No apagar das luzes


A cada ano, em cada aniversário, acontece o mesmo ritual comemorativo. Bolo, salgados, refrigerante, ou alguma comida diferente, amigos, parentes, conversas, em alguns casos música, bebidas, dança e o que se puder imaginar e comprar para realizar sua imaginação. Há também o devido canto de parabéns e, para os religiosos, alguma oração ou benção, mas algo, pelo menos no ocidente, não pode faltar, a vela de aniversário, em geral com a idade celebrada, em cima do bolo e que marca o fim de mais um ciclo de vida.

É no apagar das luzes que a vela é acesa e, depois, apagada, num ritual fúnebre no meio da festividade. Fúnebre porque a chama da vela é simbolicamente a chama da vida e o apagar das luzes dela significa também o fim da vida. O fogo da vela representa, neste sentido, na filosofia de Heráclito, a própria vida que queima a cada instante e cujo apagar dele nos falece. Fogo que é razão de viver, ou ainda, a própria razão, uma luz natural que um Iluminismo moderno vai incidir sobre o mundo tirando-o das trevas, se não do pensamento, pelo menos da natureza em sua escuridão à noite.

Não podemos deixar apagar nossa chama de vida, mas também não podemos deixar de apagá-la ao comemorarmos nosso aniversário. Estranho paradoxo este de apagar as luzes da vela deixando tudo no escuro, voltar à escuridão depois de ter saído dela, apagar a última chama que nos livra dela, celebrar a morte quando é a vida que se busca celebrar numa festa de aniversário. Vida que se abre num futuro promissor ainda que em meio às incertezas que se tornam cada vez maiores com o passar do tempo e o fim eterno se aproxima.

Há uma melancolia em apagar a vela de aniversário, um volver no tempo, no pensamento, ao que é passado. A vela que se apaga é a do próprio tempo que passou e é lembrado com ela ao ser acesa para mais uma celebração da natividade. Se é um futuro que se descortina em nossa frente, sem sabermos qual seja, que festejamos em nosso aniversário, ele somente é possível depois que o passado é passado, que é deixado para trás, que se deixar ser passado tudo que até então era presente. O devir heraclitiano de Heráclito não é apenas em direção ao futuro, àquilo que há de vir, a mudança, a transformação, a diferença, é também em direção ao passado, ao que houve, o que deve ficar para trás em toda mudança, transformação, diferença, o que deve senão deixar ser passado.

Não é possível nenhuma devir se não deixamos algo para trás, sem que haja um esquecimento daquilo que nos impede de devir. Se queremos seguir em frente devemos deixar algo para trás, mas nem sempre isto é possível, donde advém a melancolia com o apagar das luzes e da vela. Ao acendermos a vela é a última chama de um tempo que acendemos, o último momento de nossa vida que reluz e que, por fim, devemos apagar, precisamos apagar. Precisamos pôr um fim ao tempo, fazer com que ele passe, marcar sua passagem, fazer a vela incandescente esfumaçar o tempo como incenso.

A cada ano este ritual se repete e a cada ano é o fim de um ano que celebramos, um passado que somos obrigados a deixar para trás, um passado que é nosso em toda a singularidade do tempo e de mais ninguém. Ninguém vive a nossa vida e tão pouco tem o nosso passado, as memórias que o constituem com todos os seus acontecimentos: amores, dores, sabores, odores de uma vida se exala a cada momento em que transpiramos de alegria e de tristeza com tudo que se nos faz alegres e tristes. Acontecimentos que somente nós vivemos e somente nós podemos esquecer, devemos esquecer a cada ano que se inicia e precisamos deixar para trás o que já não pode fazer parte de nossa vida.

Mas deixar o quê? Como deixar para trás? Por que não continuar seguindo em frente com tudo aquilo que faz parte de nossa vida? Por que deixar ser, deixar de ser, deixar o serPara que nenhum peso dos dias nos tire a leveza de ser e a vida não seja um peso e um fardo difícil de suportar. Se apagamos as velas é para pôr fim a um tempo, para deixar para trás seu peso, o peso do tempo de vida que carregamos e que, no decorrer dos anos, se torna tão insuportável quanto o peso de nosso próprio corpo no qual o tempo se faz presente. Não podemos seguir a vida carregando o peso tempo nas nossas costas, com todos os acontecimentos que ele nos impõe, nem sempre vivenciados por nós, de um passado ancestral, milenar. Se o tempo arqueia nosso corpo com o peso dos anos, é preciso fazer do nosso corpo leve deixando o tempo para trás, tudo aquilo nele que nos pesa e nos tira a alegria de viver.

É preciso apagar o tempo no apagar das velas e acender uma nova chama para caminhar na escuridão até que um novo ano se complete e repitamos tudo novamente, pois assim é o ser no tempo, um ser que deve deixar para trás o próprio tempo para continuar a ser nele, apagando e acendendo a chama da vida, fazendo o passado ser passado, esquecido no tempo, abrindo-se ao futuro de um tempo por vir que somente vem quando o peso da vida é deixado para trás no apagar das luzes de uma vela até o dia que o ser se torne leve eternamente.

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