A dor e glória do Salvador


O médico pergunta a Salvador sobre o que ele escreve e pretende senão filmar: É drama ou comédia? Só sabemos quando... Responde sem responder Salvador, pois, antes de concluir sua resposta, adormece sob o efeito da anestesia na mesa de cirurgia. Segue-se o fim do filme, que é o seu meio e fim ao mesmo tempo, e a sala aplaude mais um filme de Pedro Almodóvar, Dor e Glória (2019). Mas que filme? De drama ou comédia?

A pensar nos afetos presentes no filme, podemos dizer que é um drama, o drama propriamente de Salvador, personagem alterego de Almodóvar no filme, cineasta famoso que deixou de filmar por seu estado de saúde e está, desde então, em busca de salvação para suas dores, que não são apenas físicas, do corpo numa multiplicidade como ele apresenta no início do filme, mas também metafísicas, dores da alma. É um drama, ademais, pois num drama tem-se sempre o desejo de se salvar das dores e o desejo é senão esta busca de se libertar do sofrimento que a dor causa e está sempre em seu encalço e do qual o desejo busca deixar para trás através do prazer, ele mesmo, o desejo, enquanto meio entre o sofrimento e o prazer, um presente a separar o futuro do passado, deixando o passado de dores de lado tendo em vista um futuro de prazer, de alegria em vez de tristeza, no jogo de substituição de afetos. Pois esta é A Lei do desejo (1987) que Almodóvar conhece e filmou tão bem num filme e em diversos filmes e que transparecem em Dor e Glória como vestígios, vestes que o investem a cada momento, refletidos nos olhos melancólicos de Salvador em busca de evitar suas dores, o passado, que sempre retornam a si e o adormecem ou fazem com que queira adormecer, adormecendo-as adormecendo em sono, vigília e à cavalo entorpecido de heroína.

Em cada momento do filme, o que vemos são cenas dramáticas de Salvador em busca de salvação, de se libertar de afetos de sofrimento e de tristeza que se expressam em seus corpo e olhos como janelas de sua alma que vemos esfumaçar em lembranças. Tristezas, em particular, que vamos conhecendo pouco a pouco à medida em que nos permite conhecer sua história como diretor renomado, como filho, como estudante, como amante, como amigo, como alguém atormentado pelo passado de glória que também o adoece, que também é para si uma dor da qual ele quer se curar. Pois com a glória também advém tristezas pelas pessoas que teve que deixar para trás, sua mãe, seus amigos e seu amante. O prazer trazido pelo desejo não é eterno e o da glória, muito menos. A dor não deixa de se fazer presente com o prazer, é apenas recalcada por um momento, quando há uma breve inspiração de vida advinda de um herói ou heroína, que são tão destruidores da vida quanto criadores dela.

Difícil alguém imaginar diante de tantas cenas de sofrimento que algum espectador possa rir delas, mas os afetos são imprevisíveis e algumas pessoas são afetadas de modo estranho por eles, pois em vez de se compadecerem em empatia com o luto e luta contra a dor e tristeza expressos no filme, algumas na sala de cinema simplesmente riam de cenas com estes afetos, sem qualquer empatia por Salvador ou demais personagens, sem serem afetadas por ele mesmo, em seus gestos e ações, tão somente pelos afetos de alegria que elas sentiam com sua dor, sofrimento e tristeza. Ao contrário de um drama, era portanto uma comédia que viam ou queriam ver aos seus olhos, quiçá, afetados de tanta tristeza ou por outros filmes de Almodóvar, como se ele os quisesse fazer rir de modo irônico como na absurda cena de estupro em Kika (1993). Todavia, não se pode dizer que Almodóvar fizesse isso no filme com sua própria história e drama vivido na tela por meio de Salvador, num filme autobiográfico que encerra sua trilogia de filmes sobre o relacionamento com sua mãe, iniciado com Tudo sobre minha mãe (1999) e Fale com ela (2002), apesar de se vê traços marcantes também de Lei do desejo e Má educação (2004) ressaltados em Dor e glória entretecendo duas trilogias ao mesmo tempo numa cadeia assintomática de quebras e rupturas em diversos momentos do filme e que se encadeiam sem se encadear até o fim.

De onde vem então o riso com este filme de dor, apesar da glória, melancólico na medida certa para nos fazer lembrar, chorar, contudo, sem lamentar tudo que foi vivido por si, em seus filmes, e por nós e assistindo aos seus filmes? É o riso do absurdo de não se sentir empatia com a dor e sofrimento do outro mesmo quando ele está estampado em sua frente que Almodóvar nos fez tantas vezes sentir, mas de modo irônico querendo tirar o peso de algo absurdamente dramático como em Os amantes passageiros (2013). É, enquanto absurdo, também um riso estúpido e idiota de quem não percebe a ironia com que ele faz isto, a nos fazer pensar no desejo de ficar alegre que pode muitas vezes nos fazer esquecer do sofrimento e das dores dos outros e nos distancia deles, querendo ficar alegre a qualquer custo, nem que seja a custa dos outros, como os personagens que se distanciam e aparecem distanciados no início de Dor e Glória sem qualquer salvação, entregues cada um a seus dramas particulares e comédias de vida.

É um riso idiota, estúpido e absurdo, frenético de quem não percebe pouco a pouco como a alegria emerge pouco a pouco deste filme não de um escárnio da vida dos outros, mas de estar vivo, de viver, como diz Salvador quando responde a um atriz o que vai fazer se não escreva e filma mais. É a alegria de uma vida que se potencializa pouco a pouco à medida que retoma sua amizade com ao ator e amigo Crespo, quando lembra de momentos vividos na infância com sua mãe e com ela prestes a morrer, de quando é uma criança a ensinar o jovem Albañil, quando rever seu amante Federico, quando deixa sua amiga e assessora Zulema a retomar sua vida, quando busca ficar bem consigo mesmo em seu corpo e alma curando-se e, por fim, quando volta a fazer cinema e filma o Primeiro desejo, heterônimo de Dor e Glória, e que é a salvação de Salvador.

Diante da pergunta inicial, Drama ou comédia?, o que podemos dizer sobre o filme Dor e Glória de Almodóvar é que é uma tragédia, pois apenas na tragédia dor e glória são encenadas expressando a vida em toda sua plenitude como diz Sófocles em Édipo Rei: "nenhum mortal foi feliz de verdade/ antes dele cruzar as fronteiras da vida inconstante/ sem jamais ter provado o sabor de qualquer sofrimento!" É trágico ademais na medida em que esta é a lei do desejo a fazer da tristeza e da dor e um prazer e alegria, apondo assim a vida à morte quando esta mais se aproxima de nós e nos quer para si, quer a nossa vida e nos faz deprimidos, deprimentes, deprimindo-nos pouco a pouco em luto sem conseguir lutar, deitado na cama como aparece diversas vezes Salvador sem salvação. Tragédia que é a salvação, por fim, quando tudo no mundo é um completo absurdo e não há nenhuma empatia pelo outro, nem mesmo pelo personagem do outro quando este sofre e espectadores e não expectadores da vida riem de modo estúpido e idiota de todo o drama vivido pelos personagens que buscam alguma potência de vida, nas drogas ou, melhor ainda, no amor pela mãe, pelos amigos, por sua própria vida, pelo cinema, como nós, os que não riem das dores e tristezas dos outros.

Não por acaso é Sabor o filme de Salvador lembrado por todos e que serve de mote ao filme, pois é o sabor do desejo, do prazer, da vida, o que é expresso neste filme de Almodóvar e que nos salva de um cotidiano absurdo atualmente em que estúpidos e idiotas riem do drama dos outros na mais pura expressão do fascismo quando riem da morte da mãe de Salvador anunciada por ela e ensinando ao filho como deve cuidar de seu corpo depois de morto. Isto é, envolvendo a cabeça como uma viúva e desamarrando os pés no caixão para que caminhe livre no além, faça o seu luto como manda a tradição, e lute para continuar vivo, se salvar do que deprime sua alma, das doenças que fazem doer seu corpo e continue a viver fazendo o que deseja, cinema, seguindo a lei do desejo de vida no melhor estilo de Almodóvar e da sétima arte que nos faz descansar na plenitude do ser durante a existência de sua vida na terra.

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