O estranho olhar

maio 04, 2019

O olhar é sempre do outro, um olhar estranho sobre nós e de nós a nós mesmos. É sempre um olhar para fora, nunca para dentro. Por mais profundo que seja o olhar, estamos sempre tocando com nossos olhos a superfície e nunca a interioridade de algo. E se pensamos que alguém nos olha profundamente ou que olhamos profundamente algo, isto é apenas uma ilusão do olhar.

O olhar é algo estranho, pois, dentre todos os sentidos, é o que mais nos aproxima das coisas mesmo quando estamos muito distante delas e mesmo quando não estão mais presentes, pois quando nosso olhar toca a superfície das coisas nos apropriamos delas ao produzir-mo-las em imagens em nossa memória que não é um depósito de imagens como se pensa, mas aquilo pelo qual tudo em nossa volta se materializa em imagens a partir de uma imaginação, a qual, em contrapartida, não é um processo deletério de produção das coisas, mas da produção das coisas enquanto imagens. Não é possível pensar de nada como existente sem a imagem produzida em nossa memória pelo processo de imaginação que relança a todo instante as coisas à nossa frente em sua imagem, mesmo tendo sido vistas há muito tempo, vivenciadas em outros momentos. A primeira impressão é a que fica, como diz Hume, por sua intensidade, de certo modo, mas principalmente porque é este o objetivo primeiro da imaginação, fixar imediatamente qualquer coisa numa imagem em nossa memória para que a partir desta se produza a impressão, o mais rápido possível de algo.

Não por acaso, a memória é importante para a velocidade das máquinas computadorizadas hoje em dia e toda a Internet depende da memorização do que há na rede de modo fixo em data centers imensos cujo objetivo é dar maior celeridade ao processo e não simplesmente armazenar informações. A rigor, as informações armazenadas não tem nenhum valor em si mesmo somente adquirindo um valor quando são acessadas e, neste sentido, nenhum depósito de informação é necessário em si mesmo, apenas na medida em que faz a informação circular a partir de si e quanto mais rapidamente ela circule melhor, e o depósito é tão somente um ponto de paragem da informação que replica incessantemente de uma máquina a outra e, por extensão, em todos que a detém por algum momento logo passando adiante. Cada máquina em rede deste modo é apenas um depósito temporário da informação que não existe deste modo fixo em nenhuma máquina, mas no trânsito constante de uma a outra constantemente.

Quanto mais memória temos das coisas, maior rapidez as acessamos e toda desatenção que advém do esquecimento é sinal de um retardo neste acesso, de uma falha da memória que não nos permite lembrar das coisas como elas são. No caso, são em sua superfície tal como o olhar produz as coisas em sua imagem a partir da imaginação e que é sempre unidimensional neste caso, isto é, unindo numa superfície plana tudo que existe, pois toda superfície é plana em nosso olhar que planifica as coisas tornando-as superficiais a nós, sem qualquer profundidade, ou mesmo sem qualquer dimensionalidade, pois altura e largura neste caso dizem respeito a todo um processo de decomposição da imagem produzida pelo olhar de uma determinada forma. Ou seja, é um processo posterior na visualização das coisas pelo olhar que ao olhar para as coisas a difere em duas dimensões, ou em três, ou em quantas dimensões possíveis imagináveis. Todavia, esta unificação que o olhar produz em relação às coisas unindo-as é já uma dimensionalidade, portanto, não é um olhar homogêneo que se produz a partir deste ponto de vista unidimensional e tão pouco um olhar que identifica as coisas no que são a partir de uma única imagem, senão o contrário, é um olhar único que é constantemente dividido em dois, por isto unidimensional. Não é, outrossim, um olhar que olha para o passado, buscando neste passado uma origem para o olhar mesmo, fazendo toda diferença das coisas e entre as coisas recuarem no tempo até a identidade de uma origem, mas o partir desta origem em duas, no mínimo, dimensões. É um a-partamento da origem a partir de uma separação e ligação com ela mesma no olhar.

O que olhamos a partir deste olhar diferido e diferindo-se constantemente numa unidimensionalidade é sempre segundo, porque dividido em dois, e nunca algo à primeira vista e a primeira impressão que fica é já segunda, a que se fixa às coisas. É um olhar retroagindo sobre ele mesmo num vai e vem das coisas à memória pela imaginação que materializa tudo em nossa frente como imagem. Materializa no sentido de que torna aquilo que vemos uma matéria imagética para nós, algo que podemos manipular com os olhos e a partir do nosso olhar. Olhar algo, por sua vez, não é olhar algo no sentido de que algo aparece para nós, é fazer com que algo apareça em nosso olhar, é olhar algo que está ali, mas não tinha sido olhado até olharmos para ele. Deste ponto de vista, são sempre fantasmas o que olhamos a todo instante quando olhamos algo, isto é, quando realizamos o processo do olhar, simplesmente olhando algo.

Quando olhamos para algo o que vemos é o passado no presente, é uma ação de identificação e de reconhecimento do que vimos antes, num passado que se torna presente imediatamente naquele instante, o que, este instante Ã© o exato momento da percepção de algo determinado no espaço e tempo ao mesmo tempo, na dimensionalidade de toda imagem produzida pela imaginação que é senão a imagem de algo na realidade, em outras palavras, produzindo a dimensionalidade de tudo que existe no espaço e tempo de modo instantâneo. O imediato, deste modo, nunca é imediato, é sempre mediado pelo olhar que imagina algo e que se é o principal órgão sensorial que temos é porque nele tudo se torna imediato, instantâneo, no olhar mesmo que se apaga no próprio processo tornando tudo instantâneo, isto é, tudo imediato aos olhos. Olhar é tornar tudo imediato a partir de um meio que é o próprio olhar que produz a imediaticidade de tudo que existe no espaço e tempo, o que por imediaticidade se entende aqui senão a existência de algo a partir de um meio, dividido por um meio ou ao meio, no caso, o olhar.

É por isso que todo olhar é estranho. Quando olhamos ou somos olhados é com toda a estranheza do olhar com a qual nos deparamos, sendo tocados em nossa superfície, mas cientes de que há algo mais, além do olhos que nos olham que é o próprio olhar e imediatamente exposto em sua superficialidade. Um olhar que não vemos nos olhos, que está para além dos olhos mesmos, o olhar do outro sobre nós que é nosso sobre o outro e sobre nós mesmos. É assim que num processo de instantes quando alguém nos olha e olhamos para ele e olhamos para nós mesmos que o olhar se produz de modo undimensional dividindo-se e dividindo tudo em duas dimensões, a nossa e a do outro, em dois olhares que formam um terceiro. Três olhares num só se interpenetrando ao mesmo tempo e descobrindo-se em si mesmo num único olhar dividido entre si: o olhar do outro, o nosso olhar e o olhar sobre nós mesmos. É neste sentido que o olhar é sempre primeiro, mas numa segunda vez, a partir do olhar o outro e dele a nós, do nosso olhar sobre nós a partir do outro que nos olha e nos faz olhar para nós mesmos.

Esta estranheza se coloca, ademais, na medida em que não podemos evitar o olhar, nem mesmo fechando os olhos, pois, na penumbra, o olhar se revela como é ainda mais com suas imagens em nossa imaginação a partir da memória, produzidas para olharmos as coisas que estão fora de nós. Há, deste modo, no fechar os olhos um a-partamento do nosso olhar com nossos olhos que não veem mais as coisas, mas nos fazem vê-las ao mesmo tempo em nossa  imaginação, e tudo que está separado de nós pelos olhos fechados está ao mesmo tempo ligado a nós num fechar de olhos e abrir das coisas à imaginação. Pois o olhar não precisa de olhos a não ser para constituir as imagens que necessita para existir e quer dizer tão somente sentir as coisas mais distantes absolutamente perto.

O olhar, enquanto sentir propriamente, é este toque na superfície das coisas sem as mãos, este ouvir sem que os sons cheguem aos ouvidos, é o saborear sem levar nada à boca, é o inspirar sem nada absorver em si. Os olhos como instrumentos e a visão como capacidade de produzir o olhar, mas também os outros instrumentos (boca, nariz, mãos, ouvidos) e capacidades (paladar, olfato, tato e audição) produzem o olhar. O que se denomina olhar, por sua vez, é este sentir de modo imediato tudo que existe em si e fora de si, que imediatamente se faz em si e fora de si quando o olhamos e que é imediato porque superficial, sempre superficial, mesmo que seja um olhar profundo, pois, a rigor, não existe profundidade no olhar. Toda olhar é superficial, produz algo numa superfície. O que existe, em contrapartida a isto é um olhar que se aprofunda diante dos olhos, um olhar que não se reconhece a partir dos olhos, que recua para dentro de si mesmo no mais recôndito labirinto do ser, a linha reta, que se olha, se vê, se visualiza e se identifica com o que olha, vê, visualiza, identifica e, deste modo, olha, vê, visualiza, identifica algo a partir de si mesmo, ou ainda, com um mesmo olhar.

Toda a superficialidade do olhar pode ser medida ao nos olharmos no espelho, pois, neste momento, estamos nos olhando dentro e fora ao mesmo tempo tal como olhamos todas as coisas dentro e fora ao mesmo tempo de nós neste paradoxo da superficialidade que divide tudo em dois, dentro e fora, mas ao mesmo tempo no que o olhar revela. Ao olharmo-nos no espelho, vemo-nos, visualizamo-nos e nos identificamos tal como olhamos, vemos, visualizamos e identificamos todas as coisas como algo já olhado antes, mas em nosso olhar a nós mesmos no espelho, o que vemos é a imaginação de uma memória consciente a partir do olhar algo que somos nós em nossa superficialidade. Todavia, independente de olharmos para nós através de um espelho, olhamos e este olhar nos revela a partir de uma memória inconsciente da qual emana nós mesmos e todas as coisas de uma profundidade sem fim para uma superfície além de nós, e, deste modo, é a nós que nos pomos para fora, no espelho, aos nos olharmos e não o espelho que nos faz olhar para nós mesmos, pois todo olhar para nós é anterior e independente do olhar para nós mesmos a partir de uma imagem produzida deste modo pela imaginação. Olharmo-nos no espelho é, assim, transcender nossa imanência a nós mesmos e, nesta transcendência nos olharmos, vermos, visualizarmos e nos identificarmos com o que somos, mas que não olhamos, vemos, visualizamos e identificamos em nosso cotidiano, apenas os outros com seus olhares, donde se revela a maior estranheza do olhar é que não nos olhamos a partir do nosso olhar e, sim, do olhar do outro e de nós a nós mesmos como outro.

A maior estranheza do olhar é que estamos a olhar tudo em nossa volta, mas não a nós e que, em contrapartida, são os outros que nos veem melhor do que nós, apesar de crermos e fazermos crê a eles e a nós que somos nós que conseguimos olhar melhor quem somos. Todavia, o olhar que temos de nós é sempre parcial, assim como o dos outros sobre nós, e o que há é uma miríade de pedaços que somos nós e nunca conseguem se encaixar completamente a partir do nosso olhar, um quebra-cabeça infinito que nenhum olhar consegue saber o modo como cada peça se encaixa, como cada olhar nosso e do outro produz nós mesmos e com o encaixe de todas as peças em suas formas produzidas pela imaginação na memória. O que somos, neste caso, esta identidade que dizemos ser nós mesmos é uma identidade fortuita que escolhemos a cada momento a partir do olhar que temos a partir do nosso olhar, do olhar dos outros e nosso a nós mesmos, como o mesmo, a cada instante e que se se perpetua no tempo é porque algumas imagens produzidas pelo olhar se sobrepõem a outras dando mais prazer ao nosso olhar e dos outro produzindo este nós mesmos que dizemos ser.

Estranho prazer o do olhar, por sua vez, que é o de tocar o outro à distância e a partir deste toque fazer com que o outro se toque e, tocando-se, olhe para si, dentro de si, profundamente, em busca de si mesmo estranhamente e estranhando-se. Este estranhamento do olhar o outro, do outro olhar, e do outro fazer nos olharmos e olharmos para nós como mesmos é um a-partamento do ser em relação a si, um não se olhar e não se identificar a partir do olhar, é um diferir dele em relação a si na medida em que olha e é olhado por outro, para dentro de si e para fora de si, numa imagem cômica muitas vezes para saber se tem algo errado consigo. Mas não há nada errado, a não ser o erro do olhar que erra fazendo a pessoa que olha não se vê como é, estranhando-se ao olhar o outro, com o olhar do outro, com seu olhar a si sem ser ela mesma.

Eis a total estranheza do olhar: olhar a si sem ser si mesmo, sem ver a si mesmo, a cada instante vendo-se como outro, fora de si e que é si num a-partamento consigo, separando-se e ligando-se ao mesmo tempo a si a partir do olhar, vendo-se imediatamente e mediatamente a partir do olhar em todo sentir. Sentir que é sempre imediato e mediado pela razão que verbaliza toda e qualquer sensação que se inscreve no corpo silenciosamente como aos olhos em uma língua-gem e que, deste modo, silenciosamente falam ao outro que o olha, que o outro está olhando, que há um olhar sobre eles, que é também deles ao outro e a si. Um olhar que pode ser panóptico na medida em que o olhar passa a ser não um olhar o outro em sua superfície, mas um formalizar da superfície do outro, limitando o que ele é em uma imagem num determinado espaço, corpo e, por extensão, do seu corpo no espaço, com um olhar limitante, por mais abrangente que seja.

Neste sentido, um olhar não infinito, pois não existe um olhar infinito todas as coisas, a não ser quando se transforma este olhar num olhar divino, o olhar de um deus, num panóptico divino que tudo olha e, olhando, limita todos ao seu olhar como nós limitamos ao nosso. O limite do olhar é o limite da superficialidade mesmo que produz e reproduz numa forma limitada a partir da imaginação da memória, formalizando cada parte daquilo que produz em sua superfície, limitando a superfície a si. Todo aprisionamento é, deste modo, um panoptismo, isto é, uma submissão do outro ao olhar e quando se coloca alguém numa prisão é para que outros a olhem presa e para que a pessoa olhe para si presa pelo olhar dos outros.

O olhar é uma prisão, em princípio, de tudo que existe, pois ele capta como nenhum outro sentido aquilo que está fora de si, é um aparelho de captura por excelência que o Estado utiliza para prender todos que pretendam fugir ao seu olhar. Estado que é e, sempre será, uma representação do olhar divino na terra, um olhar duplo que prende todos que pretendem fugir aos olhos da lei e aos olhos dos deuses. E se a justiça venda os olhos é senão porque ela não precisa deles, pois seu olhar se revela justamente na ocultação dos olhos, quando o olhar prende todos aqueles que não querem ser olhados por si, que não querem se ver, no caso, se identificar, serem identificados pelo olhar, no olhar.

Todos aqueles que não podem ser identificados pelo olhar são foras da lei e, deste modo, o olhar produz os marginais ou foras da lei e ninguém é inocente à primeira vista aos olhos da lei, mesmo que a lei diga isto, pois a inocência pressupõe que se saiba de antemão quem é quem aos olhos de um e de outro, sem qualquer desconfiança, estranheza no olhar, o que é simplesmente impossível de acontecer, pois todos, em princípio, são estranhos até mesmo quando se identificam perante o olhar de quem representa a lei, o policial, que produz e reproduz o olhar judicial do Estado produzindo de antemão quem é quem para si, em princípio, estranho, portanto, marginal, bandido, até que o olhar do Estado sobre si prove o contrário, isto é, que é um cidadão, alguém conhecido e reconhecido pelo Estado. É o olhar do Estado sobre todos que diz quem é e quem não é cidadão a todo instante e a todo momento, assim como é o nosso olhar no cotidiano que diz quem é e quem não é cidadão para nós e, sim, marginal quando olhamos alguém e nos olhamos a partir dele, presos pelo olhar em todo seu panoptismo presidiário. No caso, um panoptismo presidiário que é o olhar constantemente para si como preso, limitado a olhar quem é, identificando-se constantemente e sendo identificado constantemente por onde passa e sorrindo porque tem alguém olhando.

O olhar panóptico presidiário, no qual nos aprisionamos constantemente, é o olhar constante para nós mesmos, é o identificar-se constantemente com o que somos, prendendo-nos a nós mesmos, sem nunca virmos a ser diferente. É um olhar que produz uma profundidade sem fim de quem olha sobre si mesmo. A maior prisão que existe é olhar para si mesmo e, deste modo, dentre todas as possibilidades de olhar para si ver um olhar se sobrepor a todos os outros definindo-o no que é ao olhar de todos e sempre como o mesmo. É o expor-se completamente numa superficialidade sem nada ocultar ao olhar que prende aquele que olha no olhar do outro sobre si e no seu olhar para si como olhar para si mesmo.

Dizer a alguém se olhe ou se enxergue Ã© o sentenciamento de uma prisão perpétua, seja porque ao olhar para si mesmo há uma prisão do olhar no que é e deve ser sempre, seja porque aquele que olha pode nunca encontrar a si mesmo em seu olhar e, deste modo, prender-se no olhar para si profundamente em busca de si mesmo. Não devemos olhar para nós mesmos, para nós como mesmos, esta é a lei do olhar, o olhar fugitivo de nós a nós mesmos, diferindo a cada momento quem nós somos, tornando-nos estranhos a nós mesmos a cada momento, um olhar que foge a toda lei que visa pelo olhar identificar quem somos e, deste modo, prender-nos numa identidade que é visual antes de qualquer outro sentido verbalizado na língua-gem. Em contrapartida, a lei que rege o olhar do Estado e dos deuses sobre nós é que não podemos diferir aos olhos deles, devemos ser constantemente identificados pelo olhar, devemos nos identificar pelo olhar como nós mesmos a partir dos outros num estranho olhar deles a nós e a nós como os mesmos. A lei, neste caso, do olhar para si enquanto mesmo em identidade é então, a de que não devemos olhar senão para nós mesmos, para nós como mesmos.

É ao olhar da lei divina do Estado que dizemos, por fim, eu como este mesmo, que nos identificamos com quem nós somos enquanto o mesmo, que dizemos que nós somos o mesmo diante do olhar dos deuses e do Estado e que, deste modo, nos estadificamos, isto é, permanecemos num estado que é o mesmo e que podemos permanecer no Estado na medida em que somos o mesmo. Em contrapartida, é quando fugimos deste olhar divino do Estado que nos tornamos outro, diferente, alguém que olha e que também é olhado por outro em sua superfície sem se identificar, outro que passa por nós cotidianamente sem dizer o nome, nem comum, nem próprio, outro que não se prende ao nosso olhar nem nosso olhar o prende ou se prende a ele, ou se prende por causa dele. Outro que é um estranho ao olhar, que aparece como estranho ao olhar, mas de uma estranheza que não amedronta porque não é o panoptismo divino do Estado que rege nosso olhar neste momento, é simplesmente o olhar em sua lei de tudo tocar em sua superfície e identificar brevemente, sem que o captar seja uma prisão, somente uma percepção, uma imagem produzida pela lembrança a qual dispor naquele instante, colocando-se em retirada do mais profundo inconsciente de nossa imaginação na memória.

Toda a filosofia da identidade que se produz a partir do olhar panóptico, isto é, o olhar que aprisiona quem somos no mesmo para todo o sempre, é uma filosofia do olhar divino e do Estado, uma filosofia da estadificação, uma filosofia que aprisiona o olhar no ser, no que é, numa questão cuja resposta é si mesma, a questão, o que é, o ser, o eu e nada mais além dele. É o aprisionamento do olhar no olhar para si mesmo e para o outro como para si mesmo. É uma filosofia do olhar profundo que aprisiona quem olha na profundidade do ser quem é, o que é, identificando-se a todo momento, que nunca toca a superfície do outro, pois seu olhar não é para ele e, sim, para si mesmo, e que se toca o outro não é em sua superficialidade, mas profundamente, o que quer dizer, de modo aprisionante, que pretende aprisionar o outro numa identidade como o seu olhar se aprisiona nela, fazer com que o outro seja quem é, aprisione seu olhar em si mesmo, no que é, limitando-se ao que é ao olhar do outro sobre si e ao olhar do que é para si mesmo.

Uma filosofia da diferença é, em contrapartida, uma filosofia na qual o olhar não aprisiona, nem a si, nem ao outro, nem se aprisiona. É a filosofia de um olhar no qual as coisas diferem a cada momento em que são olhadas, posto que produzidas por um olhar diferente a cada instante. Se há uma identificação, e sempre há devido o processo de imaginação das coisas na memória como uma produção das coisas como imagens dentro e fora ao mesmo tempo ao olharmos para elas, a filosofia da diferença é já o diferir que acontece a partir desta imaginação de todas as coisas na memória, que torna as coisas dentro e fora ao mesmo tempo, lembradas e esquecidas ao mesmo tempo no olhar de modo inconsciente e conscientemente instantaneamente. É a filosofia de que as coisas estão diferindo constantemente em nosso olhar para elas a cada instante, o que o instante marca toda a divisão delas no espaço e tempo. É a filosofia, por conseguinte, na qual o olhar, diferindo a cada instante as coisas dentro e fora, lembrando e esquecendo-as de modo inconsciente e consciente, não as produz numa imagem única, uma forma geométrica identificável como a pedra de um quebra-cabeça que se conecta a outra e assim por diante criando uma forma universal que é a coisa em seu ser em si mesma. Não existe tal imagem única do ser em si mesma, posto que a imagem é parcial como uma pedra de um quebra-cabeça que não se encaixa em nenhuma outra, não pode ser comparada com nenhuma outra para produzir um encaixe e na qual toda conexão de uma peça com a outra é fortuita, momentânea e compõe com outra um momento infinito de peças conectadas entre si, sem qualquer ordem possível, porque não identificável de modo estático e, sim, dinâmico. No caso, o dinamismo do olhar pelo olhar, de tão somente olhar para o outro como um estranho a cada olhar e que torna todo olhar estranho a si mesmo na medida em que o estranho olhar do outro nos olha e nos olhamos a partir dele e não nos vemos, não conseguimos olhar para nós enquanto mesmos a partir dele e, deste modo, toda estranheza do olhar se produz no diferir do olhar para si não mais como o mesmo e, sim, como outro, como o outro que nos olha e nos faz olhar diferido do que éramos para nós. É uma filosofia do olhar diferente a cada momento para o outro e para si sem se ver de um único modo, como uma única pessoa, como a mesma pessoa, um eu que se manifesta ao olhar de modo permanente, num aprisionado em si mesmo, incapaz de ver o outro e incapaz de se ver pelo outro, de modo diferente, sem diferir o seu ser em seu olhar. A filosofia da diferença é a filosofia de um olhar diferente na qual nenhum olhar busca captar e capturar as coisas a partir de si mesmo e em si mesma, porque seu olhar nunca é a partir de si mesmo, obrigando o outro a olhar como si, pelos seus próprios olhos, deste modo absurdo, mas o único que é real para que olha para si mesmo na realidade num olhar para si até o mais profundo absurdo que é olhar para si como o mesmo, e que é impossível segundo uma filosofia da diferença a partir da lei que é do olhar simplesmente para o outro e não para si enquanto mesmo e para outro a partir de si mesmo, pois não podemos simplesmente olhar para nós mesmos, somente para o outro, e todo olhar para nós mesmos é, portanto, uma ilusão do olhar, algo absurdo, basta olhar.

O estranho olhar, neste caso, é simplesmente o olhar que estranhamos quando estamos simplesmente olhando e estranha a todos que nos olham e perguntam: Está olhando o quê? E cuja paradoxal resposta é o olhar Ã  pessoa que nos olha assim verbalizado na língua-gem: Estou apenas olhando...

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