Uma vida em paz
Em geral, lembramos da paz uma vez por ano, no final do ano especificamente, ou durante um conflito, quando é pedido paz em relação a uma guerra, ou quando se diz ao outro para nos deixar em paz. Também em relação à morte nos lembramos da paz ao desejarmos morrer em paz, o mesmo acontecendo em relação às despedidas quando dizemos aos outros fiquem em paz. Neste sentido, é sempre no término de algo que a paz é lembrada e, principalmente, como oposição ao conflito.
Kant foi o primeiro filósofo a escrever sobre a paz, fazendo dela um problema filosófico, em um pequeno texto A paz perpétua, onde se interroga até que ponto é possÃvel a paz entre os Estados e nações diante de toda a natureza humana. Natureza humana pensada por Hobbes antes dele como bélica num estado de natureza anterior ao Estado polÃtico, e que tão pouco é eliminado por ele quando o governante e o Estado detém um poder absoluto sobre a vida das pessoas. Muito pelo contrário, tal governante e Estado com poder absoluto requer constantemente a guerra de todos contra todos para que se sustente em seu poder absoluto, pois se a paz advir, ele deixa de existir, deixa de ser necessário, deixa de ter qualquer fundamento e sua destituição de poder é inevitável.
A defesa de um Estado grande e forte com poder absoluto sobre a vida das pessoas só tem fundamento na guerra e partir da guerra e todo e qualquer governante que queira se eleger que defenda tal Estado precisa declarar guerra a algo, como foi no caso de Hobbes contra as revoltas em sua época, ou do fascismo europeu, em particular o nazismo contra os judeus, em seguida, aos Estados europeus vizinhos. Foi este também o caso das ditaduras na América Latina influenciadas pelos Estados Unidos em guerra contra o "comunismo" e da antiga URSS contra o capitalismo. É o caso atualmente com o pós-fascismo em toda parte no mundo que não quer dizer um perÃodo posterior ao fascismo, mas um perÃodo em que o fascismo deixa de ser um aparelho de Estado como regime de poder que dá um poder excessivo a ele para ser um poder excessivo do Estado na vida das pessoas em seu cotidiano com todo seu militarismo bélico nas ruas em guerra contra qualquer inimigo público, terrorista ou que ele determinar como inimigo do Estado para mostrar seu poder absoluto.
Se há uma paz entre as nações ou se é possÃvel uma paz entre elas que seja perpétua como pensou Kant, ou ainda, se é possÃvel uma paz a partir do poder absoluto do Estado grande e forte como pensou Hobbes, isto foi muito bem definido por George Orwell em seu livro 1984, quando demonstrou que o fundamento deste Estado com poder absoluto, fascista e pós-fascista, esta paz é a guerra e que somente a guerra traz a paz, ou seja, Guerra é paz. O lema do Grande Irmão é o fundamento de um poder absoluto do Estado fascista e pós-fascista, pois é a guerra o fundamento necessário para que ele exista como oposto dela, isto é, como paz, e somente fazendo guerra se pode chegar à paz, defender o poder do Estado, ou ainda, somente em guerra constante se pode ter paz. Sobretudo, é a guerra que faz do poder absoluto do Estado a pressuposição da paz, de todo o militarismo a segurança requerida no cotidiano e do Leviatã, este monstro bÃblico, um ser pacificador representado pelo Estado a trazer a paz perpétua para todos, isto é, a morte.
Neste sentido, toda vez que o Estado busca pacificar, busca uma pacificação para todos, que se defende uma pacificação pelo Estado contra inimigos exteriores ou interiores a si, é a guerra e, principalmente, a morte, o que se pressupõe e o que se busca, a paz perpétua. O desejo polÃtico e do Estado é ter um poder absoluto sobre a vida das pessoas, no caso, um poder de morte delas, o poder de matar para demonstrar o poder absoluto do Estado como paz necessária. Um poder, ademais, que torna a morte menos importante, pois a declaração de guerra é já uma declaração de morte, de que serão mortos todos aqueles que se opuserem ao Estado, todos aqueles que forem seus inimigos, até mesmo seus amigos se forem considerados inimigos em algum momento, seus traidores. Toda defesa do Estado em seu poder absoluto, assim como todo nacionalismo fascista e militarismo pós-fascista que o pressupõe, é uma declaração de guerra a alguém que pode ser matado, para que o Estado possa demonstrar seu poder absoluto adormecido como o Leviatã há muito tempo para os senhores da guerra.
A defesa de uma paz perpétua que é a paz do Estado, ou entre Estados, em seu poder absoluto sobre a vida das pessoas e de matá-las quando as considera suas inimigas, externas ou internas a si, não pode ser contradita por Rousseau apesar de seu bom selvagem ser pensado como oposto ao homem bélico hobbesiano. O estado de natureza do ser humano em paz na natureza e com ela pensado por Rousseau, quiçá, pelo encontro dos indÃgenas americanos além-mar pelos europeus, também requer a guerra como seu fundamento. A natureza humana não deixa de ser má neste Estado de natureza, do contrário, jamais o ser humano sairia dele, em defesa de um Estado polÃtico, tão somente esta maldade originária do ser humano é contrastada por uma bondade imaginada por Rousseau neste Estado de natureza sem a necessidade do Estado polÃtico, isto é, anteriormente a ele, sem a pressuposição de um Estado com poder absoluto grande e forte. Neste sentido, o bom selvagem somente pode ser imaginado em contraposição do homem bélico e o estado de natureza de Rousseau é a antÃtese do estado de natureza de Hobbes, nunca a sua superação, mesmo que o estado de natureza daquele venha antes deste, pois o antes somente pode ser pensado a partir do depois sem o qual não existe. Um estado de natureza por sua vez, de Hobbes ou Rousseau, somente pode ser pensado antes depois do Estado polÃtico, como imagem contraposta a este de um momento anterior à vida humana que é, porém, posterior na medida em que é apenas lembrado ou imaginado como tal.
A democracia participativa pensada por Rousseau depois que o ser humano se torna socialmente egoÃsta a partir de um direito de propriedade é pensada antes do Estado polÃtico, mas somente a partir dele é que ela se fundamenta, e somente pensada antes do Estado e não como regime de poder dele. Como regime de poder no Estado não há propriamente democracia, ainda mais hoje em dia, pois o que há é uma participação representativa numa assembleia que não é a de todos, como seria num grupo de pessoas em sua tomada de decisão independente de quem está no poder ou do poder de um Estado. A rigor, nem mesmo na Grécia, existia democracia de fato, pois eram os homens os representantes da cidade-Estado, a pólis grega, representando toda a humanidade nela, no caso, mulheres, crianças, servos, escravos e estrangeiros, que não podiam se expressar nas decisões públicas. E tão pouco hoje em dia, mesmo com toda a alta tecnologia, a expressão dita democrática das pessoas em redes sociais não tem poder de decisão e são apenas o coro trágico ou cômico da democracia digital que não tem poder no governo de um paÃs, mesmo que elejam representantes para si, pois a polÃtica não é digital, isto é, não é decidida por voto nas redes sociais como se votasse num programa televisivo para ver quem é o vencedor, ainda que seja realizada por voto eletrônico em rede no Brasil. Ou seja, os bots não fazem parte da democracia, sejam eles máquinas ou humanos-máquinas em defesa de seus candidatos republicando freneticamente notÃcias em defesa deles e do que querem para o paÃs.
Neste Estado polÃtico democrático de direito ou de rede que temos hoje, o que há é um conflito de de interesses que se não é o da guerra de todos contra todos é porque, em geral, não vai à s vias de fato, isto é, à guerra, pois os interesses se equilibram numa corda bamba que depende de todos que estão nela, mesmo que seja apenas uma pessoa a passar por ela de cada vez. A corda bamba é o Estado democrático de direito e em rede que, para manter todos, requer o equilÃbrio de todos, uma harmonia de ações para que a queda não venha e, com ela, quiçá, a paz perpétua, dependendo da altura do tombo, no caso, de quão alta seja armada a corda a ser atravessada ou seja idealizada no Estado. Trata-se de um Estado que vive da esperança equilibrista como paz à quele que vive nele, na corda bamba, e como paz no horizonte, no final da corda a ser atravessada por todos, cujo fim não existe propriamente e o paz que se tem é apenas a de quando se atravessa a corda, é apenas um momento entre um passo e outro na democracia numa mesa de negociações em que o poder do mais forte prevalece. Ou seja, o poder de se equilibrar no Estado como corda que sustenta a todos, mas não pode proteger ninguém, pois é apenas uma corda de sustentação da vida de suas vidas e aqueles que forem mais fracos, isto é, menos saibam se equilibrar sozinho, vão sempre cair e ele não vai poder fazer nada, ou mesmo vai querer fazer algum coisa, apenas esperando o próximo a se equilibrar em si.
Na democracia, o Estado não tem poder absoluto algum neste caso sobre a vida das pessoas e não é ele nenhuma sustentação segura para elas e se o estado de natureza e a democracia participativa pensados por Rousseau representam uma paz não é no Estado polÃtico e, sim, antes dele e sem a necessidade dele, pelo menos na imaginação. No Estado polÃtico, dito democrático, é um conflito de interesses constante o que se tem e este conflito é motivado pelo egoÃsmo como fundamento moral de todo o capitalismo liberal pressuposto por Adam Smith, mas não pressuposto pelo capitalismo neoliberal, posto que o capitalismo neoliberal, por mais que advogue um Estado mÃnimo, somente se sustenta pelo Estado e é senão totalmente sustentado pelo Estado na defesa constante do capitalismo de modo polÃtico. Isto porque para que o capitalismo seja a paz na vida das pessoas a partir do consumo de produtos e de capital é necessário que o Estado intervenha constantemente em favor do capitalismo e, ao contrário do que pensava Smith, não é o egoÃsmo que move o capitalismo atualmente, é o Estado. A mão não é mais invisÃvel como ele pensava e, quiçá, nunca foi, pode-se dizer, mas nem sempre existiu o Estado e tão pouco em todos os lugares do mundo, muito menos seria ele o fim último de uma evolução da sociedade como se pensa costumeiramente como a paz perpétua dela.
O Estado neoliberal não requer o Estado mÃnimo na economia, requer o Estado máximo, cotidianamente regulando os mercados para que o capitalismo se mantenha, da cotação da moeda para não cair ao policial armado e paramentado para a guerra na periferia com o objetivo de conter a violência nas ruas e o indivÃduo neoliberal, que vive à margem totalmente do Estado, sem qualquer assistência dele, seja "protegido", vive em segurança seu consumo no capitalismo. No Estado neoliberal, o Estado mÃnimo é o Estado máximo para as empresas capitalistas que necessitam de uma paz para seus negócios e esta paz é assegurada pelo Estado que fazem de tudo para deixarem elas e os indivÃduos em paz para consumirem o que querem ou, ainda, promovem a paz, isto é, a pacificação das relações sociais conflituosas através do conflito armado para que o consumo no mercado não pare, controlando neste caso greve de trabalhadores, manifestações públicas ou a balbúrdia de pessoas no meio da rua ou nas Universidades. E com esta pacificação promovendo senão a morte de todos aqueles que não são propriamente inimigos públicos ou inimigos do Estado, mas que são inimigos da paz social, no caso, a paz do capitalismo, dos negócios capitalistas, do consumo capitalista que não podem parar, cujo constante fluxo de desejo de capital não pode ser reprimido pelo Estado como pai, em seu poder absoluto, tão pouco pela mãe em seu poder democrático, mas deve ser satisfeito constantemente em seu prazer infantil, oral ou anal, em sua produção de discursos ou de capitais, pelo Estado neoliberal.
Não vivemos em paz, como se pode perceber no Estado e na sociedade capitalista pós-fascista em que vivemos, e não por acaso, a esquizofrenia é atualmente o pressuposto do capitalismo seja como doença psicanalÃtica especÃfica produzida por pais e mães paranoicas ou como condição de vida no próprio capitalismo, buscando-se uma fuga do fluxo de desejo em relação ao capital. No perÃodo pós-fascista do capitalismo neoliberal em que vivemos, o Estado detém o poder absoluto e a democracia é uma corda bamba na qual ninguém mais se equilibra. Vivemos beirando o precipÃcio, olhando-o com temor com medo de cair e aqueles que menos temem a queda são os que mais caem com olhos abertos pensando que estão no céu, voando em sua imaginação.
A paz que temos hoje em dia é uma paz velada, uma paz que representa a morte em vida. Uma paz neural estimulada pelo prazer numa rede social em vÃdeos, imagens, memes, qualquer coisa que nos distraia de todos os conflitos da vida no capitalismo e Estado em que vivemos. A natureza tão pouco nos dá paz, pois praticamente inexiste entre os altos edifÃcios, e os parques e praias são cada vez menos lugares de contemplação, isto é de uma paz interior, ou mesmo de descanso, pois são lugares de passeio esquizo de todos, cada um ao seu modo tentando se manter equilibrado correndo, caminhando, em agitação como o homem da multidão de Poe.
A religião, por outro lado, na qual muitas pessoas buscam a paz é a que dá menos paz à vida delas atualmente com seus discursos inflamados de ódio, de temor, desespero, apreensão, medo, insegurança, que deus nenhum ou palavra de amor que saiam da boca dele, por meio delas, consegue conter, seja este deus cristão, muçulmano, judaico ou de religiões menores. Nem mesmo os deuses são de paz, mas da guerra, que os convida para a guerra e fazem deles guerreiros contra o mal seja qual for o mal definido pelos religiosos e são muitos os que eles veem em todos os lugares e pessoas, com seu Leviatã desperto, em vigÃlia, alerto a menor ação do mal radical que veem no interior de cada um como Hobbes, religioso fanático também via, e nenhuma outra esfera da vida social vive com mais temor do que os religiosos, com o mal à espreita constante em suas mentes de modo que precisam cantarolar a todo instante músicas religiosas e falar em deus para ficarem paz. E não por acaso requerem o poder absoluto do Estado para promoverem em nome de deus a paz na terra contra todo o mal que veem em qualquer lugar e qualquer pessoa e em qualquer ato contrário à sua religiosidade tamanho seu desespero observado pelo aumento da multidão de pessoas em cultos a toda hora e qualquer hora do dia, já que o mal não dorme em suas mentes, nem deus pode dormir também, em constante vigÃlia e ação em relação a elas.
Tornamo-nos nômades no capitalismo atual, num constante fluxo de desejo de capital que é senão o desejo de vida, de uma vida em paz, a qual não temos apesar de todo gozo, todo orgasmo e qualquer deus em nosso cotidiano e que foi transformada em produto e moeda pelo capitalismo e pelo Estado que o defende. Uma vida que é a paz propriamente dita independente de qualquer poder polÃtico do Estado ou produto e dinheiro do capitalismo. Uma vida em paz que somente é possÃvel quando não pensamos no Estado e no capitalismo e em paz perpétua somente quando eles acabarem, ou nós morrermos nele, se pagarmos o dÃzimo, pois assim seremos deixados em paz em relação à guerra que promovem constantemente entre nós fazendo-nos lutar pela sobrevivência e esquecer toda vivência cotidiana na qual, para além do Estado e do capitalismo, vivemos em paz sem perceber por alguns momentos.
Pois vivemos em paz passando por pessoas sem conflitar com elas, rindo ou sorrindo ao seu lado conversando coisas banais, que não rendem dinheiro ou poder algum, ou ainda, fazendo amor despreocupados com a hora, com o tempo, chuvoso ou quente, com as mensagens que chegam no telefone, ou ainda, rapidamente no furor do momento em algum lugar privado, mesmo que público, sem ninguém a olhar por alguns instantes, vivendo o momento da melhor forma possÃvel, isto é, com prazer, sempre prazer, muito prazer, quando vivemos em paz. Vivemos em paz com nossos filhos em casa ou em algum lugar comungando a vida consigo, com a sua simples presença e existência no mundo que nos dá paz apenas em olhar, ou ainda, com nossos pais numa conversa de almoço ou de fim de tarde nas calçadas onde isto ainda é possÃvel, ou em qualquer lugar que seja prazeroso. Vivemos em paz nas redes sociais quando compartilhamos com outros coisas que nos dão prazer e conversamos consigo coisas banais que veem à mente no menor relance de tempo e buscamos lembrar para continuar a conversar em paz e conservar a paz enquanto conversamos com quem amos e sentimos paz ao estarmos junto delas, mesmo distante.
Vivemos em paz, mas nossa vida em paz é constantemente alienada de nós pelo Estado e pelo capitalismo que requerem o conflito pessoal, de interesses, a guerra entre nações. Vivemos em paz em nosso cotidiano, mas somos tirados dela para lutar pela sobrevivência como gladiadores na Roma antiga para satisfazer o desejo do poder absoluto do Estado representado pelo imperador, ou ainda, para satisfazer o desejo capitalista de nos fazer escravos, dispostos a qualquer coisa para sobrevivermos, pelo pão de cada dia. Vivemos em paz, mas somos constantemente assediados pela morte nas redes sociais, na televisão, no meio da rua, pelos militares do Estado ou para-militares dele, milicianos em sua defesa e por facções que impõe o medo para venderem suas mortes em gramas e quilogramas, por quem, enfim, quer explorar a nossa vida pelo medo, retirando nossa paz para que a desejemos em algum produto ou no poder absoluto de alguém sobre nós que nos dê alguma segurança. Vivemos em paz, mas ela nos é retirada em nossa privacidade e intimidade para que dê lugar à raiva e à loucura em algum momento e o conflito e a guerra se mantenham e nunca tenhamos paz, de fato, em nossa vida.
Vivemos em paz, enfim, mas esquecemos a paz em nome da raiva, dos interesses, do conflito, da guerra que se torna cada vez mais a paz na vida das pessoas com o pós-fascismo no qual a presença da morte advém do militarismo do Estado que busca pacificar a vida das pessoas que não vivem em paz nele, pois, com ele e para além dele, e é a morte que buscam em conflito com os outros, de interesses e em vias de fato numa guerra, e, neste sentido, nenhuma morte é possÃvel ser em paz atualmente, pois nenhuma vida foi vivida realmente em paz.
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