado a partir de uma ficção tecnológica científica; quando, enfim, tudo isto nos impele para sairmos de nós mesmos, irmos além de nossa humanidade para abraçar o outro visto como inimigo é aí que percebemos o quanto somos humanos e o quanto não somos tão humanos, demasiado humanos, e que, mais ainda, recusamos ser humanos e recusamos a humanidade àqueles que são nossos inimigos e, portanto, o direito a qualquer abraço neles, nosso ou de qualquer outro, deixando-os como filhos na terra sem pai, sem deus, mas ainda com mães, que nunca deixam de abraçar seus filhos, não importa o crime que cometam, assim como a terra que não deixa de acolhê-los na morte.

Filhos da terra sem pais, eis quem são os nossos inimigos, aqueles que nunca foram abraçados por um pai, humano ou divino, mas, lembremos, ainda são filhos de uma mãe que os abraça em vida e de uma terra que os abraça em morte, humanos, portanto, que requerem um abraço e nunca o esquecem como um bem que lhes falta para se livrarem do mal que é não ter quem os abrace, assim como nós nos lembramos todos os dias requerendo que nos abracem, pois todos nós somos vítimas e algozes da desumanidade que é uma vida sem aquele abraço...



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