Faça sua a beleza!
Só há uma beleza: a do corpo. Não é possível falar da beleza sem uma experiência sensível do corpo, ou ainda, de um corpo a corpo. É na relação de um corpo com outro que a beleza aparece e que a admiramos, isto é, olhamos sem conseguir enxergá-la no corpo do outro que se mostra a nós como belo e que passamos a amar.
Platão, o mais idealista de todos os filósofos, o criador mesmo do idealismo na filosofia, ao pressupor o que é a beleza foi senão do corpo que ele partiu em seu Banquete. Começamos por admirar um corpo em sua beleza, a perceber a beleza de um corpo que o faz desejá-lo, amá-lo, depois percebemos que há beleza em outros corpos, e em todos os corpos, os quais também começamos a desejar e a amar. Se há uma beleza em si, a qual estaria na alma e não no corpo, como ele por fim reivindica, já não é possível percebê-la e assim chegamos a uma beleza ideal, imperceptível, inteligível a beleza que já não é mais do corpo, mas de uma Ideia.
A Ideia de beleza é, porém, ainda de um corpo ao qual a alma está ligada por toda a vida e, por mais separada que seja a ideia de beleza platônica em relação ao corpo é nele que ela reside, habita, e o que é mais racional e verdadeiro está no corpo, pois toda beleza fora dele é apenas um mito como no mito dos destinos das almas em Fédon em que tudo é mais belo numa terra verdadeira do que na terra em que vivemos, no caso, depois da morte. É deste modo ideal, mas também em oposição a ele que Platão nos faz pensar paradoxalmente não uma beleza da alma separada do corpo e, sim, em relação a ele, em relação ao nosso corpo na terra em que vivemos, em nossa vida. Pensar numa beleza que cada corpo tem quando deixamos de vê-lo nas sombras, numa terra de mortos, com a aparência da morte, a de uma alma penada, que sofre pelo seu corpo, por não o ter mais, ou ainda, por não o ter feito virtuoso, isto é, belo em sua excelência na terra em que vivemos.
Faça sua a beleza!, isto é, Sejam virtuosos em seus corpos!, pensavam os aristocratas guerreiros dos quais Platão descende para quem a beleza é a das ações de um corpo em contato com outro corpo em desejo, amor e mesmo em guerra. A beleza é ter deste modo um corpo, o seu e o de outro, um corpo a corpo em desejo e amor, e a guerra é mais um encontro de corpos em batalha do que um desencontro deles, é o desejo e amor de um corpo por outro corpo em sua beleza. Aquiles não é apenas o mais virtuoso guerreiro grego, mas também o mais belo, e mesmo aqueles que não parecem belos, se tornam belos na guerra quando seus corpos encontram outros corpos em batalha, num corpo a corpo com o outro, em contato consigo. Se a guerra atualmente é tão triste e sem trazer qualquer alegria para aqueles que batalham e não batalham é porque não há encontro de corpos nela, somente morte, corpos penados não mais de modo mítico numa terra de mortos, mas na terra em que vivemos em penúria, esquartejados, sacrificados e sacrificando-se sem qualquer beleza em sua ação e em seu corpo pesado de morte que ele carrega nas costas como seus utensílios de morte. O guerreio transformado em soldado militar não se alegra com a batalha, pois isto é um fardo para si, não encontra ele nenhuma beleza no seu corpo e no corpo do outro que, mesmo em digladio, é sentido por si, está em contato com ele, admira-lhe a beleza, mesmo em sua morte.
Não há nenhuma beleza na morte do outro nas recentes guerras a não ser para o fascismo e pós-fascismo em que vivemos no qual a beleza é morrer, matar ou se matar, não sentir mais o corpo e sua beleza até na morte, pois há beleza na morte quando esta morte é pela vida, quando é para potencializar a vida e não para destruí-la. É o sentido do trágico para o grego em batalha consigo mesmo, como Édipo, ou com outros como na Guerra de Troia. Nada mais belo, ainda que trágico, do que o encontro de um corpo a corpo quando há o acontecimento da beleza fortuito, nunca pleno, quando um corpo incita o outro corpo em desejo, amor, ainda que em guerra consigo e com o outro.
Tal acontecimento da beleza é propriamente um encontro de corpos e não se pode falar de beleza sem que corpos se encontrem, consigo ou com outros, sem que seja um acontecimento. O acontecimento é um encontro de corpos. Encontrar um corpo belo não é encontrar um corpo no qual haja a beleza de fato como se a beleza fosse do corpo propriamente. Se a beleza é do corpo é porque é no contato com ela aparece como uma força, uma potência que há num corpo em relação a outro corpo, no corpo em si e para nós.
Se há uma beleza em si em cada corpo é uma beleza sensível, a que sentimos quando o admiramos, quando ela se dá para nós, em contato com ele, que nos dá força e potência em relação a si. Se a beleza atrai é porque há nela uma força e uma potência de um corpo em relação a outro que é a dela. A de forçar um corpo em relação a outro, de potencializar um corpo com outro corpo, de um corpo a corpo, de todo um sensualismo e erotismo que aparece num piscar de olhos, num instante de admiração em que se fica cego diante de um corpo em sua beleza.
Que se diga que a beleza está nos olhos de quem ama, e se fica cego diante de um corpo visto como belo por conta do amor mesmo que não seja considerado belo para outros, é porque há no corpo uma beleza que está no olhar mais do que em quem olha e no que é olhado, no sujeito e no objeto. Há quem olha e não veja beleza alguma em um corpo, o seu ou de outro, porque seu olhar não é forçado ou potencializado no momento em que olha um corpo. Suas pupilas não dilatam fazendo-o perceber mais do que olha, seu olhar é um olhar como o de todos os outros sem qualquer brilho, sem que esteja desperto pela beleza de um corpo, sem admiração, olhando, mas sem olhar com beleza o corpo.
A beleza produz um desvio no olhar e faz o olhar não olhar, ficar cego, não perceber o que olha, apenas admirar a beleza do corpo que olha e que nunca é do corpo em sua totalidade senão em sua singularidade. A beleza de um corpo que é visto em parte no olhar. É somente em parte, de modo singular, que a beleza pode ser vista no corpo e nunca em totalidade. A beleza em si é uma singularidade do corpo, uma parte dele encontrada no olhar, ali onde é imperceptível aos olhos, onde ninguém vê, mas é vista caso se olhe atentamente, uma beleza indizível do corpo, advinda dele, em contato com ele.
Se se fica cego com a beleza e o desejo e amor que se relaciona a ela é por ser ela sensível e não uma forma, mesmo que se possa dar a ela uma forma, que se possa traçar a beleza de um modo geométrico regular ou irregular. Não interessa a forma, a beleza é percebida mesmo assim porque é sentida e a cegueira não é uma deficiência, neste caso, é a força e a potencialização da beleza em relação ao corpo em cada parte dele, atravessando-o como um todo em contato com outro. O Sol, o mais belo dos astros por seu brilho próprio, cega-nos ao olharmos diretamente pra ele fazendo-nos sentir toda sua força e potência não mais com os olhos senão em cada parte do nosso corpo com seu calor.
Olhar algo belo é fazer sua a beleza de um corpo sem, contudo, se apropriar dele. Pelo contrário, é deixar-se apropriar por ele, ser invadido por ele, em turbilhão de sentidos ao mesmo tempo no qual o corpo admirado em beleza já não é mais um corpo, mas um corpo a corpo sem que necessariamente estejam juntos ou se juntem como um corpo. Pois a beleza desfaz os corpos em sua forma e o que há entre eles é apenas o sentir dos corpos quando um corpo olha o outro, quando corpos se olham sem se olharem, apenas admirando e admirando-se, desviando o olhar, pois olhar deixa de ser importante, o que importa é o sentir a beleza de um corpo no outro com os olhos fechados.
Faça sua a beleza! Sinta a beleza como sua! Mas saiba que ela é nunca é sua, ela está em todos os corpos, como disse Platão, e se ela é "a mesma beleza em todos os corpos" (grifos meus), é porque ela se repete em todos os corpos e, em vez de limitá-la em um só, ideal, é preciso "fazer-se amante de todos os belos corpos e largar esse amor violento de um só, após desprezá-lo e considerá-lo mesquinho" (grifos meus). Se Platão deprecia a beleza do corpo, uma beleza sensível, no corpo, em cada traço dele, particular e singular, por um traçado geométrico, e é a beleza da alma que ele admira, de modo imperceptível, como uma Ideia, Forma, Inteligível, isto não passa do mito de uma beleza em si que não é possível sentir, apenas pensar de qualquer forma ideal e inteligível. Pode-se pensar neste sentido em qualquer beleza ideal em sua forma inteligível, mas nenhuma, porém, será beleza se não for sensível, sentida em sua força e sua potência no corpo a corpo.
A beleza em si é a força e a potência da beleza de um corpo a corpo consigo e com outros corpos transformada numa Ideia, numa Forma, a dos corpos sentindo-se. Fazer sua a beleza, é, por fim, fazer a beleza em si para si no corpo e com outros corpos, seja qual for a forma do corpo, pois o que importa é senti-lo, desejando-o, amando-o num corpo a corpo, duplicando-se em força e potência a sua força e potência em outro corpo, ainda que em sua força e potência os corpos tendam a se destruírem numa entropia natural, a morte como o fim de toda a beleza da vida com o fim do corpo a corpo dos corpos.
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