Uma vida de contos de fadas


Em histórias de contos de fadas há, em geral, uma mulher-princesa a ser salva por um homem-príncipe. Cinderela ou A gata borralheira, Branca de Neve, Rapunzel, A Bela Adormecida e até mesmo em Shrek, que pretende desconstruir estas histórias, onde também há a mulher-ogro-princesa a ser salva pelo ogro-príncipe são alguns destes contos. O enredo é simples: uma mulher-princesa é submetida a uma maldição ou a uma submissão em sua família bastarda até que um homem-príncipe a livre de sua maldição e sofrimentos e, no fim, vivam felizes para sempre!

O que vem depois do felizes para sempre Ã© uma questão sem resposta, por mais que se queira dar ao tempo futuro uma realidade, mas outras questões antes disso são facilmente respondíveis por aqueles que fazem a crítica dos contos de fadas. Atualmente, com a questão feminina, uma das respostas é de que estes contos reproduzem a sociedade machista em que mulheres são dependentes de homens para adquirem sua liberdade e, quando a adquirem, são submetidas novamente à mesma sociedade machista. Ou seja, reproduzem a lógica de que as mulheres devem esperar por um príncipe e casando com ele submeter-se à ideologia social dominante na qual os homens são fortes e têm poder e as mulheres são frágeis e indefesas.

Escritos sob o pano de fundo de uma sociedade tradicional patriarcal, os contos de fadas reproduzem deste modo a sociedade da época em círculo vicioso de manter a tradição, de não modificá-la e o era uma vez é já o remetimento ao passado longínquo no qual a tradição se fundamenta. Contudo, algo parece estranho quando analisamos que, primeiramente, nestes contos, as princesas não estão em busca de um príncipe como se pensa. Branca de Neve quer simplesmente fugir de sua madrasta má e da morte, Cinderela fugir de casa para se divertir num baile, Rapunzel quer conhecer a vida fora de sua torre onde vive presa desde a infância, a Bela Adormecida simplesmente acordar para a vida que se abre em sua puberdade e, Fiona, quer se livrar da maldição que lhe tornou em ogro nem que seja preciso casar com alguém que não goste. Se há um homem-príncipe nestas histórias, devemos convir, é apenas um meio para que as mulheres-princesas adquiram o que querem e não que eles sejam realmente o que elas querem. O felizes para sempre com um homem-príncipe não era algo de antemão pensado e se isto se torna presente, por fim, nos contos de fadas é a não ser por forças das circunstâncias e da opressão que as mulheres sofrem em suas vidas.

É fato que nas circunstâncias de cada conto há um amor envolvido, mas nunca por iniciativa da mulher-princesa correndo atrás dele ou de um homem-príncipe. Nem pode, ademais, já que tem algo mais com o que se preocupar em sua vida, no caso, a opressão de sua vida e o risco de morte. Em cada história, não é um homem-príncipe o que desejam, é simplesmente viver, continuarem vivas ou reviverem depois que um encanto ou feitiço amaldiçoado as mortifica nem que seja por algum tempo. O príncipe é o meio que lhe faz viver para além do que vivia antes, não é visto como um fim, nem um princípio, tão somente um meio para serem felizes saindo da condição em que viviam de opressão e quase morte. O que vem depois do felizes para sempre de fato não importa, pois é a libertação das mulheres o que importa em cada conto e se na sociedade tradicional patriarcal é o homem que possibilita isto, que assim seja, o que não quer dizer, e os contos nunca dizem isto, que o conto de fadas acaba com a mulher sendo dominada e submissa ao homem que a salva, por mais que se imagine isto, e aconteça de fato isto na realidade para além dos contos de fadas.

Pode-se, neste sentido, muito bem trocar o felizes para sempre por livre para sempre no que diz respeito às mulheres pelo menos em relação às condições em que estavam antes. Se o futuro é incerto ao lado de um homem-príncipe, este não é demonstrado nos contos como aquele que prende a mulher e, sim, o que a liberta, não necessariamente para ser sua. Se ela acaba por ser sua é por amor concedido mais do que um amor que ela lhe tenha ou por um desejo de tê-lo há muito tempo, correndo atrás de um homem-príncipe. O amor nos contos de fadas é em geral uma concessão da mulher em relação ao homem que deve literalmente lutar por ela e eis algo em comum nos contos de fadas que é muitas vezes esquecidos: o amor de uma mulher não é dado para qualquer homem, tão pouco para quem simplesmente diz eu te amo, mas para aqueles que lutam pelas mulheres, para salvarem-nas das condições opressoras e do feitiço encantado amaldiçoado em que vivem.

Existe em cada conto de fada uma prova de amor que o homem deve dar para conquistar uma mulher que vai além do cavalheirismo burlesco de uma cantoria, de uma declaração de amor repentino, de um simples beijo apaixonado que liberta por magia aquela que o homem ama. A prova de amor é uma prova literalmente de vida ou morte na qual os homens arriscam suas vidas por mulheres desconhecidas e cuja beleza os cativa. Não se trata do homem-príncipe se considerar macho e conquistar uma mulher submetendo-a a si por ser mais forte do que ela, mas de ser alguém que luta por quem ama e não deixa que nada de mal lhe aconteça colocando sua vida em risco para provar seu amor. Não é uma submissão das mulheres por homens o que se coloca em questão em contos de fadas, mas de homens-príncipes em superação de si mesmos para merecerem o amor de uma mulher que lhes é concedido sem obrigação. Pode-se imaginar que sim no fim, mas nada implica isto diante da abertura que há no dito de que viveram felizes para sempre.

Nada mais romântico do que um conto de fadas no qual as mulheres sofrem uma opressão social e são enfeitiçadas por encantos amaldiçoados até que homens arriscam suas vidas para salvá-las quando elas não têm força para isto, pois a sociedade é uma prisão demasiada ampla para que as mulheres encontrem a saída facilmente mesmo que possam encontrá-la por si sós. Branca de Neve bem que tentou viver sua vida com anões, mas a sociedade não é algo que deixe uma mulher viver sozinha no meio de uma floresta com 7 homens, ainda que diminutos. Ela tinha que morrer e sua madrasta malévola cumpria senão o papel que a sociedade incumbiu as mulheres de serem, isto é, carcereiras das prisões sociais em que vivem. Da mesma forma, a madrasta de Cinderela não podia deixar que ela vivesse uma vida livre por ser mais bela que suas filhas e a prendia em casa para não haver concorrência com elas. Rapunzel fora prometida antes de nascer para uma bruxa como punição por seu pai ter roubado rabanetes dela para alimentar a esposa grávida de Rapunzel. A bela adormecida sofreu também por conta de uma das fadas não convidadas para seu primeiro aniversário sendo condenada à morte por ela se não fosse a benevolência de outra fada que trocou sua morte por um sono profundo até que alguém lhe desse um primeiro beijo de amor. Fiona, por fim, é a encarnação de todas as mulheres-amaldiçoadas sem escapatória desde o princípio dos tempos, isto, desde o era uma vez... 

Se as princesas sofrem em cada conto de fadas não é, devemos dizer, por conta de um machismo manifesto expressamente neles, ou seja, por um homem que as oprime desde o princípio, seja por homens que fingem serem príncipes e depois as oprimem quando as conquistas. Em princípio, pelo contrário, há senão homens-fracos-submissos às suas esposas que não têm condições de defender suas filhas da madrasta ou de uma mulher bruxa malvada, malévola. Neste sentido, são mulheres oprimindo outras mulheres o que se vê nos contos de fadas e homens libertando mulheres que sofrem opressão por outras mulheres principalmente por conta da vaidade entre elas e da disputa de um homem que se é o que ambas amam tão pouco é o que ambas desejam sexualmente. Numa síndrome de Édipo invertido, o que os contos de fadas mostram é, por um lado, o amor da filha-mulher-princesa pelo pai-homem-rei que é castrado pela madrasta e, por outro lado, é realizado no amor dela por um homem-príncipe desconhecido que atrapalha, por fim, as pretensões de castração da madrasta ou da bruxa malvada, e dentre todas as castrações, a pior de todas, a morte.

A mulher nos contos de fadas é, assim, ou é bela, princesa e boa, ou feia, bruxa e má, e é senão a protagonista e a antagonista da história na qual o homem aparece ora como um meio fraco sem conseguir libertá-la da opressão e de feitiços encantados de outras mulheres, no caso, seus pais,  ou forte tornando possível a libertação de uma mulher em relação a outra e nada mais do que isso. Não são de homens que as princesas precisam ser salvas nos contos de fadas, mas de outras mulheres-madrastas bruxas e pais-reis-homens fracos e de uma sociedade que estabelece a vaidade para a condição de existência feminina levada até as últimas consequências. Há de notar nisso que, apesar de belas, nenhuma mulher-princesa é mostrada como vaidosa nos contos de fadas e são as mulheres feias que são mostradas deste modo com um profundo ressentimento de sua aparência diante da beleza de outras mulheres. Além disso, há também o fato de que a feiura está relacionada à velhice e a beleza à jovialidade numa disputa para saber quem é a mais bela numa reatualização da discussão do Banquete de Platão na qual ou é a Afrodite velha que deve ser reverenciada, a Celestial, ou a jovem, a Pandêmica, neste sentido, mostrando como a sociedade submete a mulher a um determinado tempo de vida que é o de seu corpo e da beleza nele quando é jovem sem a qual ela deixa de se afirmar em sua vida.

É um profundo ressentimento com sua aparência e sua idade que faz com que as mulheres madrastas más queiram fazer o mal às outras, às vezes, uma maldade antes do seu nascimento como no caso de Rapunzel. Trata-se de um não aceitar as condições de sua própria existência para além da aparência, mesmo quando esta não está em questão, pois mesmo se considerando feias ou não tão belas quanto as jovens, as mais velhas não são deixadas de lado por quem elas disputam de certo modo o amor, seus maridos, pais das mulheres-princesas jovens. Ou seja, não há de fato uma disputa de beleza em questão no que diz respeito a um julgamento dos homens especificamente nos contos de fadas, tão somente ao que diz respeito ao julgamento das mulheres em relação a si mesmas. Se subentende-se que isto é motivado pelos homens e um machismo, tão pouco isto é expresso nos contos de fadas, pois não está em questão a escolha dos homens de com quem vai ficar, a esposa-madrasta-má-feia ou a filha-princesa-boa-bela, e tão pouco há o abandono daquelas por estas como se costuma acentuar em relação ao machismo.

É preciso ver nos contos de fadas algo além do que se vê costumeiramente em relação à espera de mulheres-princesas por um homem-príncipe que as liberta por magia. Pelo contrário, é preciso pensar em como as mulheres são oprimidas por outras mulheres nos contos de fadas numa disputa para saber quem é a mais bela e são aprisionadas, enfeitiçadas, atentam contra suas vidas diretamente e se tornam incapazes de se libertarem sozinhas devido à vaidade que as aprisiona e é uma prisão social para si. No caso, tanto aprisiona aquelas que já não são mais jovens e belas de modo obsessivo, como aprisiona aquelas que são submetidas a esta obsessão. Se são os homens que colocam para funcionar esta máquina obsessiva feminina pela vaidade na sociedade e esta é machista de fato também devido a isto, são as mulheres as peças deste inconsciente maquínico expresso na vaidade.

É curioso notar além disso que se os homens-príncipes se tornam protagonistas em determinado momento da história é numa profunda solidão e falta de perspectiva o que vivenciam antes de encontrarem suas princesas encantadas nos contos de fadas. Uma solidão que não é produzida por uma vida de luxúria ou de perdição desejada por si, ainda que se possa imaginar isto no fim, mas por lhe faltar aquela que o amará e com a qual viverá feliz para sempre. Neste sentido, os contos de fadas são contos românticos não de uma mulher em busca de um homem em suas vidas, mas de um homem em busca de uma mulher com a qual viverá pelo resto da sua vida sem estar sozinho. São os homens que estão, sobretudo, por sua vez, em busca de uma princesa encantada e não as mulheres de um príncipe encantado, o que não são de fatos nos contos como demonstra claramente Shrek, talvez o único conto de fadas em que um "homem" é protagonista. São os homens que precisam de alguém para compartilhar a vida com uma mulher que viva ao seu lado não como empregada, submissa ou presa a si, pois são em geral príncipes dotados de condições econômicas nas quais elas não precisam cuidar de casa ou de crianças, e que sejam donas de casa sem qualquer atributo específico a não ser o mando.

Se depois do felizes para sempre há a realidade atroz em que vivem mulheres com homens que as maltratam, não se pode dizer que os contos negligenciem esta realidade. Pelo contrário, eles vão contra esta realidade em que homens não lutam para fazerem viver as mulheres, defendendo-as do mal que causam umas às outras por vaidade. Se hoje podemos dizer que ainda existam princesas encantadas que sofrem a opressão cotidiana de famílias tradicionais patriarcais por conta disso e que fazem da beleza das filhas o valor de troca delas na sociedade, já não podemos dizer que existam muitos príncipes encantados de fato que as liberte desta condição submissa. E se existem homens-príncipes seu papel não é o de as libertarem para si como prêmio concedido por amor senão de serem apenas um meio para libertação delas como de certo modo os contos de fada demonstram.

São homens, portanto, que vivem um conto de fadas e não as mulheres cuja vida é de uma realidade opressora a cada instante correndo o risco de morrerem por causa de sua beleza. São os homens que vivem a esperar pela princesa encantada que um dia fique consigo pelo resto da vida caso não seja ele o escolhido para estar ao seu lado. E quando ela aparece isto nunca é fácil, pois deve colocar sua vida em risco e somente colocando-a ser digno dela, de seu amor, o que não quer dizer que eles sejam as vítimas na história, a não ser de seu romantismo idealista enquanto as mulheres são vítimas do realismo histórico em que vivem oprimidas de modo material.

São os homens que idealizam as mulheres em seu romantismo nos contos de fadas enquanto as mulheres estão preocupadas em viverem e continuarem vivendo, literalmente sobrevivendo em sua vida. Se existe o felizes para sempre nos contos de fadas Ã© porque homens e mulheres se libertam de sua vida de solidão e de opressão respectivamente ou uma pessoa encontra outra. Se o felizes para sempre Ã© o fim de um conto de fadas não é porque simplesmente uma mulher foi libertada por um homem, mas porque o destino uniu duas pessoas em suas adversidades, uma submissa a um sociedade que a aprisiona de diversos modos e, principalmente pela vaidade, e outra à sua solidão. Não se torna a mulher feliz por ter encontrado um homem em sua vida, tão pouco um homem por ter encontrada uma mulher na sua vida, mas por homem e mulher, ou duas pessoas sejam quais forem, terem encontrado o amor em suas vidas tão vazias de sentido.

Felizes para sempre Ã© o fim dos contos de fada porque ambos estão felizes um com o outro em amor e não sozinhos sofrendo as agruras da vida. Se hoje está cada vez mais difícil acreditar em contos de fadas é, outrossim, porque não acreditamos mais na felicidade com alguém senão conosco mesmos e o príncipe e a princesa não são mais homens e mulheres encantados por alguma magia e, sim, reais demais para nos fazerem sonhar com uma vida em comum. É preciso abandonar a realidade para viver um conto de fadas e viver felizes para sempre, algo que poucos, muito poucos estão dispostos hoje em dia, e não por menos vivem infelizes para sempre com os outros ou sozinhos, ou ainda, felizes para sempre consigo, casando inclusive consigo mesmos na mais pura vaidade.

A sociedade moderna destruiu os contos de fadas quando nos fez indivíduos que se bastam a si mesmos e já não sentem mais necessidade do outro em suas vidas, nem de lutar por eles, por amá-los, seja qual for o motivo de seu amor. Sem o amor dos contos de fadas, o que nos resta é a realidade moderna do ódio em que vivemos sem ver no outro qualquer perspectiva de felicidade numa vida em comum. Tornamo-nos os seres sociáveis insociáveis de Kant em nosso individualismo realista que abomina qualquer contato com outro que não seja por interesse em si mesmo o que sua máxima categórica faz senão confirmar em vez de contradizer ao pretender que o homem seja um fim em si mesmo, pois é o mais puro individualismo que se coloca nela e a partir do qual tudo se torna senão um meio ou mero instrumento para sua realização, inclusive o próprio homem.

Uma vida de contos de fadas já não é mais possível há muito tempo ainda que a revivam em nossa memória pueril, mas quem disse que era possível? Contos de fadas são sempre impossíveis e senão por isso ainda são necessários, pois diante da realidade em que vivemos só o impossível nos salva. O mais possível em nosso realismo é ainda o pior possível na medida em que é desprovido de qualquer romantismo.

É preciso vivermos num conto de fadas se quisermos sobrevivermos à realidade, sejamos mulheres ou homens, ou qualquer variação do tipo, do contrário, o que nos resta é o puro individualismo realista no qual encantamo-nos conosco de frente ao espelho perguntando se existe alguém mais belo que nós Ã  espera de um sim sem qualquer romantismo e perspectiva de vida para além disso.

2 comentários:

  1. Como é difícil comentar um texto tão real e tão emocionante, digo emocionante por amar incondicionalmente alguém que não importa o "felizes para sempre", mas que "seja eterno enquanto durar", pois é a pessoa imperfeita mais perfeita para passar resto dos seus/meus dias em meus braços...

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