A função pai
De todas as funções que um homem pode ter em sua vida, a função pai é a mais difícil de todas, pois implica em não estar presente na vida do seu filho, de estar constantemente distante dele em proveito de sua própria sobrevivência, conter em seu peito a dor de ser um pai ausente na vivência e sobrevivência na sociedade patriarcal capitalista que obriga a ficar longe dos filhos.
A função pai é estar ausente. É estar ausente na vida dos filhos, bem como da mulher, educada tradicionalmente para cuidar dos filhos. É ausentando-se que o pai demonstra seu amor pelos filhos fazendo do trabalho e da ausência o meio de relação com eles. Toda a sociedade patriarcal tradicional funciona a partir de um afastamento do pai em relação ao filho cujas consequências não raras são trágicas a se pensar nos mitos, como os gregos, com Céu e Cronos considerando seus filhos temíveis a si, prendendo-os, e mesmo no cristianismo quando a pergunta de Cristo a deus, "Pai, por que me abandonaste?" ecoa Adão em seu silêncio diante do abandono de deus por conta de seu pecado no Paraíso.
A função dos pais em se distanciarem é mítica e religiosa, pressupondo a própria religiosidade numa busca de religação dos filhos com os pais, uma redenção para seus pecados e, às vezes, uma mudança na história da função pai. Zeus, diferente de seu pai Cronos, busca ajudar todos os seus filhos e não os considera temíveis para si ao contrário do que pensava seu pai Cronos e seu avô Céu e não por menos é chamado pelos gregos de Pai dos deuses e dos homens. Não são apenas alianças com as diversas mulheres e com os diversos deuses do Olimpo que Zeus estabelece, pois também ele estabelece uma aliança com seus filhos semi-deuses a quem sempre faz questão de ajudar para que eles não se voltem contra si. E sua ajuda aos seres humanos é senão uma compensação por sua distância divina, logo, infinita, bem como também com eles estabelecendo alianças.
No abandono que Cristo sente em relação ao deus pai cristão a distância não é menos infinita, bem como entre os homens e o deus pai todo poderoso a partir dele. Sua morte em flagelo demonstra este distanciamento trágico que requer o sacrifício do próprio filho em nome de deus como Abraão pensara em ter que fazer imolando o próprio filho e Agamenon fez em relação à sua filha Ifigênia sacrificando-a ao deus Poseidon para garantir aos gregos mares tranquilos para guerrearem contra Troia. A ressuscitação de Cristo, porém, é a religação de todos os seres humanos com deus a partir de dele no cristianismo que mantêm a esperança de estar como Cristo junto ao deus pai depois da morte.
São inúmeras as histórias de abandonos de pais em relação a seus filhos em diversas histórias míticas em culturas tradicionais patriarcais que marcam a função pai na família. Dentre elas, a mais exemplar é senão a de Laio como pai de Édipo, a mais difícil de todas quando não é o filho a ser sacrificado, mas a si mesmo que se deve sacrificar por ele, o que Laio recusa ao saber da previsão de que seu filho o mataria. Morrer pelos filhos é a função dos pais na sociedade patriarcal diferente das mães que é de dar a vida a eles e dar sua vida para eles a partir de suas entranhas cuidando deles ao nascer na sociedade patriarcal. Morrer pelos filhos é a principal função dos pais que a Laio é anunciada, mas a qual ele rejeita desde o princípio e isto leva a uma morte trágica.
O que o oráculo diz a Laio, por mais trágico que seja e que aconteça por seguinte na história de Édipo Rei teatralizada por Sófocles na Grécia antiga é a lei estabelecida à função pai. Ser morto pelo filho como é previsto pelo oráculo pode ser entendido literalmente, contudo, assim como na história de Abraão e Isaac, há uma distância não menos infinita entre o que os deuses dizem e o que os seres humanos entendem. Ser morto pelo filho, no caso específico de Laio, quer dizer, antes do transcorrer da história, morrer pelo filho, cumprir a função pai que Laio tanto desejava cumprir, mas ao saber o que aconteceria a si rejeitou seu filho mandando matar seu filho logo depois de nascer.
Pode-se dizer neste sentido que o que o oráculo disse a Laio foi o que este deveria suportar caso quisesse ter um filho, caso quisesse ser pai, e o que todos os pais devem suportar, isto é, morrer pelos filhos. Algo necessário ademais na medida em que numa sociedade tradicional patriarcal e em guerras constantes como no período antigo os homens têm além da função de serem pais a de serem guerreiros e defenderem a família e a cidade-Estado, donde provém o seu poder patriarcal pela força e violência em geral. Em contrapartida transferindo aos filhos homens a função de serem o pai da família em sua ausência devido à guerra como Ulisses ao se despedir de Telêmaco para guerrear por sua família e, por extensão, pela Grécia contra Troia.
Se a tragédia de Édipo foi matar o próprio pai, a tragédia de Laio foi morrer pelo filho como fora previsto, porém, sem nunca ter sido seu pai de fato, por ter cumprido a função sem honra, morto como um desconhecido ao filho, só lembrado por si depois de sua morte e já sem culpa, por não o ter conhecido quando o vira e, em disputa, por raiva, tê-lo matado. Nada mais trágico para um pai do que morrer pelo filho sem ser reconhecido por ele, sem que o seu filho o honre e sua memória e lembrança da perda do pai seja como a da perda de um desconhecido sem culpa em relação a si. Mesmo Édipo tendo matado seu pai e casado com sua mãe como previra o oráculo, quando ele descobriu isto e se exilou sua filha Antígona o acompanhou até o fim da vida cego em seu ostracismo sendo Édipo ainda assim reconhecido por sua filha.
É uma separação que une pai e filho, isto é, estabelece a relação entre pai e filho, e Freud em seu luto pelo pai ausente soube perceber na história de Édipo o princípio da sociedade tradicional patriarcal que permanece na moderna sociedade capitalista a produzir doenças psíquicas quando a ausência do pai não é superada e sua presença supre sua ausência senão com indiferença, repressão e violência. Nada pior para um filho do que o encontro trágico com o pai ausente como o de Édipo com Laio, quando a presença do pai representa um conflito em casa a cada dia tornando abissal a separação entre pai e filho, quando não com violência e morte. Se existe na sociedade capitalista uma alienação do homem em relação à sua produção, nada mais condizente com esta sociedade do que a alienação dos filhos em relação aos pais, da separação total dos pais em relação aos filhos pelo trabalho.
Se Édipo é tão condizente com a sociedade capitalista como Freud percebeu, e Deleuze e Guattari mais ainda com seu Anti-Édipo, é porque a função pai na sociedade moderna é ainda trágica como a de Laio que abandona os filhos para se manter no poder, como fizera miticamente Céu e Cronos cada um ao seu modo. É porque na sociedade capitalista a função pai de estar ausente se torna uma lei instituída a partir do trabalho ao alienar o homem da sua produção e de seus filhos. E neste sentido aliena também os filhos de si no cuidado e formação deles por ter que se distanciar pelo trabalho, quando não pela guerra.
Diante desta função pai de estar ausente, de ser Laio, não é difícil perceber como a sociedade degenera pouco a pouco no capitalismo com uma profunda edipianização dos filhos que se voltam contra os pais ou que assumem a função pai em casa quando o abandono não é somente afetivo e temporário, mas para a vida toda. Um abandono que torna cada vez mais a sociedade violenta com a raiva, ressentimento e vingança dos filhos incapazes de superar o abandono do pai, como Édipos que se voltam inconscientes contra toda a sociedade destruindo-a como acontecera a Tebas em maldição após a morte de Laio. E assim uma alienação dos filhos em relação aos pais se produz mais trágica ainda na sociedade capitalista produzida pelos próprios pais que abandonam seus filhos como Laio sem quererem exercer a função pai, além da recusa de exercê-la devido o trabalho.
Numa linha de fuga constante entre a presença violenta e a ausência indiferente dentro de uma estrutura de poder tradicional familiar patriarcal no capitalismo, a função pai é uma das mais difíceis do homem na tentativa de não ser edipianizante em relação aos filhos para que não se voltem contra si. Isto porque se a alienação do produto do trabalho humano na sociedade capitalista é algo inevitável ainda, a alienação do filho em relação ao pai é complexa para aqueles que não querem fazer parte da estrutura de poder patriarcal dos pais em relação aos filhos, quando aqueles devem se sobrepor a estes numa autoridade e violência e os filhos em obediência. Donde um ciclo de violência edipianizada de filhos que se tornam pais com uma autoridade repressora e violenta totalmente indiferentes aos filhos, às vezes matando-os, como desejou Laio com Édipo sem ter conseguido cumprir.
Pensar exercer a função de pai na sociedade aquém desta estrutura de poder tradicional patriarcal e não edipianizar os filhos com sua distância, isto é, não se separar deles além do necessário, não os abandonar e não desejar matá-los por temê-los, sobretudo, é a principal função dos pais hoje em dia deixando de serem Laio em suas vidas. Mais ainda é preciso não morrer pelos filhos modificando a função pai numa sociedade tradicional patriarcal, evitando todo e qualquer distanciamento em relação a eles como Laio em relação a Édipo seguindo ao contrário o seu exemplo como ensinam os mitos e as tragédias antigas. Isto porque é melhor viver pelos filhos do que morrer por eles, e só assim vivendo por eles sem temer a morte por eles mesmos é possível uma relação pai e filho para além de toda edipianização numa sociedade patriarcal tradicional capitalista.
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