O a-partamento filosófico
Não fazemos filosofia, a filosofia que nos faz. Quando começamos a filosofar já não temos mais poder sobre nós mesmos, sobre nossos pensamentos, sobre nossas ações e nossos afetos. A razão nos domina. Não uma razão que nos dá um saber sobre tudo, sobre a verdade. Mas uma razão que produz um a-partamento em relação a nós mesmos e tudo que nos diz respeito no tempo e no espaço, e é inútil lutar contra isso, pois a filosofia produz este a-partamento em relação a nós mesmos para sempre.
O ato de filosofar é este a-partamento involuntário que produzimos em relação a nós mesmos por alguma razão, em algum momento no tempo e no espaço de nossa existência na terra. Trata-se de um ato de separação, de ruptura, de cisão, de Kháos, no sentido grego de uma abertura, em relação à nós mesmos, ao que somos para nós, à nossa identidade. Todavia, esta separação não é total, não é uma ruptura radical, uma cisão que nunca é desfeita, um abertura que não é fechada em algum momento, pois há também no ato de filosofar uma união, uma ligação, uma junção e um fechamento em relação a nós mesmos de novo e novamente sempre de modo diferente.
O ato de filosofar é este a-partamento involuntário que produzimos em relação a nós mesmos por alguma razão, em algum momento no tempo e no espaço de nossa existência na terra. Trata-se de um ato de separação, de ruptura, de cisão, de Kháos, no sentido grego de uma abertura, em relação à nós mesmos, ao que somos para nós, à nossa identidade. Todavia, esta separação não é total, não é uma ruptura radical, uma cisão que nunca é desfeita, um abertura que não é fechada em algum momento, pois há também no ato de filosofar uma união, uma ligação, uma junção e um fechamento em relação a nós mesmos de novo e novamente sempre de modo diferente.
É uma diferença que o ato de filosofar produz em nós mesmos em razão deste a-partamento e que não podemos evitar e tão pouco queremos evitar, pois pouco a pouco entendemos que esta diferença não é algo negativo, oposto a nós mesmos e que venha, por sua vez, destruir quem somos. Em vez disso, a diferença produzida por este ato constrói quem somos, pouco a pouco nos dando uma razão para viver que é a razão filosófica, o ato de filosofar em si mesmo. No caso, o ato de produzir a-partamentos constantes em nossa vida, diferenciações a produzirem novas identidades, mudanças em nós mesmos, muitas vezes incompreensíveis a nós e, principalmente, aos outros.
Eis algo que poucos entendem no que diz respeito ao filósofo e ao filosofar que é esta mudança produzida naqueles que filosofam e que é considerada loucura por não ser justamente entendida, por sua linguagem se tornar estranha ao ponto de considerarem-no um estrangeiro a quem é dado acolhida ou é expulso veementemente da vida cotidiana. Tão pouco os filósofos conseguem explicar isto plenamente, pois não são propriamente eles que fazem isto, mas a filosofia, não como um ser metafísico, divino ou maligno, que os domina e os faz serem diferentes do que são. Pois não é um poder de outro ou de outrem que os domina, mas um poder propriamente de se tornar outro ou outrem ao filosofar, de ser diferente do que é para si e para os outros, de não ser a si mesmo, de não ter identidade, de ser diferença, ou ainda, uma différance, algo incognoscível, indecidível, que não é ainda e tão pouco se impede de ser ou se teme ser, que não se põe em dúvida a partir de um ser ou não ser lógico e ontológico.
Vir a ser filósofo é vir a ser diferente, mas não no estilo, numa linguagem, num costume, numa cultura, numa política ou em algo socialmente definido. Vir a ser filósofo é vir a ser diferente no ser, no que se é, em si mesmo, naquilo que se diz ser, em sua essência ou substância, sua arkhé, sem a qual o ser perde todo seu sentido, sua vida, seu sentido de viver, como uma mônada sem portas e janelas que ninguém pode entrar ou habitar, apenas se hospedar brevemente e dentro de determinados cômodos, sem incomodar, ser incômodo. Ser diferente no ser não é tão simples neste sentido e este o motivo pelo qual o a-partamento que a filosofia produz no ser a si mesmo é apenas momentâneo e nunca total, pois não se pode ser diferente no ser totalmente, absolutamente. Há sempre uma identidade consigo que impossibilita a diferença em algum momento, em algum sentido, no tempo e no espaço. Nenhuma mudança no ser si em si mesmo é instantânea e tão pouco a mudança que o ato de filosofar produz o é em seu abalo sísmico a produzir um a-partamento em nós mesmos, abrindo-nos a uma diferença que não sabemos qual é ou vai ser, que se produz em nossa vida.
Se existe uma diferença em nossa vida, ela é produzida pelo ato de filosofar, pelo a-partamento que este produz em nós e não necessariamente é o filósofo que o produz, isto é, o filósofo acadêmico ou aquele que decidiu ser filósofo. Todos tem este momento em sua vida que se mistura a muitos outros e se confunde com muitos outros em sua vida cotidiana motivados por algo que num determinado momento do tempo e do espaço os faz pensar em si mesmos e uma diferença em si mesmo se produz por alguma razão. Ou seja, se produz por alguma separação de si em relação a si mesmo, ao que é, ao que tem sido até então e que é revisto de algum modo fazendo com que se una a si novamente de modo diferente. Não importa se esta diferença é visível, que ela apareça de fato para si e para os outros, pois se trata de uma diferença em si mesma, isto é, uma diferença que é produzida no ser ao pensar em si mesmo, no que é enquanto ser, em sua identidade, não necessariamente uma identidade definida, ainda que o ser se defina de algum modo e seja sempre de algum modo que se pensa no ser, no que se é, em si mesmo e, por alguma razão, a-partamento, não se quer mais ser ou se pensa em não ser mais.
Se nos fazemos filósofos é porque a diferença em relação a nós mesmos deixa de ser um momento extemporâneo em nossa vida para ser algo comum, fundamentado no tempo de nossa existência ou como nossa existência mesmo no tempo, o nosso modo de ser no tempo e em qualquer espaço ou lugar da terra. Isto porque simplesmente não se pode mais deixar de ser filósofo quando se torna um, deixar de ser estranho a tudo e a todos em algum momento em algo que diz e faz, em seus atos e afetos na medida em que tudo que é dito, feito em ação e afeto passa a ser filosófico. Existe uma encarnação da filosofia na vida daquele que filosofa e da qual ele é incapaz de se destituir para não ser deste modo, podendo apenas suspender por um breve momento esta diferença que se introduz constantemente em si mesmo e nenhuma identidade pode se fazer presente sem ela na medida em que se começa a filosofar. Se o filósofo diz eu, este eu é tão somente a reivindicação de uma identidade produzida pela diferença que o ato de filosofar produziu em sua vida, devido o a-partamento filosófico em relação a si mesmo e que se tenta evitar de modo absoluto, e o qual se confunde com o absoluto em certa medida, como se o filósofo fosse alguém absolutamente diferente dos outros, seu pensamento absolutamente diferente do pensamento de todos os outros, numa assunção de si mesmo a uma diferença absoluta a partir do que pensa, do seu cogito, ou ainda, de sua consciência ou espírito.
Na medida em que se filosofa, que a filosofia nos faz ser diferente, há sempre o risco de se buscar a diferença em relação a tudo, de produzir uma identidade absolutamente diferente de tudo a partir do pensamento, uma ideia que não tem mais nenhuma relação com a realidade, por mais que se identifique a ela, nela e com ela. Uma ideia absoluta da realidade que não é a realidade a não ser de si mesma e em sua identidade consigo mesma passa a ser a realidade de tudo, quando o real passa a ser ideal e a ideia se torna realidade em si mesma e da realidade em si mesmo, e já não existe mais nenhuma relação do ser consigo mesmo na realidade, somente com uma ideia que passa a ser si próprio, seu eu absoluto. É o momento em que nos tornamos totalmente diferente de nós mesmos pensando que somos nós mesmos e que toda alienação em relação a si mesmo se produz a partir de um a-partamento radical em si mesmo produzido pelo ato de filosofar, mas não necessariamente é a filosofia o que se produz neste caso, pois trata-se de uma identidade o que se busca em relação a si mesmo e não uma diferença. Uma identidade que supra definitivamente o ato de filosofar, o a-partamento filosófico, uma união que impeça qualquer separação, uma ligação que impeça qualquer ruptura, uma junção que impeça qualquer cisão, um fechamento que impeça qualquer abertura, um ser absoluto que impeça qualquer relatividade do ser.
Se a filosofia nos faz ser quem somos é porque ela desfaz quem somos em si mesmos e a nós mesmos, porque ela produz um a-partamento em nossa identidade cotidiana produzida em diversos aspectos sociais, políticos, linguísticos, em tudo que diz respeito à aparência do nosso ser, de nossa essência. Uma aparência que se desfaz na medida em que nossa essência não é mais a mesma, em que deixamos de sermos nós mesmos, para nós mesmos e para os outros, não há mais uma identidade definida ou identificada. Enquanto todos vivem em meio a aparência de serem algo em sua essência, de terem e requererem uma identidade, a filosofia nos faz não parecermos mais nós mesmos, não termos mais a aparência de sermos nós mesmos, de não termos uma essência que possa ser nossa identidade, tão somente uma diferença que é negada e a qual muitos se opõem, ou que é vista como positiva na medida em que é identificada e não representa nenhum temor e tremor àqueles que nos veem sem nos ver no que somos enquanto filósofos.
O fazer filosófico na medida em que é um a-partamento em relação a nós mesmos não é, deste modo, a busca de uma identidade, de uma verdade, de uma razão para o ser ou do ser, do que se é e do que tudo é. Trata-se de uma busca do ser sem ser, do que é e não é ainda, de uma verdade que nunca vem a ser verdade na medida em que não se fecha em si mesma de modo absoluto, de uma razão que não é uma razão, pois não há um fundamento para si que seja a si mesma, racional ou irracional, físico ou metafísico. Se existe, por fim, uma identidade, uma verdade, uma razão filosófica é apenas como o resultado do ato de filosofar, do a-partamento produzido pela filosofia, pelo que a filosofia faz em nossa vida, de nossa vida, da vida de todos aqueles que vivenciam seu ato e que são afetados por ele, pelo filosofar em pensamentos, ações e palavras manifestadas em falas e escrituras.
Por fim, apesar da separação que o ato de filosofar produz naquele que filosofa, é a união o efeito e afeto deste ato, e é neste sentido que a filosofia é um a-partamento em relação a nós mesmos, uma separação e união ao mesmo tempo conosco e com todos na terra tal como pressupõe aqui a partir de uma arkhephylosophia, uma filosofia sobre a origem da filosofia no ser na terra que é senão uma filosofia do a-partamento do ser na terra a partir da filosofia.
Nenhum comentário: