O limite do amor

O amor é um limite. O amor nos impõe um limite. O amor nos limita. O limite do amor, porém, não é a posse do outro, tão pouco uma delimitação do que o outro deve ou não fazer. Não se trata de um limite imposto pelo outro, mas ao outro quando este lhe faz mal, excede o limite e o que era uma relação desejante de amor se transforma em obsessão, em ódio, destruição e morte.

Quando na Teogonia, de Hesíodo, a deusa Terra reclama a fidelidade de seus filhos divinos para se insurgirem contra as ações indignas do deus Céu, a quem ela criou como igual a si para ser o seu limite ao circundá-la ao redor, foi porque Céu em sua obsessão e ódio aos filhos a quem temia, promoveu a destruição e morte deles ao não deixá-los vir à luz, isto é, abortá-los. O que era uma relação desejante, isto é, a partir do deus Eros, passou a ser uma relação abusiva como se diz atualmente que impedia Terra de ter seus filhos em sua superfície obrigando-os a ficarem nas suas profundezas, presos nela como uma cova, onde era o Tártaro, a região dos mortos. A obsessão de Céu por Terra e em relação aos seus próprios filhos, prendendo-os e matando-os por assim dizer, pois divindades não morrem, fez Terra reclamar o amor dos filhos por ela, um amor filial para ir contra a maligna arte de Céu através de armas produzidas por ela e de um ardil que tramou para impedir a obsessão, ódio, destruição e morte produzida pelo pai deles. Era uma medida para conter o extremismo do pai cuja ação ultrapassava o limite de uma relação desejante, medida no caso que era o amor, o amor à Terra pelos seus filhos, amor materno, e deles por ela em fidelidade.

A fidelidade de Cronos à sua mãe Terra, isto é, seu amor por ela, amor de filho, amor filial, o único que se predispôs a ir contra o próprio pai, impôs um limite a este quando castrou seu desejo obsessivo, o que demonstra o limite do amor. Se do sangue respingado na Terra surgem as Erínias, montanhas rochosas que a representam a vingança, esta é motivada por sua vez para conter a obsessão, o ódio, destruição e morte e não promover tudo isto. O nascimento de Afrodite do esperma do pênis castrado lançado no Mar ao tocar a Terra de Citereia e Chipre, demonstra, além disso, como o amor advém de um limite e como limite mesmo, uma castração da relação desejante. Mas não uma castração do desejo que continua a existir entre Céu e Terra, agora sem obsessão, como se percebe no momento seguinte quando o amor de ambos é reclamado pela filha Réia para conter o irmão Cronos que se tornou tão abusivo como o pai e mais ainda em sua obsessão em engolir os filhos que tem com ela por temer que fizessem o mesmo que ele fez com seu pai, o que faz Réia pedir ajuda aos pais para conter o irmão.

A ajuda de Céu e Terra à Réia para conter Cronos leva ao nascimento de Zeus, cuidado e criado por Céu e Terra, e demonstra o amor dos pais pelos filhos, além do amor de mãe e filho, pois não apenas os pais excedem os limites, também os filhos e principalmente estes. Céu antes de ser pai era filho da Terra, portanto não conhecia os limites de uma relação desejante, não conhecia o limite do amor que Terra lhe impõe a Céu e que ambos agora impõem ao filho Cronos em mais um ardil, dizendo para Réia substituir Zeus por uma pedra enrolada num manto e dar a Cronos para engolir pensando que era seu filho. Um ardil ao qual se segue outro, o de Zeus ao próprio pai para libertar de seu estômago os irmãos engolidos, surgindo daí um amor fraterno, um amor pelos irmãos e entre irmãos, pela liberdade dos irmãos assim como ele foi libertado e que não se resumiu a libertar apenas eles, mas também os tios aprisionados por seu pai Cronos. Se a Titanomaquia, batalha épica que representa no poema hesiódico a luta dos Titãs filhos do Céu e Terra contra os Cronidas filhos de Cronos, isto é, entre o titã Cronos e seus aliados e os aliados do cronida Zeus, é descrita como "caótica" e uma catástrofe em toda a natureza até então criada, e que é abalada pela luta de pais e filhos, é porque a obsessão, ódio, destruição e morte que Cronos promove é muito maior do que até então havia na natureza e somente com uma força muito maior que a sua para conter seu poder, para que todos na Terra fossem livres em relação a Cronos.

Foi, por sua vez, o amor da filha Réia ao filho e aos pais Terra e Céu, o amor destes como pais a ela, o amor de Zeus aos irmãos e destes a ele, o amor de Zeus aos tios e destes também a si como sobrinho, isto é, todo um amor familiar necessário para conter Cronos em sua obsessão, ódio, destruição e morte de todos os seres da natureza. A vitória de Zeus sobre Cronos representa um limite muito maior do amor a tudo isto e as alianças que ele a partir de então tem com várias deusas celebram um amor entre deuses e deusas sem abusos, mas não absolutamente, pois relações desejantes abusivas continuam a existir entre os deuses que requerem um amor a Zeus para serem evitadas, o qual surge das entranhas da Terra, do rio Estige no profundo Tártaro, a partir do qual há um juramento a Zeus. Um juramento que é não apenas uma defesa de Zeus, o deus pai de todos os deuses como é aclamado, contra todos que sejam contra si, mas principalmente um reclame de justiça divina contra todos aqueles que queiram tirar a liberdade daqueles então libertos por Zeus, pelo amor de Zeus a todos, no caso, os gregos.

É o amor ao qual se reclama para limitar aqueles que obsessivamente, por ódio, querem destruir e matar todos os seres quando se clama, portanto, a Zeus e aos deuses. Um amor que imponha um limite ao abuso de todos os limites, pois sem amor nada existe, nada existiria, nada existirá. É este amor que limita uma relação desejante que se torna abusiva o que representa a aliança de Zeus com diversas deusas, mas também que representa a aliança de Zeus com todos os seres humanos gregos e de todos os gregos consigo, limitados a partir de então pelo amor entre si para conter os abusos de parte à parte em nome da Justiça que é então o limite imposto pelo amor de cada grego a si mesmo em nome de Zeus.

O amor é, deste modo, o limite contra toda posse e poder que representam a obsessão da qual se originam, bem como contra todo ódio advindo da limitação desta obsessão de posse e poder e contra toda destruição e morte produzidas por esta obsessão quando ela é limitada. Nos dias atuais, quando todos os limites são excedidos por uma relação desejante obsessiva é preciso pensarmos cada vez mais no que é o amor em seu limite que limita nossa ação em relação aos outros, impedindo todo mal que possa provir de uma obsessão. Neste sentido, é preciso pensar no por vir de toda ação o que justamente o amor nos faz pensar, mas geralmente não pensamos em nossas relações desejantes e tendemos a ultrapassar o nosso limite ao outro por obsessão e ódio a produzir prisões e covas como símbolos de destruição e morte dos outros.

Se há um limite do amor e o amor é o limite é porque é a vida que está em questão nesta relação desejante a qual não é um mal em si, mas se torna um mal quando passa a ser um excesso de limites, isto é, uma posse e poder sobre os outros, uma prisão e cova. Tal excesso de limites ou obsessão é o que é contido pelo amor enquanto limite de todo excesso de uma relação desejante que leva ao ódio e à destruição e morte de todos os seres da natureza. Não é, todavia, um amor romântico ou ideal o que se pressupõe neste caso, pois ambos advêm de uma obsessão pelo outro numa relação desejante e excessos de limite que levam a uma tragédia. Trata-se de um utópico ou revolucionário pressuposto contra toda posse e poder que se produza a partir de uma relação desejante obsessiva, abusiva, que leva ao ódio, destruição e morte.

Um amor utópico ou revolucionário é um amor pelo outro sem querer ter posse e poder sobre ele. Tal amor não pressupõe um felizes para sempre, pois não há nenhum romantismo ou ideal nele a partir do qual ao se obter a liberdade e impor um limite a toda posse e poder, não haverá mais relação desejante obsessiva que leve à posse e poder, bem como ao ódio, destruição e morte. O amor utópico ou revolucionário não é contra o desejo e as relações desejantes, apenas impede que elas se tornem obsessivas e se é um amor para sempre não é porque se viva feliz de modo absoluto a partir de um limite imposto pelo amor dos outros ou aos outros absolutamente, mas porque a cada momento da existência é o amor entre os seres que sempre se produz quando há um limite entre eles, quando há uma aliança de todos por amor uns aos outros e para manter amor entre eles a cada momento que alguém obsessivamente, com ódio, tentar destruir, matar a relação desejante entre entre todos e o amor como limite de toda obsessão nela.

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