Tijuana e a liberdade no pensamento
Dentre as questões filosóficas, a liberdade é uma das mais complicadas, pouco discutida, menos defendida, menos colocada, tematizada mais em sua ausência do que em sua presença. É a partir da ordem ou cosmo do universo e sua origem, seu princÃpio e comando, isto é, sua arkhé, que o pensamento filosófico não por menos principia, origina-se, começa e é uma ordem que comanda o discurso ou logos da filosofia. Diante disto, como é possÃvel pensar a liberdade na filosofia senão que deve ser limitada por uma ordem natural cósmica, por uma lei tanto natural quanto humana de um ponto de vista lógico discursivo e senão divino para manter senão esta ordem e lei?
Nenhum dos primeiros filósofos pensaram a liberdade e tão pouco podiam pensar a liberdade do ponto de vista da ordem natural, assim como nenhum dos diálogos platônicos se propunha a defender tal Ideia. Nem mesmo quando Sócrates foi julgado esta questão se tornou presente nos diálogos platônicos, pois o homem grego não é um homem livre de fato na medida em que é racional, e a liberdade é algo que não se submete bem à racionalidade ou a prudente vontade como diz HesÃodo quando é apresentada na forma de Eros, o solta-membros, expressão da liberdade entre os gregos em desejo e amor. Ser livre para um grego era seguir o seu desejo e amor, mas de modo racional sem questionar a ordem divina, cósmica e da pólis, como Sócrates ao se submeter à s leis da República, platônica no caso, leis naturais e divinas sem as quais não pode viver em qualquer lugar que outros lhe digam que estará livre, pois haverão ainda as leis a lhe prender.
Quando os gregos começam a pensar de modo filosófico, não é uma liberdade de pensamento o que almejam, é a sua ordem. A verdade é um não-esquecimento, logo, pensar de modo que nada falte ao pensamento, que se possa expressá-lo numa ordem e expressar tudo segundo sua ordem discursiva, lógica. Deleuze e Guattari ao pensarem a origem da filosofia na Grécia antiga em O que é a filosofia? pedem em sua Conclusão - Do Caos ao Cérebro aquilo que os gregos talvez pedissem ao começarem a filosofar e o que todo filósofo em algum momento pede: "Pedimos somente um pouco de ordem para nos proteger do caos." E expressam aquilo que mais preocupa o filósofo, aquele que pensa ou que pretende pensar de modo lógico, discursivo, a realidade:
Nada é mais doloroso, mais angustiante do que um pensamento que escapa a si mesmo, ideias que fogem, que desaparecem apenas esboçadas, já corroÃdas pelo esquecimento ou precipitadas em outras, que também não dominamos. (1992, p. 259)A partir deles, os gregos e de Deleuze e Guattari, novamente a pergunta vem à mente: como é possÃvel um pensamento livre se a liberdade no pensamento seria já vista como um "caos" significando de modo vulgar uma desordem (e não aquilo mesmo que um grego pensava)? Se qualquer liberdade no pensamento é sentida já de modo doloroso, angustiante, uma fuga do pensamento em si mesmo, de ideias dele, que desaparecem ao menor aparecer, pois são logo esquecidas ou substituÃdas por outras e nunca dominadas, isto é, sujeitadas a uma ordem, a um discurso, a um logos? A liberdade é vista deste modo contra toda e qualquer ordem do pensamento na medida em que há nela senão o que Deleuze e Guattari chamam de uma variabilidade infinita e uma velocidade infinita de ideias "que se confundem com a imobilidade do nada incolor e silencioso que percorrem sem natureza nem pensamento." (1992. p. 259. Grifos meus.) Devido esta variabilidade infinita, segundo eles,
Perdemos sem cessar nossas ideias. [E não por menos] É por isso [por causa desta variabilidade infinita e velocidade infinita que aqui consideramos aqui a liberdade] que queremos tanto agarrarmo-nos a opiniões prontas. Pedimos somente que nossas ideias se encadeiem segundo um mÃnimo de regras constantes, e a associação de idéias jamais teve outro sentido: fornecer-nos regras protetoras, semelhança, contigüidade, causalidade, que nos permitem colocar um pouco de ordem nas ideias, passar de uma a outra segundo uma ordem do espaço e do tempo, impedindo nossa 'fantasia' (o delÃrio, a loucura [de Eros senão]) de percorrer o universo no instante, para engendrar cavalos alados e dragões de fogo. (1992, p. 259)Se a "filosofia, a ciência a arte querem que rasguemos o firmamento e que mergulhemos no caos", isto é, numa liberdade, complementam: "Só o venceremos a este preço." O que quer dizer que não é a liberdade o que se almeja, mas traçar um plano sobre o caos ou sobre ela, algo que nos dê uma proteção maior do que o senso comum nos dá, a proteção de uma episteme em vez de uma doxa. Cada um dos planos, de imanência filosófica, de referência ou coordenação cientÃfica e de composição da arte não buscam uma liberdade propriamente, mas tão somente o caos que ela produz protegendo o Cérebro-pensamento em relação a ele. Este três planos são as "jangadas com as quais ele [Cérebro-pensamento e sujeito] mergulha no caos e o enfrenta."
O conceito filosófico, a função cientÃfica e a percepção e sensação artÃstica são já ordenadoras daquilo que Deleuze e Guattari chamam de caos que é a liberdade ou que é produzido pela liberdade, e que não é o Kháos grego a partir do qual tudo se ordena na mitologia como diz HesÃodo: No princÃpio, era o Kháos... O que ele pressupõe ao dizer isto não é o que dizem Deleuze e Guattari, pois Kháos quer dizer separação, a separação necessária a partir da qual tudo se ordena, a abertura para a ordem teogônica à qual HesÃodo submete todos os deuses gregos em seu canto numinoso, inquestionável em sua ordem mesma porque divino, que é ao mesmo tempo a lei de deus, da natureza e dos homens manifesta em seu poema a por ordem em tudo. Com exceção, claro, do Kháos que escapa a tudo isto, que se separa e que, se pode ser considerado um abismo, é senão por ser algo inconsciente e, como tal, compreendido como uma desordem, algo que não faz sentido, que não é lógico, que não se submete à ordem que é criada a partir dele, mas não o submete no momento em que abre o canto hesiódico como um bico de pássaro ou boca humana a cantar.
Como compreender o Kháos em sua separação em relação à ordem teogônica? Como uma desordem, abismo, inconsciente? Ou como uma liberdade em relação à ordem, superfÃcie e consciência mesma na profundidade insondável de seu canto? Uma liberdade que é a da criação do próprio poeta ao cantá-lo, ao fazer poesia? Ou ainda, uma liberdade que é a velhice quando se esquece de tudo, não se submete mais à ordem, as ideias se perdem, pois, como dizem Deleuze e Guattari na Introdução - Assim pois a questão.... de O que é a filosofia?,
Há casos em que a velhice dá, não uma eterna juventude mas, ao contrário, uma soberana liberdade, uma necessidade pura em que se desfruta de um momento de graça entre a vida e a morte, e em que todas as peças da máquina se combinam para enviar ao porvir uma traço que atravesse as eras... (1992, p. 9)Talvez seja somente "quando chega a velhice, e a hora de falar concretamente", dizem eles, "possamos colocar a questão O que é a filosofia?", ou ainda, digamos, da liberdade, quando já não nos submetemos mais a qualquer ordem do pensamento e uma questão se coloca de maneira não mais indireta ou oblÃqua, demasiada artificial, abstrata demais, dominada "pela rama, sem deixar-nos engolir por ela", enfrentada "numa agitação discreta, à meia-noite, quando nada mais resta a perguntar", quando os pensamentos vagueiam sem que as perguntas façam algum sentido lógico e é já em sonho que se coloca o pensamento e não mais em vigÃlia. VigÃlia de si mesmo para não esquecer o que dizer, como dizer, de que modo e em que ordem expressar-se, expressar e o que ordenar a partir de sua expressão.
É somente quando o filósofo questiona e questiona a si mesmo com filósofo, no que ele faz, no que ele está a fazer, no que dele deve fazer que, podemos dizer, ele é livre, que a liberdade se torna não um tema para si, mas que engole seu corpo e mente. Trata-se do momento em que ele não simplesmente diz ontologicamente o que é tudo na realidade ou como deve ser tudo nela de modo natural ou ético, mas que é possÃvel transformar a realidade. É assim, pois, a questão da liberdade do filósofo, do filosofar, na filosofia tal como é em Tijuana (2019), esta série mexicana criada por Zayre Ferrer e Daniel Posada, na qual, o jornal Frente Tijuana vive a questionar as relações entre o tráfico de drogas e a polÃtica no México e que mata todos aqueles que colocam estas relações em questão. Uma série sobre a liberdade, muito mais do que a imprensa, pois não há imprensa sem liberdade, não há pensamento sem liberdade, e não há imprensa e pensamento sem questionamentos que é são a expressão da liberdade no e do pensamento e na e da imprensa.
Não se pode deixar de questionar na filosofia e todo e qualquer plano ou ordem imanente ou transcendente, ou ainda transcendental, não é possÃvel sem uma questão que os abre, um kháos que desordena, abisma, confunde inconscientemente a consciência, chacoalha o Cérebro-pensamento e faz pensar, que é a tarefa da filosofia, da ciência e da arte quando sua preocupação não é em traçar um plano sobre o caos para melhor se proteger dele ou vencê-lo, quando não pretende responder à questão de modo lógico discursivo e responsável. Uma questão e um questionamento é sempre irresponsável a colocar aquele que questiona entre a vida e a morte como vivem os jornalistas do Frente Tijuana e todos aqueles que resolvem questionar a ordem estabelecida, no caso da série, questionar o tráfico de drogas e os polÃticos, do Brasil, as milÃcias além destes. E que não é diferente em seu questionamento do questionamento de Sócrates quando fez da filosofia literalmente uma questão de vida e morte e levou ao limite o questionamento filosófico para além dele mesmo com sua ironia, não submetendo seu pensamento nem à filosofia nem a sofÃstica, na fronteira entre ambos, questionando tanto a doxa como a episteme, ao dizer só sei que nada sei, fazendo de seu pensamento um questionamento constante de todos, de tudo e não por menos de si mesmo até a morte, questionada por si por último, deixando claro que não se sabe nada sobre ela.
Os jornalistas do Frente Tijuana não se cansam de questionar, nem tão pouco os filósofos, e muito menos quando a ordem é não questionar, ficar em silêncio, não expressar seus questionamentos ou pensamentos advindos destes para não trazer o kháos, a morte para a sua vida e para aqueles que estão perto de si. Num momento em que todos pedem um pouco de ordem para se proteger do caos, que polÃticas de segurança pública tentam pôr cada vez mais ordem em todo lugar com suas armas mirando a cabecinha de todos e matando inocentes por medo ou violenta emoção, e requerem excludente de ilicitude para isto, é preciso cada vez mais ser filósofo e jornalista para questionar esta ordem pensada por todos para sua proteção, ordem do senso comum à filosofia. É preciso pensar no Kháos não como uma desordem, confusão, abismo e inconsciente no qual a vida se põe no limite da vida e da morte e requer qualquer ordem possÃvel tirando-lhe toda a liberdade em nome da proteção. Mas num Kháos diferente, como aquilo que nos separa de tudo isto, que nos liberta da dialética de uma desordem-ordem e nos faz pensar a liberdade em nosso próprio pensamento.
Invertendo o dito, pedimos somente um pouco de caos para nos proteger da ordem que a todo instante tentam nos impor como disciplina, controle. Pedimos que sejamos livres, que pensemos livremente sem que isto custe nosso Cérebro-pensamento, nossa vida, que possamos questionar sem correr o risco de morrer pelo que dizemos, nós, filósofos, jornalistas, Tijuana. Não há questionamento sem liberdade e tão pouco liberdade sem questionamento e é preciso ambos para nos fazer filósofos e jornalistas, pensadores de algum modo que tragam o kháos como uma abertura de boca e de bico a criar os mais belos cantos, mesmo que não tenham lógica alguma, nenhum discurso exista a partir deles porque inefáveis, numinosos, divinos. No me acostumbro a Tijuana, canta melodicamente Silvana Estrada o tema de Tijuana, Tijuana que quer dizer liberdade, com a qual é difÃcil nos acostumarmos, mas sem liberdade, sem Tijuana, nenhum pensamento filosófico e jornalÃstico em seu questionamento da realidade é possÃvel no México, no Brasil ou em qualquer lugar do mundo.
Questionar é trazer a liberdade e o Kháos para o Cérebro-pensamento e nada mais necessário do que isto quando há diversas ordens e planos imanentes e transcendentes a se imporem contra a liberdade no Cérebro, no pensamento, na vida atualmente, e é preciso assistir Tijuana para perceber como a liberdade, mais do que a verdade, é o maior problema para o filósofo e para o jornalista, pois são incapazes de viverem sem questionar a ordem e os planos imposto à vida impedindo-a de ser livre.
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