Os filósofos e suas filosofias
Em suas Meditações Cartesianas, Husserl diz que os filósofos se encontram, mas não, infelizmente, suas filosofias. Se há um encontro de filósofos é porque há algo que os faz se encontrarem e se identificarem de algum modo, haver uma identidade entre eles, mas o mesmo não acontece, em contrapartida, com suas filosofias. Há, portanto, uma diferença entre elas, e entre eles a partir delas, um limite muitas vezes intransponível entre uma e outra ao ponto de se oporem, se repudiarem, negarem e denegarem umas às outras, conflitarem e até mesmo uma filosofia destruir a outra em pensamento, mas nunca um filósofo a outro, pois a diferença é de filosofias, ou ainda, de pensamentos e ideias.
O que vale para os filósofos e suas filosofias vale não menos para todos as pessoas que começam a pensar e uma diferença se produz em seus pensamentos em meio à identidade entre elas. Pouco a pouco, na medida em que um pensa diferente de outro, a identidade entre um e outro se desfaz. Não é difícil perceber isto em nosso cotidiano quando casais de amantes começam a pensar diferente um do outro, ou ainda, quando os filhos começam a pensar diferente de quem os cria, o mesmo acontecendo entre irmãos e a família deixa de ter uma identidade e há uma desunião nos encontros de família. Se a família é o protótipo da sociedade como tem sido há muito tempo defendido como tal, pode-se generalizar o que acontece nela e perceber como a diferença de pensamentos e ideias entre as pessoas produz conflitos entre elas ao defenderem seus pensamentos e suas ideias.
Na família, na escola, na universidade, no quartel, no trabalho, no hospital, na igreja ou no culto, no partido, na classe social, na cidade-Estado, em todos os espaços disciplinares e de controle, a diferença de pensamento e de ideias é um problema para a identidade requerida neles. Se há uma diferença de pensamento e de ideias é por meio do conflito e de uma superação dele de algum modo em proveito da identidade nestes espaços, o que dura algum tempo. O tempo de duração do conflito não é previsível e o modo como as diferenças são superadas não menos, pois depende de cada um dos envolvidos e do que pensam, podendo durar uma vida toda. Com o tempo, pode-se dizer, há uma disciplina e um controle novamente, dos nervos e dos pensamentos, e uma superação do conflito, e assim como se divide o espaço para superar as diferenças entendidas como conflitos, divide-se o tempo com o mesmo objetivo, dando-se a cada o devido tempo para que as diferenças sejam superadas também.
Em geral, a superação advém com o poder de um sobre outro em cada um dos espaços disciplinares e de controle, ou com a tomada de poder e a submissão inevitável de um a outro por um determinado tempo, pois é ao outro que se submete, ainda que ele seja um. É o outro que detém o poder sobre o um, sobre todos, e busca manter-se no poder a qualquer custo como pai, mãe, professor, militar de patente mais elevada ou empregado em um nível maior da empresa e, sobretudo, o patrão acima dele, o doutor num hospital, não aquele que atende, mas aquele que tem mais domínio em sua área, o padre na igreja e o pastor no culto, o político no partido e na cidade-Estado. A um qualquer ninguém se submete, é preciso que o um se invista de poder e se travista de outro pelo poder para que alguém se submeta a ele. O outro não necessariamente é diferente, porém, pois é o mesmo travestido de modo diferente. A diferença é a mudança ou alteração de um em outro, a alteridade que uma autoridade requer em seu poder e a própria diferença é suprimida neste processo. O poder requer esta transformação de um em outro para que seja possível a superação da diferença entre um e outro em seus pensamentos e ideias, o que não exclui a violência que o poder requer para ser mantido, pois não há poder sem violência, em princípio, a violência de um por outro, de si mesmo transformado em outro pelo poder investido nele ou por ele.
Se a história da humanidade é produzida pela diferença de pensamentos e ideias sem a qual não haveria nenhum devir histórico, isto é, nenhuma mudança que pudesse ser percebida como histórica, que diferisse o tempo em si mesmo numa história, em contrapartida, na história da humanidade, esta diferença é vista como problema gerando inúmeros conflitos bélicos e guerras que se reproduzem a cada momento em que as diferenças surgem entre as pessoas e tenta-se evitá-la com armas. Se, por um lado, as armas subjugam aqueles que pensam e têm ideais diferentes, e submetem-nos a uma identidade, não é por muito tempo que isto acontece e aumenta ainda mais a diferença entre os que pensam diferente. As diferenças sobressaem a cada vez que se tenta submetê-las à identidade de um travestido em outro e se há mudanças na história é porque as diferenças não deixam se submeter à identidade, um ao outro, tornando o outro significante em insignificante no fim da história.
A história pode ser reduzida, deste modo, àqueles que querem superar as diferenças por uma identidade como tem sido feito há milênios e tornam a história idêntica numa determinada época, que pode durar décadas, séculos ou milênios, e àqueles que buscam manter as diferenças, que não se submetem à uma época histórica, ainda que, no fim, sejam submetidos por ela. Mas não antes de produzirem mudanças em suas épocas que fazem a história mudar em si mesma, passar de uma época a outra, por não poder conter em si mesma as diferenças produzidas nela. O que não é tolerado numa determinada época mesmo assim produz uma mudança significativa nela e as calças punks rasgadas revolucionárias em termos de costumes são vendidas no mercado como a última moda.
São as diferenças que produzem a história ainda que sejam submetidas a uma identidade, o que leva, por fim, a uma questão paradigmática. Por que se tentar submeter as diferenças a uma identidade, o um em sua singularidade à alteridade e autoridade do outro? Por que submeter as filosofias como pensava Husserl a uma filosofia, a fenomenologia como filosofia transcendental tal como Descartes quis submeter as ciências em seus métodos a uma Ciência Universal e seu método duvidoso? Por que este ressentimento pelas diferenças e, ainda mais, por uma différance, uma diferença imperceptível, indizível, intraduzível entre filosofias, mas também entre filósofos a partir delas? Por que, além deste ressentimento, o ódio e a violência às diferenças de pensamentos e ideias que atualmente se defende e de uma geofilosofia ou territorialização do pensamento filosófico na terra a partir de um Estado e seu nacionalismo com a defesa de uma filosofia francesa contra uma filosofia alemã, ou ainda, uma filosofia americana contra uma filosofia francesa, mais ainda, de uma filosofia ocidental contra uma filosofia africana? Numa diferenciação territorial que ao contrário de valorizar as diferenças filosóficas visam destruí-las ou impor barreiras intransponíveis entre elas recusando qualquer diferença filosófica num determinado território à semelhança do que fazem os governos em seus Estados nacionais com os imigrantes de outros territórios? Ou ainda, do que faz uma maioria religiosa ou cultural em relação a uma minoria religiosa e cultural?
Pensar os filósofos e suas filosofias é, deste modo, pensar todos aqueles que pensam e, ao pensarem, diferenciarem-se em seus pensamentos cujas consequências disto são políticas, pois com a superação das diferenças, o que se tem é a identidade de uma cidade-Estado nação e seu autoritarismo, ditatorial e fascista. Em contrapartida, com a valorização das diferenças, é uma democracia para além da cidade-Estado nação que existe e somente pode existir com a diferença de pensamentos e ideias e, não por menos, somente na democracia podem existir os filósofos e suas filosofias. Por fim, neste sentido, querer destruir os filósofos e suas diferentes filosofias é o primeiro sintoma da destruição de uma democracia.
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