O livro aberto
A ideia de que a vida é um livro aberto faz com que se pense que nossa vida é transparente, qualquer um pode lê-la e conhecê-la, mas quando abrimos o livro-vida de alguém o que se tem é apenas parte da vida dela e nunca sua vida totalmente. Fazer da vida um livro é apenas resumi-la em parte e fazer da vida um livro aberto é dizer que nunca vamos conhecê-la totalmente, por mais que se acredite que a conheceremos lendo-a como um livro aberto.
Na luminosidade com que olhamos as páginas de um livro há sempre algo que se esconde e a vida aberta como um livro é tudo menos transparente como as letras que se mostram aos nossos olhos e lemos, quando sabemos ler, e interpretamos corretamente, isto é, literalmente, quando interpretamos sem ir além do que está escrito, o que é muito difÃcil. Isto porque, assim como a vida, uma leitura nos faz pensar, este momento em que o livro se fecha aos nossos olhos e nos encerramos em imagens e pensamentos vãos, que vão onde nunca imaginamos e pensamos ir, para além daquele instante em nossa vida, do que é visÃvel à nossa frente. Quem começa a conhecer alguém como começa a ler um livro deve saber, em princÃpio, que a vida dele não está ali, visÃvel no texto naquelas páginas em branco, no rosto pálido de uma pessoa que é observada em sua tez seja qual for e que sua história não tem fim.
A vida como um livro aberto vai além das páginas e letras e imagens nelas, além das margens onde se rabiscam anotações e se acrescenta assim à vida do outro sua própria vida. Não se pode conhecer alguém sem acrescentar algo à sua vida e, deste modo, acrescentar algo que não é propriamente dela, mas passa a ser, alterando assim a vida daquele que se pretendia conhecer. E se fazemos isto com a vida de quem conhecemos, nas quais identificamos as alterações que fazemos nas suas vidas, como dar conta do que todos em sua volta acrescentam à sua vida? E como saber quem é alguém é em meio às alterações que tantos produzem em sua vida? E como conhecer quem é alguém com todas estas alterações e depois de tantas alterações que passou durante toda sua vida, ainda mais quando é mais muito mais velho?
Eis porque é tão difÃcil conhecermos a vida de alguém ou quem é alguém e uma vã ilusão acreditar em alguém que diga que sua vida é um livro aberto querendo dizer com isso que não tem nada a esconder. Pelo contrário, quem diz isso tem mais a esconder do que todos os outros, engana mais do que qualquer um que esconde propriamente sua vida como livro, que se entreabre apenas a alguns, e engana mais ainda do que aqueles que querem ser um livro totalmente fechado em si mesmos, sem deixar-se ler pelos outros, ter qualquer contato com outras pessoas, nenhuma conversa com elas e se mantém à distância, numa prateleira, sempre em volta de livros, os únicos com "quem" se sente bem.
Mesmo as pessoas que vivem em volta de livros fazendo de suas vidas um livro, isto é, um objeto inerte em algum canto, são ainda livros abertos, que podem ser lidos em sua capa e contracapa, em sua superfÃcie, mesmo que não se folheie suas páginas. São livros abertos menos conhecidos do que outros, mas ainda assim abertos, como todo livro ademais, o que não quer dizer conhecidos em si mesmos. Pois como diz Mia Couto, em seu livro Terra sonâmbula: O homem é como a casa: deve ser visto por dentro! Mas quando entramos na casa aberta como um livro que é o "homem", isto é, qualquer pessoa, temos o assombro diante do quanto esta casa-livro é abissal como o universo, como percebe Octávio Paz ao dizer, em A árvore da vida, que: O único ser que ouve (ou acredita ouvir) o poema do universo, não se ouve nesse poema - a não ser como silêncio. E se a vida é como uma árvore, lembra novamente Mia Couto, no mesmo livro: Eu sou como a árvore, morro só de mentira.
Somos vida-mandacaru que flora na seca no meio do sertão, ao menor pingo d'água mostrando como de nossos espinhos de morte e fingindo morte algo desconhecido, a vida, brota bela das profundezas da terra árida. Quem pensa nos conhecer não sabe onde a vida se esconde em nós, nos espinhos que temos e com os quais afastamos muitas vezes os outros como um livro velho, cheio de poeira, que ninguém quer abrir porque cheira a mofo, a algo putrefato, à morte, quando muitos querem muitas vezes o cheiro de livro novo a inspirar vida, regado a palavras doces fazendo da vida um córrego transparente em sua fonte. Mesmo que esta fonte brote das terras mais profundas, do terreno mais árido e escuro, onde ninguém sabe por onde as águas percorrem para se purificarem, fazerem-se doces ao amanhecer como um livro ao ser aberto e imaginando-se absorver dele tudo que precisa para viver e se manter vivo.
Quem começa a conhecer alguém como a ler um livro aberto sempre espera que ele lhe dê respostas para sua vida, que ele regue a si com palavras compreensÃveis, que lhe permitam conhecê-lo, falar dele para todos, fazer todos desejá-lo, emprestá-lo se o ciúme deixar, mas que seja sempre compreensÃvel para si, seu de algum modo. Acredita que pode abri-lo em qualquer página e recitar qualquer passagem sabendo exatamente quem ele é e o que esperar do momento seguinte em relação a ele e, mesmo fechado em si mesmo, conhece-se tudo que há nele, frase por frase, palavra por palavra, acentos e pontuações. Se a vida é um livro aberto, quem conhece alguém deste modo, pensa que sabe tudo de alguém e da vida, pensa que basta lê-lo, observar seu corpo transeunte, risonho ou carrancudo pelos cantos para poder saber quem ele é. Pensa que basta ler um livro para conhecê-lo, saber tudo sobre ele, que ao abrir um livro um livro se abre totalmente e não esconde mais nada em si mesmo.
Basta uma segunda leitura, porém, ou a leitura de outra pessoa para sabermos como nos enganos com os livros e com alguém e não o conhecemos totalmente. Não que a pessoa e livro nos engane não nos fazendo conhecê-los, mas porque nos enganos pensando que os conhecemos simplesmente olhando para si e que, ao olhá-los, conhecemo-los. Enganamo-nos porque pensamos que a vida de uma pessoa é o que vemos dela, sua parte visÃvel, como o texto num livro, como as luzes estrelares no universo, ou ainda, como a luz natural que é o pensamento em nós expresso nas palavras que, também pensamos, descortinam a vida para nós mesmos fazendo conhecê-la plenamente. Pensamos ao olhar e ouvir alguém em sua vida como ao ler um livro aberto que a vida se resume ao que é visÃvel e que nada é invisÃvel aos nossos olhos, nem ninguém em seu corpo e nenhum livro ao se abrir.
Mas não somos seres apenas visÃveis, ou ainda, não somos seres apenas sensÃveis, mas também insensÃveis, pois a vida como os livros são objetos transcendentes, ainda que possamos amá-los do amor táctil, como diz Caetano Veloso em sua música Livros. InsensÃveis não quer dizer que não somos sensÃveis, sem sentido, dotados de uma insensibilidade, apesar de insensibilidade querer dizer isto costumeiramente. Porém, nisto reside toda a questão da insensibilidade da vida e dos livros, de que há neles algo que é invisÃvel, isto é, que não pode ser percebido pelos sentidos ou sentido, a não ser de modo interior, numa interioridade abissal que não se deixa ver no corpo e nem nos olhos, lida apenas em silêncio, ainda que se diga que os olhos são janelas da alma. Pois nenhuma interioridade em sua plenitude pode ser vista de uma janela e nenhuma vida pode ser vista pelos olhos de alguém, brilhantes ou lacrimosos, a brotar a vida em alegria e tristeza de si, onde seus olhos não o alcançam.
Não adianta também querer desvirar pelo avesso o corpo de alguém, querer estripá-lo obsessivamente em seu corpo para ver o que há dentro de si, chegar no mais profundo do corpo, seu si, para prescrutar sua alma, espÃrito, espectro, mente tentando conhecê-lo. Tal obsessão ainda é um querer ver, querer conhecer com os olhos aquilo mesmo que não pode ser conhecido, a vida de alguém aberta como um livro e que é insensÃvel aos olhos. E querer se fazer ver também como livro aberto, transparente em si mesmo, também faz parte da mesma obsessão de que todos vejam a si quando o que é se esconde de si e de todos, mas não quer dizer que se esconde, não quer dizer que tem algo a esconder, que é insensÃvel aos olhos dos outros como os outros e, sim, sensÃvel como eles.
Somos seres insensÃveis, quer queiramos ou não, e mais das vezes não queremos ser, queremos ser realmente transparentes como um livro aberto, lidos pelos outros, em contato com os outros, sem esconder nada a eles, sensÃveis. Mas, se nos abrimos como um livro é aos poucos, página por página, com dificuldade, sem querer abrir, com o miolo a impedir que o livro se abra totalmente, somente abrindo-nos forçosamente, sem querermos ser lidos. Somos lidos mesmo a contragosto disto, e nossa vida é conhecida apesar disto, porque é impossÃvel viver sem ser conhecido por alguém de algum modo, sem ser visto, sermos folheados página por página, com assombro, risos e choros, sermos domados, cultivados, cultuados, sermos lançados para fora da janela como diz ainda Caetano, ou servirmos de escoro para os outros, algo que vem a calhar em algum momento de solidão. Mas no fim do livro há sempre uma folha em branco a qual ninguém lê, nem mesmo vê, se preocupa em ver, e é nela que nossa vida volta a se esconder mesmo que todos pensem que sabem tudo dela aos nos ler.
Se a vida é um livro aberto é um livro no qual há sempre folhas em branco no fim que não são preenchidas, podem ser preenchidas, a qual não se conhece mesmo que se coloque um ponto final no texto lido que possibilita conhecê-la e a faz conhecida de algum modo. Somente assim a vida é um livro aberto, quando não é conhecida mesmo lido em livros e mais livros, olhe-se para ela constantemente, e pense-se conhecê-la. Quando pensamos em conhecer alguém em sua vida como um livro aberto é quando ela deixa de ser conhecida e a descartamos pelos cantos sem querer mais lê-la, conhecê-la.
Que nossa vida seja sempre aberta como livro e que vejamos sempre a vida de alguém aberta como um livro, mas nunca conhecida em sua leitura, sem nos enganarmos que a conhecemos pelo que lemos dela, nela, que conhecemos sua história, pois ela não se resume a um livro, ao livro, na transparência de uma leitura breve ou demorada quando ele/ela se abre para nós.
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