O dom da vida


A vida é um dom, mas também uma dívida. É algo que nos é dado, mas também cobrado. Nascemos sem querer e somos obrigados a morrer, a quitar nossa dívida. Podemos antecipar esta dívida a qualquer momento, mas não o fazemos, geralmente porque concebemos que a vida é um dom que não podemos recusar. Seja porque nos foi dado, seja porque desde o primeiro momento em que começamos a viver e dizer uen!, este grito gutural da existência nos faz amar a vida, ser grato por ela, a cada momento, por este dom que é viver.

Todavia, não é fácil viver. São muitas as cobranças na vida e pela vida. Antes mesmo de nascermos somos cobrados a viver, é cobrado que a vida seja gerada, depois gestada e protegida a qualquer custo, principalmente o custo da mãe, obrigada a ter um filho segunda uma finalidade religiosa, cultural, econômica, patriarcal. Deve-se viver, deve-se fazer viver, deve-se manter a vida, deve-se manter-se vivo. Não há como evitar este dever que é uma lei imperativa pressuposta pela própria vida dada como dom e cobrada como dívida em si mesma, vida em dívida consigo mesmo, dividida em si mesma, obrigando-se a viver mesmo sem querer.

Aceitar as cobranças da vida, pela vida, é um dos nossos maiores problemas como seres humanos. Nenhum outro animal passa por isso, por mais que possamos transpor para eles nossa inteligência, nossas emoções, nossos pensamentos alegoricamente. A natureza não os fez assim, apenas a nós. E eis o primeiro problema que enfrentamos em relação à nossa vida: por que nós? Por que apenas nós, seres humanos, somos assim endividados pela natureza a viver na medida em que, em princípio, ela nos dá a vida? Natureza que nos impele a viver de modo natural, enquanto bio, vida em princípio, mas também conscientes da vida?

Não há consciência animal a não ser a do próprio ser humano enquanto animal, que reconhece a si mesmo como parte da natureza, mas já como um animal que não é como os outros animais na natureza justamente por este reconhecimento ou sua consciência. Se existe uma diferença entre nós e os animais é, por sua vez, neste sentido a de que os animais não se reconhecem enquanto animais, não há nenhuma identidade pressuposta por eles, apenas deles entre si conhecendo as diferenças em relação aos outros, animais como eles, e não conhecimento deles a si mesmos em si mesmos, portanto, não pressupondo nenhuma identidade quanto a si. Isto é, não se reconhecem a não ser no outro, a partir do outro, de um instinto que os impele ao outro e repele o outro a si, que os faz caçar o outro e, ao mesmo tempo, fugir dele dependendo de sua diferença, ou ainda, serem indiferentes ao outro, pressupondo o outro enquanto tão somente diferente, sem qualquer oposição dele a si.

Se os animais são dons da natureza em sua vida assim como nós, não há nenhuma dívida deles em relação a ela. Eles vivem a natureza em toda sua intensidade sem se preocuparem com a vida mesma dada pela natureza, a não ser instintivamente por um conatus como expressão da natureza em seu princípio de conservação de si enquanto vida, princípio do dom da vida, sem cobrança, posto que a natureza, ela mesma enquanto vida, não se cobra, apenas se dá a tudo que nela existe. Uma preocupação, porém, que deixa de ser uma conservação da vida em instinto no ser humano como conatus natural ao ser antecipada e intensificada em sua potência pela razão, esta capacidade de antecipar o fim, o limite, a morte da vida e, a partir de tudo isto, precaver-se mais do que qualquer outro animal a quem a natureza dá o dom da vida.

A razão é nossa diferença em relação aos animais na medida em que cada uma de nossas ações se tornam preocupações com nossa vida mesmo quando não estamos preocupados com ela, divertindo-nos com alguma coisa. A potencialização da nossa vida pela razão dada pela natureza segue o mesmo princípio do dom e da dívida. Somos racionais e podemos conseguir o que quisermos a partir de nossa racionalidade, mas também somos cobrados por isto, por aquilo que nos é dado, e a nossa preocupação é senão a preocupação com a vida constantemente, sem podermos descuidarmos dela, pois a razão não deixa nos despreocuparmos.

A lei imperativa do viver é, em princípio, natural, impelida pela natureza de modo instintivo, inscrita em nosso próprio corpo ao sentir fome enquanto necessidade de se manter vivo e o que nos impele à destruição da vida, à morte do outro para sobrevivermos, isto é, manter-mo-nos vivo matando o outro. Se este outro é vegetal ou animal é sempre vivo e somente o que é vivo é digerido por nós e nos mantém vivos, com toda uma potencialidade de vida, mais ou menos energizada pelo que matamos e consumimos para viver. A razão aumenta nossa preocupação de viver e se passamos de uma alimentação vegetal para animal é porque a vida aumenta em intensidade e o que consumimos não nos mantém vivos tal como a natureza nos impele a viver. Podemos viver somente de alimentos vegetais, reduzindo assim a potência do nosso corpo para melhor mantê-lo vivo, mas não necessariamente o nosso corpo requer se manter apenas vivo, por mais saudável que seja, pois há uma intensidade no corpo que o impele a viver mais intensamente algo e não necessariamente isto quer dizer viver melhor ou mais biologicamente.

A vida é bio, mas não é apenas isto. Se fosse, seríamos apenas animais em busca de alimentação e fornicação, para manter nosso corpo e nossa libido, bem como manter a vida deste modo biológico e libidinoso de ser. Se há um instinto de sobrevivência natural enquanto conatus e que determina nossa capacidade de raciocinar a vida naturalmente, isto é, separar o que nos mantém e o que não nos mantém vivos, o que nos dá prazer e dor, alegria e tristeza, vida e morte, a razão dada a nós para viver nos faz ir além desta vida biológica de afetos no corpo e na mente. E há, deste modo, a cobrança de uma vida para além da natureza, para além de seu instinto, de um conatus como nosso reconhecimento dos afetos naturais, pois a vida também é definida pela razão além dos afetos, e se os afetos determinam nosso ser naturalmente, a razão define e redefine nossos afetos e a própria natureza. Somos endividados pela natureza biologicamente em nossos afetos, mas vamos além desta dívida, e de sua quitação, o que implica uma segunda natureza determinada pela razão, mais endividante do que a primeira consideravelmente e que é o reconhecimento desta dívida mesma com a natureza a partir da cultura, esta segunda natureza diretamente relacionada à natureza em si mesma, mas também um ir além do reconhecimento dela e de nossa dívida com ela.

Se a vida é bio em sua natureza afetiva, ela é também definida pela razão culturalmente ao potencializar a vida natural em si mesma ao fazer dela uma razão de viver, a razão de estar vivo e a qual se deve pagar vivendo até o limite de suas forças naturais. Não se pode deixar morrer de fome e nem de afetos tristes, nem mesmo se deixar afetar por estes ou mesmo advir a fome. É preciso constantemente estar se alimentando para não sentir fome, buscando afetos alegres para não sentir tristeza. É a lei da natureza afetiva que nos impele a viver mesmo que não queiramos, mesmo que nossa consciência de morte e do fim de tudo nos impila a morrer para não sofrer como último momento em nosso conflito natural afetivo, quando o conatus impera como lei, mas já sem força, sem potência de vida, pois são muitos os afetos tristes que nos dominam e nenhuma alegria se torna mais possível em nossa mente que, assim, desfalece juntamente com o nosso corpo, anoréxica como ele, sem desejo de vida.

Se existe uma natureza cultural além da afetiva é porque a natureza afetiva não consegue evitar nossa morte plenamente. A natureza em si mesma é falha e isto se reflete no ser humano primordialmente porque ele é o único ser que percebe a falha da natureza. A razão é ao mesmo tempo a falha humana e aquilo que permite o ser humano reconhecer suas falhas enquanto ser na natureza e da própria natureza e a natureza ela mesma enquanto falha e, neste sentido, busca supri-la, suplementá-la, ir além da falha, buscar ser sem falhas, ser perfeito e um ser perfeito. Inscrever a vida numa linha reta segundo sua razão more geometrica para evitar toda e qualquer falha da natureza afetiva a partir de uma natureza cultural, advinda da cultura da natureza, do esquadrinhar a terra como um espaço para a razão no qual o ser humano inscreve seus pensamentos ao longo do tempo e constitui seu tempo de vida para além da natureza.

A cultura é o plano de vida do ser humano, seu modo de ser no tempo para além do tempo natural, seu impelir natural para além da natureza a partir da razão que o faz reconhecer a natureza e a sua natureza nela, seu plano de imanência. Cada cultura criada pelo ser humano é parte deste plano de vida e se elas são diferentes entre si e seus planos não coincidem por diferenças específicas, a cultura em si mesma não deixa de ser um plano geral e universal no qual todo ser humano é impelido a criar para viver além de sobreviver. Não importa o quão remota seja esta cultura no tempo humano e natural ou quão remota seja ainda esta cultura na terra, isolada em alguma determinação do espaço enquanto território humano e não somente geométrico, qualquer criação do ser humano a partir de sua razão determinada pela natureza é já um ir além desta, é já o estabelecimento de um plano de vida: selvagem, bárbaro ou civilizado, ou ainda, pós-civilizado, isto é, fascista, ansioso pela morte da cultura em todas as suas diferenças e pela fundação de uma natureza propriamente humana, no caso, de determinados seres humanos pré-definidos culturalmente como raça superior.

Se a natureza é, em princípio, este dom da vida e da dívida por ela, somente é possível reconhecer a vida enquanto dom e dívida a partir da cultura, e tudo que foi dito até aqui é já cultural e não propriamente natural, vai além da natureza, não necessariamente se determinando ou sendo determinado por ela a partir de um conatus que difere em cada cultura enquanto modo de sobreviver, em princípio, no que diz respeito à alimentação e aos desejos. Se há um conatus de modo geral em relação a todo e qualquer ser vivo na natureza, há não por menos um conatus em particular que diz respeito ao modo como cada ser vive, animal e humano, e, no caso deste, este modo de viver difere a partir da cultura não simplesmente como modo de viver, mas sobretudo como plano de vida. Se a cultura humana é um plano além de um modo é porque ela mesma não é definida por um meio ou método específico já predeterminado como sendo o verdadeiro para defini-la ab infinito, ou seja, porque o plano pressupõe um fim e não simplesmente um meio e que, para este fim, qualquer meio é possível, até mesmo a morte, e nenhum meio é o bastante, nem qualquer equilíbrio dele em um traço geométrico que torne a vida uma linha reta, ainda que desviada pelos afetos.

A cultura é um plano de vida porque a razão está constantemente diferindo o meio, o modo e o método de viver na natureza e a partir da natureza e da própria natureza submetida à cultura a partir da razão e de um determinado conhecimento racional que busca dominá-la, fazer da segunda natureza a primeira, dos últimos os primeiros a partir de um dito, ou seja, da língua-gem. Toda a determinação geométrica da natureza pelo ser humano, não simplesmente aqueles que tornaram a geometria uma ciência em particular, no caso os egípcios e os gregos, mas todos os povos que geometrizam a natureza de algum modo com traços particulares criam a partir deste traço geométrico uma cultura em relação à natureza, diretamente relacionada a ela e que pouco a pouco a abstrai, isto é, trai a natureza ao mesmo tempo que se pretende mais fiel a ela a partir de sua abstração geométrica e cultural. Tal geometrização da natureza é a própria linguagem humana que determina o que é a natureza em cada um dos seus traços tornados visíveis a si e falados por si em uma determinada língua, configurada geometricamente para distinguir cada traço com um tom específico numa determinada oralidade ou voz que advém da natureza, mas nunca espontaneamente, pois é articulada em sua espontaneidade natural pelo ser humano em seu ir além do grito gutural da sobrevivência e dizer que está vivo, que está com fome e que deseja algo necessário à sua própria sobrevivência e para além dela.

A cultura enquanto plano de vida é uma sobrevida da natureza, aquilo que faz do ser humano ir além da natureza e instituir-se como ser humano nela, sobre ela, sobre a dívida em relação à vida que ela lhe dá cuja quitação é a morte a qual é repelida deste modo por cada traço humano deixado como marca na natureza, a marca de uma existência para além do tempo que a natureza lhe determina e que pertence agora a um tempo humano, o tempo da existência dos seres humanos, enquanto eles viverem culturalmente, mesmo que não reconheçam o que quer dizer estes traços, pois somente os seres humanos podem traçar sua vida, tornar a sua vida um traço permanente na existência a partir da geometria. O traço humano é uma quitação do ser humano com a natureza, mas é também um novo endividamento na medida em que a cultura que este traço representa em sua língua-gem está diretamente relacionada à natureza e não lhe permite nenhuma salvação em relação a ela. Pois a cultura morre na medida em que o traço é apenas parte de um cultura, que se estabelece tão somente a partir de um determinado meio, de modo isolado em relação a outros meios, adaptada a um único meio no qual o ser humano vive por toda sua vida sem qualquer relação com os outros, sem conhecer os traços de outras culturas, de culturas diferentes de si, até mesmo querendo destruí-las para que exista apenas a sua cultura como a cultura humana por excelência. No caso, por capacidade de se impor às outras em habilidades técnicas de destruição e deste modo negando a vida não mais pela natureza afetiva que o impele a matar o outro para viver, mas pela cultura que o impele a viver matando e sendo morto por outras culturas diferentes de si sem necessariamente que isto lhe faça viver.

A cultura enquanto plano de vida é também cobrança na medida em que somos endividados por ela a morrer e não simplesmente viver para além da natureza. Estabelecendo-se em uma determinada região da natureza universal, na Terra enquanto planeta em princípio, o único habitável até o momento, e em um único lugar da Terra num território específico, cada cultura depende do meio em que vive naturalmente e extrai dele toda sua potencialidade de vida até a exaustão dela, isto é, sua morte, como qualquer outro animal, obrigando-se a deixar o lugar em que vive para evitar a morte, ou morrendo nele na medida em que a cultura o limite a este lugar por toda sua vida como o lugar por excelência de sua vida, isto é, sua terra, seu pequeno mundo e sem o qual ele não vive, não havendo para si a menor possibilidade de existência em outro lugar. Cada cultura difere em relação à parte da natureza na qual ela se insere e morre na medida em que a natureza em que se insere se torna a natureza para si, isto é, o que determina sua vida e na qual deve morrer para não ir contra a natureza, a sua natureza que determina deste modo sua vida e sua morte, que lhe dá, enfim, o dom da vida e da morte como quitação da sua dívida com ela. Uma dívida que, por mais que ele transponha os limites da natureza como sua natureza, ele ainda assim a carrega para qualquer lugar da natureza, pois é a dívida, em particular, da natureza em geral consigo.

Eis a falha da natureza transposta para a cultura humana e que a própria cultura humana não consegue suprimir, suplementar, superar, na medida em que toda sua cultura é determinada pela natureza, pelo meio em que vive, pelo plano de vida e de imanência que é ainda um plano natural, ainda que geométrico, e não permite nenhuma salvação em relação à morte posto que é a morte que antevém a cada momento à vida para além do sobreviver. É um plano de morte, da morte, que é convertido em vida e cuja vida do ser humano consegue ir além na medida em que sua vida é totalmente determinada pela cultura como uma segunda natureza que lhe dá o dom da vida, impele racionalmente à vida, mas cobra uma dívida ainda maior que a da natureza que o faz viver e sobreviver. Isto porque se a morte é, na natureza, algo com o qual o ser humano lida saciando a fome e o desejo, a morte na cultura é insaciável. Não se trata, neste caso, de se manter vivo pela morte do outro, mas sobreviver às custas da morte dos outros mesmo que isto não implique a própria vida, isto é, mesmo que a morte do outro não seja o que sacie sua fome ou seu desejo, no caso deste uma morte orgástica, a pequena morte, morte do desejo em si mesmo pelo que deseja assim como da fome em si mesma pelo que alimenta.

Existe desde o princípio em cada cultura a morte como determinação da vida na cultura mesma na medida em que o ser humano percebe sua morte na natureza e busca se manter vivo para além do que ela lhe permite viver. Algo natural em certa medida, como um impelimento da própria natureza no ser humano em relação às suas capacidades naturais, mas que é ampliado culturalmente quando a morte exterior em relação ao ser que o pode matar em um determinado momento, mas é esquecido quanto não é identificado em seus traços, é transformada em algo interior, algo que fustiga o ser constantemente como um perigo constante em sua mente, um alerta a ela a cada passo na natureza e em cada momento que não passa dela, não vai além da morte pela razão de viver que, pelo contrário, o faz perceber a morte em cada momento, temer por sua vida a cada passo que dá na Terra vista como terrível para si, em terror constante. Toda a preocupação que o ser humano tem advém assim da cultura em que está inserido que faz perceber na Terra e no que vive nela um perigo, a iminência da morte diante da imanência da vida. A cultura advém desta preocupação, deste lugar que não é um lugar ocupado propriamente no presente, mas num passado e num futuro ao mesmo tempo, futuro antecipado pelo passado e no qual o ser humano busca viver para além da natureza, do lugar que ocupa nela, da vida determinada pela natureza na natureza, um lugar determinado pela cultura que antecipa o futuro de uma morte iminente num plano imanente de vida cada vez mais passado de modo originário, em busca de uma origem e de um fundamento do ser humano em relação a si na natureza e para além dela mesma na sua cultura.

Este recuo no espaço e no tempo para além de toda geometria cultural possível determinada pela natureza e determinando a natureza constitui o próprio processo cultural que avança cada vez mais para traz, cada vez mais em busca de uma arkhé que é o seu princípio no espaço e no tempo, mas para além do espaço e do tempo da natureza e da cultura determinada por si. Uma arkhé na qual a cultura se abisma profundamente num kháos devido à cisão e separação que há do ser humano em sua cultura com a natureza e que se torna a partir deste momento caótico no sentido de uma mesmo da arkhé, da origem ou originalidade de tudo, porém, de modo incompreensível para si, sem que ele possa verbalizar por si mesmo, abrir a boca e falar por si, em que todo si deixa de ser uma língua-gem e todo ser é transcendido em si mesmo de modo natural e cultural e passa a ser divino. Um ser transcendente ao ser humano e à natureza, que os transcende a partir de um plano de transcendência que já não é mais humano e, sim, divino e, como tal, seu destino, o momento em que todo o tino enquanto instinto natural e razão cultural é desdito, isto é, não pode ser mais dito a partir do ser humano, tão pouco contradito por ele, nem mesmo interdito por si, em sua lingua-gem, a não ser por ele mesmo como seu dom e sua dívida, aquilo que lhe dá a vida e lhe tira a vida naturalmente, ou ainda, obriga-o a dar a vida e a tirá-la culturalmente.

Se a vida é um dom natural e culturalmente determinado, bem como cobrado em mesma medida, na medida em que ela se torna um dom divino, ela é cobrada de modo indeterminado e infinito e a cada momento pode ser feita esta cobrança, isto é, pode ser quitada a dívida. A criação da vida de modo divino endivida desde sempre e para todo o sempre o ser humano e em cada momento de sua vida sem que ele possa escapar desta dívida na medida em que o divino é a sua razão de viver, de toda sua cultura e de sua natureza, e não é possível uma vida diferente, para além da divina, da determinada divinamente. Não existe nada ou somente o paradoxo da existência do nada para além do divino, um jogar de dados indeterminado no qual o ser humano não concebe nenhuma existência para si, nenhuma determinação natural, cultural e divina da vida, bem como nenhuma cobrança dela. Nada que não é a negação do divino, mas da existência em toda sua determinação pela natureza, cultura e pelo que é divino e que, portanto, é uma vida sem dom e sem dívida, que não é dada, nem cobrada, tão somente vivida a cada instante de sua existência sem agradecimento pelo dom de viver natural, cultural e divinamente, mas sem cobrança também pela natureza, pela cultura, nem pelo divino de sua dívida, posto que não há mais morte no nada assim como não há vida. O nada não é a negação da vida pela morte iminente da natureza, nem da morte imanente cultural, nem tão pouco a morte transcendente divina, é tão somente nada, a ausência de qualquer plano transcendente, imanente e iminente da natureza, cultura e de uma divindade para a vida, pois nele a vida determina-se a si mesma, de modo afirmativo, e não pela negatividade da morte iminente, imanente, transcendente do ser humano.

Se existe um niilismo, este não se refere ao nada de vida a não ser quando a vida é determinada pela morte natural, cultural e divina, quando pelo temor à morte se pensa numa vida que é nada de morte, uma vida eterna, que não é possível a não ser numa eterna recriação da natureza, do ser humano de modo divino após a morte, mas que é impossível natural e humanamente a não ser indo além da natureza e do ser humano a partir de uma concepção divina, como filho de um ser divino, criatura de um ser criador divino. Ou seja, o nada é o paradoxo de uma vida além da morte, o destino do conhecimento natural e cultural humano de sua própria vida, de seu dom de vida, bem como de sua dívida reconhecida divinamente para além de si mesmo e de tudo que é natural e cultural produzido por si. Se existe um nada para além de tudo, não existe nada para além do nada, isto quer dizer que, a partir do nada o que há é o retorno de tudo sempre e para sempre, o dom da vida eterna divina, cultural e humana para todo o sempre no tempo e no espaço de nossa existência, o refluxo infinito da vida que nunca deixa de existir mesmo que não existamos mais nela e que existe independente de nosso nascimento nela, sem querer, mas depois querendo viver eternamente em si.

Nada justifica nossa vida, mas é por isso mesmo que vivemos, em busca de uma justificativa constante de viver, por dom e por dívida, por dever, por conatus, por alguma razão qualquer que nos faça criar algo para dizer que estamos vivos, que vivemos, que viveremos, mesmo que não vivamos mais nesta vida, numa outra vida, a partir da qual pode ser nada, mas também tudo, pois do nada se pode fazer tudo que existe infinitamente de modo natural, cultural e divinamente. Justificar a vida a partir de nada é já justificar a vida a partir de si mesma e não mais pela morte, é não buscar uma explicação para viver natural, cultural e divinamente, tão somente viver, ser impelido pela vida sem repelir a morte, aceitando-a como este nada de onde viemos e para o qual retornamos para além de qualquer transcendência divina que nos impele a viver por dom, dívida, dever, conatus, razão e criação de algo que nos mantenha vivos eternamente, isto é, a partir de uma determinada arkhé enquanto princípio, origem, fundamento para a vida em si mesma que não tem em si mesma o menor fundamento, mas damos um a ela para, assim, melhor vivermos a vida que vivemos independente de qualquer concepção racional dela natural, cultural e divinamente.

Neste sentido, ninguém melhor do que Clarice Lispector para nos dizer o que é a vida:
Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento.

P.S. Escrito em 13 de maio de 2019.

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