A terrível verdade
Somos falhos, mas não podemos ser. A modernidade nos fez negar as falhas com todo seu maquinismo. A sentença de Descartes de que o corpo funciona como uma máquina, mais precisamente como um relógio, é o agouro dos tempos modernos a todos nós, a previsão do Oráculo a Édipo, aquele que somos todos nós em nosso mal-estar na civilização que é senão o de não condizermos a ela em toda sua infinitude e perfeição. A prova ontológica de Descartes da existência de um deus é a nossa provação, pois o que se pressupõe a partir dela é que nossas ideias devem ser perfeitas e, como tais, infinitas, em suma, divinas.
Ninguém nasce perfeito e tão pouco é infinito. Sabe-se disso há muito tempo. E há muito tempo os gregos sabem disso e expuseram isto em diversas tragédias que se tornaram mitos, narrativas sobre deuses que erram como humanos e humanos que erram pensando serem deuses. Édipo é apenas uma das tragédias gregas que são inúmeras ao longo dos tempos e em todos os lugares. Tragédias que perpassam de pais para filhos e filhos para netos seguindo uma tradição mortal da qual Édipo é apenas mais um, como pai e como filho, assim como Laio, seu pai, foi, e Antígona, filha de Édipo, e seus dois irmãos, Etéocles e Polinices.
Faz parte do princípio trágico que ele nunca aconteça uma só vez, mas se repita naqueles que estão próximos do que sofrem a tragédia. É a lei do trauma, esta fratura na alma ou psiquê humana, que eleva a tragédia a n vezes, isto é, a incontável vezes, a ser infinita porque contável novamente. É a lei também do mito que narrando as tragédias a recontam novamente e a elevam ao infinito a cada vez que são narradas fazendo com que outros vivenciem o trágico em suas vidas.
As tragédias nunca têm fim. São familiares mais por princípio do que por acontecerem em família. A família é o que faz, ademais, com que toda tragédia se repita, pois há sempre alguém na família que já passou por algo parecido. Se as tragédias causavam um efeito tão particular nos gregos e ainda hoje em nós é porque são familiares, isto é, acontecem neste universo particular que é a família da qual todos descendem de um modo ou de outro, não importa a estrutura que ela tenha, ou mesmo não tenha. A família é o princípio do fim, o princípio da tragédia. É a partir dela que tudo se acaba, se destrói, mesmo que não seja este fim a morte.
A tragédia nunca representa a morte, mas a vida. Uma vida que morre por algum motivo que é o seu destino, que acontece quando menos se espera, mesmo que seja avisada desde muito tempo, prevista por oráculos misteriosos que não se quer ouvir por ser uma terrível verdade. No caso, a verdade da terra, a de que todos vão morrer, que ninguém escapa deste destino inelutável, nem mesmo grandes reis como Laio, Édipo, Etéocles...
Os gregos nunca lutaram contra esta terrível verdade. Eles a viveram plenamente em batalhas constantes, seja de armas em punhos, seja com palavras empunhadas na ágora, ou ainda, em seus pensamentos. Os gregos estavam em luta constante com a morte porque a viam de perto em suas tragédias. Eles contemplavam a morte para não a temer e não a temiam tanto quanto temiam não serem gregos, algo insuportável para eles como Platão, o mais aristocrata dos filósofos, demonstrou a partir de Sócrates e todo seu tormento em deixar Atenas. Não era a morte que Sócrates temia, mas que não fosse grego, não estivesse entre os seus, mesmo na morte, mesmo que fosse morto pelos seus, gregos como ele, o que era melhor do que morrer no estrangeiro como Édipo, o mito a assombrar todos os gregos dia e noite como o mito daqueles que são obrigados a abandonarem sua terra, seu lar, sua pátria, sua cidade, seu Estado, mas, principalmente, seus amigos. Estes que Sócrates tanto prezava em suas conversas, mesmo aqueles dos quais discordava e tratava mal, os sofistas, mas nunca tratado como estranhos, postos que eram gregos como ele.
É algo totalmente diferente o que acontece na modernidade com o Édipo, onde ser estrangeiro deixa de ser algo ruim para ser muitas vezes o beneplácito de uma vida, a possibilidade de uma vida em outro lugar que não o seu lugar. Se Édipo é a égide da modernidade não é do mesmo modo que foi para os gregos, pois tudo se modificou em sua volta. Os Édipos modernos que somos todos nós não se preocupam em morrer no estrangeiro, mesmo que isso ainda seja uma preocupação, pois são obrigados muitas vezes a saírem de sua terra, abandonarem seus lares, sua pátria, cidade, Estado, país, nação e até mesmo sua língua, mesmo que esta ainda permaneça neles em silêncio, sepultada sob a língua de outros, outros povos, outros lugares.
Se Édipo era tudo que um grego não queria ser, não se pode mais evitar sê-lo na modernidade e é preciso se acostumar com isto. Não se trata de uma maldição oracular, mas o profundo mal-estar que a civilização produz em todos aqueles que vivem a modernidade sob a pena de viverem fora de casa, do lar, daqueles que amam. E não tanto porque a modernidade tardia produziu um desterro em massa após duas guerras na Europa e outras tantas em diversas partes do mundo, e mais ainda nas Américas colonizadas pelos europeus, mas porque viver fora de casa é a condição por excelência da modernidade a partir do trabalho.
Vive-se mais para o trabalho do que para a família, eis a tragédia de Édipo. A diferença é que Édipo não queria isto e, na modernidade, almejamos por isto constantemente. É o nosso desejo, o nosso inconsciente traumático e maquínico. Traumático porque desde o princípio há esta fratura em nosso ser infantil que é obrigado muito cedo a abandonar a casa em creches, escolas, para que pais possam trabalhar. Maquínico porque isto se torna uma busca por perfeição e infinitude como são aquilo que as máquinas produzem a partir de toda a cientificidade e tecnologia moderna e na qual os nossos corpos e mentes buscam ser como compensação àquilo que falta, o seio familiar. O da mãe, do casa, do lar, de uma terra, algum lugar para estar com os seus em sua volta conversando.
A inteligência artificial que o ser humano busca nas máquinas é a sua própria inteligência artificializada para ser perfeita e infinita semelhante à ideia de deus cartesiana. A máquina, que era deus no teatro antigo, é agora o ser humano em toda sua artificialidade, ou pelo menos o que ele tenta ser. Não é mais deus a inspiração humana segundo os mitos antigos, são as máquinas. São elas os símbolos de perfeição e infinitude modernas e, não por menos, aquilo que eles mais temem, justamente por isto, como temiam a deus e queriam se livrar dele para pensarem livremente.
Se os seres humanos modernos deixam deus de lado não é porque ele seja mal, mas porque ele é o bem, a perfeição, o infinito, tudo aquilo que os seres humanos almejam ser e não são, não serão, estão destinados a não ser. A prova ontológica de Descartes da existência de deus é a maldição do ser humano moderno, pois, falho em princípio, segundo uma tradição mítica grega e também judaico-cristã diante deste modelo divino, é um profundo mal-estar que invade sua alma, o tormento da imperfeição e infinitude que não tem. A imperfeição e finitude divina dos deuses gregos, mesmo perfeitos e infinitos por outro lado, aproxima-os dos seres humanos que os veneravam até a tragédia, mas a perfeição e infinitude do deus moderno cartesiano afasta os seres humanos dele, pois ninguém quer se ver imperfeito e finito diante de deus, como um filho diante do pai como seu modelo de vida.
A prova da existência de deus por Descartes é o corpo humano enquanto máquina, isto é, elevado além dos seus sentidos que enganam segundo ele. O corpo enquanto máquina, porém, não engana já que as máquinas funcionam exatamente como devem funcionar. A meticulosidade de Descartes em demonstrar o maquinismo do corpo do ser humano, assim como o fez Leonardo da Vinci em seus desenhos, é a demonstração clara e distinta de que deus existe em sua perfeição e infinitude, geometricamente. O corpo-máquina é perfeito, de uma perfeição infinita, comprova-se hoje a cada avanço da ciência e da tecnologia ao estudar o corpo humano e tendo-o como máquina-modelo até em seu inconsciente como o demonstram Deleuze e Guattari, para os quais se as máquinas quebram ou falham é porque elas só funcionam assim. Ou seja, até mesmo o erro é projetado inconscientemente pelo ser humano nas máquinas que se são falhas não é por algum acaso, ou por um destino, deus ex machina, mas porque foram criadas pelos seres humanos para falharem. É a lei da obsolescência, a lei que faz das falhas algo necessário, o que deve ser feito, e que não pode ser diferente, como o ser humano falho criado por deus segundo toda uma tradição mítica grega na criação do ser humano por Epimeteu, que esqueceu de dar ao ser humano alguma capacidade. E é segundo a tradição cristã na qual deus fez o ser humano falho, porque lhe falta uma costela, algo ínfimo, mas muito importante, e que é a mulher, Eva criada da costela de Adão, que o torna falho, falível, decaído antes mesmo do pecado original que é a criação de Eva desde o princípio, a criação daquilo que faltava ao homem perfeito criado por deus, mas cuja perfeição e infinitude desde o princípio foram negadas pelo homem e ao homem, e cujo pecado original atribuído a Eva é apenas a insígnia da criação do homem, perfeito por ser de deus, mas falha por ser ele mesmo, humano.
As máquinas falham porque são criadas à semelhança do ser humano, mas não porque os seres humanos são falhos, pois são perfeitos em seu corpo-máquina e suas ideias infinitas. Assim como, se o ser humano é falho, não é porque deus é falho, mas porque deus é perfeito em sua criação infinita até mesmo das falhas que não são falhas propriamente, mas fazem parte de um plano divino, algo providencial, que tinha de acontecer, ainda que de modo trágico. É preciso salvar os fenômenos, isto quer dizer que é preciso sempre erigir um modelo de perfeição e infinitude para tudo que aparece, de modo que tudo que é aparência deve ter uma essência. A finitude deve ter uma infinitude como causa de si, mesmo que seja de sua imperfeição, aquilo que lhe serve de medida, de método ou de meio para avaliar se é perfeito ou não, e que é perfeito a priori em sua infinitude.
Aquilo que avalia se algo é perfeito ou não, durável ou não até o infinito na modernidade não é deus, mas o corpo-máquina, a expressão de deus na natureza não apenas terrena. Se a terra deixa de ser o centro do universo na modernidade não é porque ela gira em torno do sol como Copérnico e Galileu demonstraram segundo uma ideia grega antiga. A terra deixa de ser o centro do universo porque ela volta a ser o símbolo da imperfeição diante do universo que se expande para além do sol como seu centro. Não é o centro que importa, é a expansão do universo ao infinito, para além da terra, da vida humana, toda uma constelação de planetas que assombra a mente antiga tão habituada na terra, com a Terra como seu lugar e do qual não quer sair, mas é obrigado a sair. É o universo em sua perfeição e infinitude que importa ao ser humano moderno e não o sol propriamente, ou a terra, no centro do universo, pois ambos são imperfeitos e tendem ao fim como tudo na natureza. ´É o universo como uma máquina em perfeito e infinito funcionamento, um corpo-máquina cuja essência o ser humano prescruta até o limite de sua perfeição e infinitude na sua causalidade aquilo que verdadeiramente importa ao ser humano moderno.
A causalidade do universo, mais do que o que está no centro dele, é aquilo que move a curiosidade do ser humano que, através da ciência e tecnologia, tenta reproduzir o universo cada vez mais em sua vida como modelo dela a partir de então. É o fim, por sua vez, de toda tragédia naquilo que ela tem de inexplicável como destino ao ser humano, a desmitificação de toda a vida antiga até então, quando deus se torna não a expressão de um maquinismo incompreensível, mas, pelo contrário, descoberto pelo maquinismo, pois, como diz Einstein, deus não joga dados. E se não joga dados, o acaso como aquilo que produz o destino deixa de existir, consequentemente a tragédia e toda a preocupação do ser humano com sua finitude e imperfeição, pelo menos aparentemente.
Aparentemente porque se é a perfeição e infinitude que rege a vida do ser humano cada vez mais na vida moderna, o que se demonstra a partir do corpo-máquina que é, sobretudo, hoje o corpo saudável, produzido numa academia, a perfeição e infinitude causa um profundo mal-estar no ser humano. Tal mal-estar é o da civilização que desterra o ser humano de si mesmo ao ponto dele não mais se reconhecer, de não ter mais um lugar, de não ter sossego em nenhum lugar, de não ter uma zona de conforto, pois foi tirado dele todo o conforto que poderia ter. Ou seja, ele não pode errar. Não pode ter o prazer do erro, de se confortar com o erro, o descanso na sua busca por algo, pois sem sofrimento não há ganho.
O ser humano trágico que não queria sofrer, mas sofria mesmo assim por seus erros, é abandonado tragicamente quando deseja agora o sofrimento, deseja o erro, porque errando, pondo-se em risco constante de um colapso corpóreo-nervoso, ele acredita que pode ganhar algo. É assim que sem querer a morte, ele anseia pela morte, sem querer a depressão, ele acaba por se deprimir, sem querer deixar de viver a sua vida, ele acaba por não viver vida nenhuma com quem ama, com quem é seu amigo, com quem poderia estar junto. Ele vive a solidão eterna de Édipo condenado ao ostracismo por si mesmo e ao qual se condena mais ainda não querendo que ninguém saiba onde foi sepultado e que somente ele sabe inconscientemente.
Édipo não queria matar o pai e tão pouco casar com a mãe, e ter filhos com ela, mas acabou fazendo tudo isto, e no fim da vida, aceitou sua pena de ser estrangeiro à toda e qualquer terra, posto que ninguém sabia onde estava enterrado, a não ser Teseu, aquele a quem confiaria este segredo e inconscientemente a todos nós que, como ele, desterramo-nos ao mesmo tempo em que nos enterramos cada vez mais na terra sob uma terrível verdade, a de não sermos perfeitos e infinitos, e é preciso que aceitemos isto.
Quanto mais o ser humano moderno nega a imperfeição e finitude, mais se angustia, mais busca algo que lhe dê uma vida artificial, um corpo-máquina que lhe inspire a perfeição e infinitude assim como deus. Deus nunca foi tão máquina quanto hoje no corpo das pessoas, assim como em seus discursos que não o esquecem um só minuto, com medo de se verem imperfeitos e finitos, pois com as máquinas e com deus, eles são senão perfeitos e infinitos. Mais ainda, deus nunca foi tão máquina quanto nos corpos-discursos das pessoas que não toleram nenhuma falha, que se veem como deus e como máquinas em seus corpos e discursos padronizados, produzidos por repetições perfeitas e infinitas de exercícios acadêmicos e de falas cotidianas, pelo menos em sua aparência corpórea-discursiva. É a máquina modelando o corpo e o discurso humano a cada movimento dele e de sua fala, ditando o que deve ser feito e dito, e é senão o profundo mal-estar do ser humano moderno o que se demonstra em toda academia e no falar cotidiano com toda esta repetição, ainda que se negue isto conscientemente, pois admitir isto seria admitir uma terrível verdade.
Busca-se na academia do corpo e da mente cada vez mais uma linha de fuga da terra, da terrível verdade que é viver nela, de todo sofrimento que é viver em toda sua errância. Busca-se evitar o erro, o traçado à mão livre, o movimento livre de qualquer modelo, de qualquer busca de repetição, de qualquer semelhança. Busca-se a semelhança e o modelo como modo de existência, pois sem algo para se espelhar, para se ver, morre-se tragicamente, mas diferente da morte de Narciso, ainda que em consequência do mesmo trauma, o de se ver belo, no caso, perfeito e infinito. Diferente porque não foi a beleza o que matou Narciso, mas o desejo de ser belo perfeito infinitamente...
O que o ser humano busca hoje com as máquinas de academia e de discursos, no caso as redes sociais, é ser máquina plenamente, um ser maquínico, ser que não descansa, consciente e inconscientemente, um ser que não repousa na terra. Tudo em sua vida é programado, até mesmo a hora do descanso, o happy hour no fim da semana com os amigos. Nada pode fugir ao seu controle como antes não podia fugir à disciplina dos movimentos fabris ou ao domínio real e divino do senhor de terra. O domínio e a disciplina, e toda a ética fundada numa lógica desde o helenismo, são o princípio de todo o controle humano de si mesmo, dos outros e da natureza, isto é, o princípio do ser máquina como virtude e sumo bem para o ser humano moderno.
Há de se viver para além dessa virtude, das máquinas, de toda a infalibilidade perseguida hoje em dia pelo ser humano em cada passo que dá, escolhe dá e que não pode errar, pisar em falso, do contrário, a depressão o consome profundamente. Um ser humano que não erra não é ser humano, é um ser máquina tal como o corpo visto por Descartes até seu cogito claro e distinto, ou seja, em toda sua causalidade como tentou demonstrar a partir do funcionamento do cérebro semelhante o que fazem hoje os cientistas. E se Spinoza o adverte quanto a isto mostrando toda a passibilidade de erro do ser humano a partir de seus afectos, e que o corpo maquina de modo muitas vezes inconsciente pelas paixões, alegre ou tristes, em maior ou menor potência no corpo, mas também na mente, Spinoza não deixa de tomar deus ou natureza como um modelo, no caso, geométrico, portanto, perfeito e infinito, e, a partir disto, nenhuma liberdade é possível, a não ser para além de uma ideia adequada, ou seja, não geométrica. Ou seja, pode-se imaginar uma linha mal traçada, e pode-se mal traçá-la com o corpo, mas a linha será sempre reta geometricamente na mente, por mais curva que seja, pois o fim de toda linha, reta ou curva, é a perfeição e infinitude divina como Descartes já demonstrou em seu plano cartesiano, que é não por menos o plano de deus, o plano maquínico de deus e de toda a causalidade natural desde então.
Não podemos errar. Eis a terrível verdade da modernidade ao ser humano que não se adéqua à ideia divina, mas que deve se adequar a ela, obedecer à sua ordem perfeita e infinita geometricamente, se por reto em seu cogito e em seus afectos. Deve ser máquina em seu corpo, mente e fala, repetindo incessantemente os mesmos movimentos e dando graças a deus por ser igual aos outros em tudo que faz, nunca ser diferente, nunca agir diferente, nunca pensar diferente, nunca desviar os olhos para o lado para não se desviar do caminho de deus, assim como as máquinas fazem, nunca se desviando do que devem fazer. O ser humano moderno é um ser máquina de corpo, mente e fala e todos aqueles que não agem como tais, que advogam a diferença, que buscam ser diferentes em seus corpos, mentes e falas são senão pós-modernos, seres humanos do futuro, um futuro no qual se pode errar, que não está definido de antemão por uma tradição ou por uma modernidade, por um deus ex machina misterioso ou descoberto.
A pós-modernidade é o irreal, o não-geométrico, o não traçado em linha reta, o que rompe a linha sem produzir uma fuga dela, senão um lapso, de tempo e de espaço, no qual o ser humano vive em descanso, numa rede invisível na qual ele não navega, tão pouco afunda, ou anda sobre ela divinamente, pois flutua nela como nuvens metamorfoseando-se ao vento como as ondas do mar oceânico. A modernidade nunca foi líquida, ela sempre foi sólida em toda sua geometria. A pós-modernidade é que a liqüida ao destruir tudo que é sólido. A modernidade produziu o desterro do ser humano com o qual ele se acostumou na pós-modernidade e reivindica isto para si sem querer por os pés na terra, sem querer descanso como o mar e as nuvens, indo de um lugar a outro pela maré e ventania. É a insustentável leveza do ser pós-moderno que busca se sustentar sem nunca cair e, se cair, se levantar o mais rápido possível sem qualquer possibilidade de descanso.
Descansemos, então. Ponhamos nossos pés, corpos, mente e palavras na terra assim como nossa vista. Olhemos para a terra... Mas ao olhar para ela, eis que a vemos também hoje sem descanso, pois é a terra, por fim, a terrível verdade com a qual nos defrontamos como Édipos de volta a Tebas, de volta à terra para dela sair em breve em nossa tragédia humana sem descanso, mesmo depois da morte. Terra, a megamáquina que treme e nos faz tremer constantemente sem qualquer possibilidade de descanso, de fechar os olhos para seu terror, terra prodigiosa para o corpo, mente e fala do ser humano maquínico que não vê, nem mesmo na terra, em sua morte nela, um descanso, pois é condenado a vagar por ela, preso a si como um fantasma. Trabalhar até morrer e, mesmo depois de morto, trabalhar no luto. Terra que foi desterrada de si mesma e que também já não pode mais descansar desde que foi tirada do centro do universo e gira em torno de si mesma e do sol, como o ser humano moderno em torno de si mesmo e dos outros, porém, em constante a-partamento dele e dos outros.
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