A falsa consciência de liberdade no capitalismo
Dentre todas as falsas consciências existentes no capitalismo nenhuma é mais constante do que a liberdade. Criada a partir do imaginário moderno europeu, principalmente com o processo político revolucionário francês e a deposição de reis no século XVIII, a falsa consciência de que o modo de produção capitalista dá liberdade às pessoas foi difundida para o mundo ao substituir o modo de produção feudal e, no caso, das Américas, o modo de produção familiar comunal indígena. Ao cortarem a cabeça de reis, e de muitos indígenas nas Américas, bem como instituírem a propriedade privada da terra, de meios de produção e de bens materiais, pensou-se que a partir daquele momento todos seriam livres para fazer o que quisessem como indivíduos e cidadãos, pois a pobreza não era mais uma culpa divina, mas de cada um que não conseguisse exercer a liberdade de conseguir algo na vida.
O liberalismo se tornou deste modo o princípio básico do capitalismo, visto como a liberdade econômica e política de dispor de sua propriedade privada segundo seu livre-arbítrio, isto é, segundo suas escolhas individuais como cidadão. O mercado no capitalismo se tornou o principal meio para exercer esta liberdade de escolha do que fazer na vida e com a vida vista como própria, também uma propriedade privada ao dispor de cada um. Pois o corpo e a alma foram privatizados como qualquer outra coisa material na natureza e postos à venda no mercado em busca da sobrevivência como antes se punha na natureza exclusivamente para se manter.
Se existe algo propriamente moderno com o capitalismo não é o desenvolvimento produtivo aumentado em sua potência e capacidade no modo de produção capitalista, mas o desenvolvimento do liberalismo econômico e político como liberdade humana, ou ainda, como modo de produção da liberdade humana. Isto porque nada é mais questionável na Grécia antiga como vício do que o liberalismo devido o excesso e a falta que produz quem é liberal com seu desequilíbrio constante em relação a um meio termo, e que faz todos viverem, como diria Aristóteles ressoando em sua Ética a Nicômaco todos os Sete Sábios de Tebas que pregavam uma sophrosine, isto é, uma moderação e um equilíbrio em suas ações econômicas e políticas contrariamente ao liberalismo. Se houve algo que levou a Grécia em crise em seu tempo foi o liberalismo econômico que fez da política grega democrática cada vez mais refém de pessoas que buscavam enriquecer de modo privado em vez de fazer enriquecer a todos, no caos, o povo.
Se a instituição da democracia foi a principal forma de promover uma moderação valorizada anteriormente pela aristocracia guerreira, não demorou muito para que a própria democracia grega fosse destruída pelo desenvolvimento econômico de comerciantes que não apenas buscaram para si uma participação nas decisões da pólis ao participarem politicamente de tudo, mas também impor com sua riqueza um discurso liberal difundido principalmente pela máxima sofista de Protágoras de que o homem é a medida de todas as coisas. Isto porque ao se ver como medida de todas as coisas, o homem, em seu gênero masculino particular e visto como universalidade humana, passou a tomar em medida todas as coisas como propriedade sua, a partir de si, e a pólis e os outros que ela representa deixou de ser a medida de todas as coisas para os sofistas, bem como para todos que aprendiam com seus discursos. Já não importava mais defender a Grécia, os gregos como povo, a liberdade da pólis, e, sim, o liberalismo econômico, e o maior inimigo dos gregos passaram a ser aqueles que defendiam a liberdade econômica e política em relação à Grécia e não mais aqueles que se opunham à liberdade econômica e política da Grécia. A pólis enquanto cidade, principalmente Atenas, e o Estado grego começaram a ruir quanto justamente ela deixou de ser a medida, o meio-termo e moderação para a vida de todos e esta medida passou a ser a de cada homem em sua propriedade econômica e política como indivíduo e cidadão.
Não foi à toa que Sócrates e os demais filósofos deste tempo não valorizavam a democracia, pois a liberdade que antes se tinha na Grécia como liberdade de um povo passou a ser a liberdade de algumas pessoas poderem tirar a liberdade de qualquer um na pólis, em particular daqueles que fossem contra eles como Sócrates vivenciou e que Platão nunca entendeu o motivo e Aristóteles muito menos, pois o primeiro era aristocrata e o segundo servo de um rei. Apesar disso, não era a democracia o problema para Sócrates, mas a destruição dela tendo em vista que foi julgado por se contrapor politicamente à defesa liberal de Anito. Ninguém melhor do que Sócrates em sua época levou a democracia à sua própria contradição ao ser defendida por sofistas como Anito que defendiam a liberdade para si como se fosse a liberdade para todos, ou seja, tomando-se ele mesmo como medida de todos os cidadãos, bem como aqueles que julgaram Sócrates também.
Diferente dos gregos que procuraram limitar o liberalismo com sua ética, o desenvolvimento do liberalismo foi estimulado na modernidade com o capitalismo e, atualmente, mais ainda com o neoliberalismo que demonstra o quão problemático é se pensar que o homem como ser em particular do sexo masculino, europeu, ocidental, de ascendência caucasiana, burguês, empresário e empreendedor capitalista é a medida de todas as coisas. Ao contrário do que se pensa, que a Revolução Francesa fez surgir o ideal de liberdade para todos, o que ela senão propagou foi o liberalismo, a liberdade de cada indivíduo e cidadão dispor de sua propriedade como quiser e defender politicamente que o Estado admita a exploração desta propriedade privada sem qualquer intervenção. Ou seja, que o Estado como representante de todos, de uma nação, dos outros, seja subjugado à liberdade de um indivíduo em particular como cidadão, pois é nisto que consiste o liberalismo econômico e político, a liberdade de um indivíduo poder dispor como bem entender de sua propriedade privada sem pensar nos outros, não importa o quanto ele tenha mais que os outros, e até mesmo mais do que a riqueza de muitas nações e seus Estados.
Eis o problema de medida, ou ainda, da desmedida liberal, e mais ainda neoliberal: se cada um pode dispor de sua propriedade sem se preocupar com os outros, na medida em que um indivíduo tem a liberdade de fazer isto, todos os os outros devem ser subjugados em sua liberdade enquanto indivíduos. Neste sentido, o monopolismo, neste sentido, como poder econômico de um indivíduo subjugar todo os outros adquirindo suas empresas é o princípio e não o fim ou consequência do liberalismo e do neoliberalismo quando numa relação de mercado uma empresa domina todas as outras. É o princípio porque é a subjugação de todos os outros indivíduos a um só indivíduo a condição necessária para todo liberalismo e neoliberalismo quando se defende que o Estado deve defender a propriedade privada de cada um e, deste modo, não importa no Estado o quanto a população não tem nenhum poder econômico, o que importa é que um tenha, ou ainda, cada um tenha, e se não tiver ou não conseguir ter, não é um problema do Estado, mas de cada um segundo o princípio liberal e neoliberal de que é cada um ou cada indivíduo que o Estado deve defender e não todos os indivíduos.
O monopolismo econômico é também o princípio político, portanto, de que cada um indivíduo subjuga o Estado ao seu poder e a frase de Luis XIV, "o Estado sou eu", ao contrário do que se pensa, não define o Estado absolutista simplesmente em sua derrocada, mas o Estado individualista insurgente, com a defesa do indivíduo e de cada um de nós individualmente como o Estado. Se o Estado defende a liberdade de todos nós no capitalismo como se diz, não existe, porém, todos nós na medida em que nós quer dizer cada um individualmente, tomando cada cidadão como medida de todos os outros e, em particular, alguns cidadãos como medida mais do que outros dependendo do poder econômico. Não existe liberdade para todos nós no capitalismo, o que existe é a liberdade de cada um individualmente poder dispor de sua vida como propriedade privada trocando a liberdade de todos nós pela sua em particular, a liberdade de trair a todos para que seja livre.
Eis a falsa consciência da liberdade no capitalismo: o liberalismo e o neoliberalismo atual dá a cada um o direito à liberdade em troca da perda de liberdade de todos os outros e quem pode pagar mais compra uma maior liberdade com seu poder econômico. Faz, deste modo, do monopolismo econômico um monopolitismo em que cada decisão é tomada tendo em vista a liberdade de si mesmo como indivíduo em detrimento da liberdade de todos os outros ao exigir que o Estado defenda a liberdade de cada indivíduo e não de todos como povo. O monopolitismo é a falsa consciência de liberdade política que se tem no capitalismo quando a todo instante esta liberdade está sendo trocada no mercado liberal e neoliberal por um liberdade para si exclusivamente em detrimento da liberdade de todos e ninguém é livre deste modo no capitalismo, nem mesmo o capitalista que depende de todos aceitarem esta troca não pensando em si como povo somente em si individualmente.
Ao defender para si a liberdade sobre o direito de propriedade, o burguês, capitalista, indivíduo cidadão do Estado moderno, defendeu a prisão fazendo cada um viver na sua mônada sem portas e janelas como dizia Leibniz, onde não importa mais nenhum outro, somente si mesmo, na qual cada um tem a sua liberdade e todos os outros perdem a sua, pois não existe liberdade dentro de uma mônada a não ser para quem está nela individualmente. Cada indivíduo, em vez de livre, está a partir de então preso como indivíduo, sem poder sair e sem deixar ninguém entrar com medo de perder seu liberalismo, seu poder econômico, mas também político de decisão. Vive em seu monopolitismo sem querer saber do outro politicamente no Estado, qual a sua situação, se vive ou se morre, se deixam viver ou morrer, e, sobretudo, deixa e faz morrer todos os outros desde que ele seja livre para fazer o que quiser em sua vida, e mata quem quiser impedi-lo disso chamando-o de comunista por não pensar apenas em si mesmo, mas também nos outros.
A ascensão do Estado moderno capitalista liberal e o neoliberal atual produziu deste modo a falsa consciência de liberdade de todos nós quando, em princípio, é a defesa da liberdade de cada um de nós como indivíduos que importa, e a de quem tem mais poder econômico principalmente. Vivemos esta falsa liberdade trocando a liberdade de todos a cada dia pelos produtos que compramos para nos livrar deles, da responsabilidade que temos com eles, para com eles. A falsa liberdade de que cada um é livre no capitalismo esconde a verdade atroz de que ninguém é livre nele, pois a cada momento todos os outros são subjugados a cada indivíduo ao pensar na sua liberdade e não dos outros, sem se importar mesmo com a liberdade dos outros, apenas a sua.
O Estado sou eu, disse Luis XIV, e hoje cada indivíduo é o Estado que deve defender sua liberdade individual como defendia a liberdade do rei enquanto monarca. Se existia o absolutismo do rei antes, este passou a ser o de cada indivíduo como cidadão no liberalismo e no neoliberalismo e, não por menos, na democracia como governo de todos onde cada um exerce sua monopolítica ou política de um homem só enquanto indivíduo e nunca será ela um governo de todos enquanto existir o liberalismo e o neoliberalismo econômico, enquanto o Estado democrático defender cada indivíduo e não todos. Ou, ainda pior, enquanto um Estado religioso, militar, fascista defender a si mesmo numa ditadura em vez de todos com cada religioso militar fascista considerando-se e considerado como a medida de todos os outros como cidadão de bem.
O liberalismo e o neoliberalismo, ao contrário do que se pensa, são contra a democracia, pois a cada momento fazem valer a liberdade de um indivíduo em detrimento da liberdade de todos os outros como se defende numa democracia. Ele é a imposição de uma liberdade individual sobre uma liberdade coletiva, de alguém individualmente em sua identidade em detrimento de todos os outros em sua diferença. É o liberalismo e neoliberalismo econômico que leva constantemente às crises políticas no Estado e entre Estados quando a liberdade de um indivíduo se torna maior do que a de todos e não por acaso que a ditadura militar é o principal regime político de liberais e neoliberais, pois ela é a representação política do individualismo econômico no qual um indivíduo subjuga todos os outros com seu poder.
Se existe uma fragilidade da democracia e constantes crises nela, isto se deve por fim à falta de moderação constante nela dos indivíduos em seu liberalismo e neoliberalismo, quando se subjuga o Estado e todos que ele representa ao liberdade de um único indivíduo fazer o que quer em seu poder sobre o que é considerado sua propriedade, no limite, a vida de todos os outros. Enquanto esta falsa consciência de liberdade existir em que cada um pensa em si mesmo e não importam os outros a democracia será apenas um ideal nunca a ser alcançado.
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