O devir da universidade na contemporaneidade

Há muito tempo a universidade se volta para si mesma e este é seu princípio, aquilo que a define propriamente. Criada a partir do domínio clerical na Idade Média europeia tendo como modelo abadias e mosteiros, a universidade principia como um antro, um lugar de reclusão e abrigo para aqueles que querem estender seus conhecimento de um modo livre liberal. O pensamento é de que uma liberdade somente se pode fazer para dentro e cada vez mais profundamente para não se expor aos perigos do mundo ou do mundano dominado por um concepção religiosa sacra, e ainda hoje, que não admitia um pensamento livre, nem mesmo no limite da tolerância.

Ao ressurgir na modernidade mais fortemente com o conhecimento da ciência e das tecnologias, e não apenas da filosofia sob os olhos religiosos como antes, a universidade não deixou seu passado de reclusão onde se abrigava das luzes nas trevas profundas de seu ser, por mais que um iluminismo preponderasse dentro dela pouco a pouco. O problema não era mais a Igreja que por toda a parte da Europa se reformava, era o Estado-nação que se fortificava cada vez mais econômica e politicamente e impedia que ela exercesse também o seu livre pensamento sob o risco de morte pelo poder absoluto dos reis. Com Kant, o direito à reclusão e à reserva se tornou um discurso por autonomia já que assim como no passado havia um conflito e uma violência premente entre a liberdade requerida pelos universitários para pensarem e a pressão e repressão econômica e política do Estado querendo resultados que fossem de seu agrado na medida em que a universidade vivia sob sua tutela.

Por mais que a universidade se voltasse para o exterior nestes dois casos, e começasse a se voltar ainda mais de modo científico à toda a exterioridade da natureza, não deixou de haver um receio dos perigos que corre em relação aos seus pensamentos que vão muito além do que sonha a vã filosofia, no caso, a do senso comum que obtém facilmente uma verdade imediata diferente da verdade científica e filosófica que constituem com seus conhecimento a universidade do saber atual. Com o desenvolvimento tecnológico a partir da economia, cada vez mais, porém, os limites da universidade com o exterior passaram a ser repensados. Isto porque se as tecnologias foram rechaçadas pelos cientistas e filósofos modernos desde o primeiro momento por fazerem parte de uma arte manual e mecânica, hoje maquinal, relacionada à mão e também a todo o corpo visto como mundano enquanto a ciência e filosofia se viam como uma arte liberal e arbitrária com um pensamento relacionado à alma e a uma divindade infinita ou absoluta, cada vez mais as tecnologias começaram a adentrar o universo acadêmica e a fazer parte das ciências naturais como instrumentos de medição para um conhecimento mais exato e neutro da natureza. Ao ponto de, no século XIX, um positivismo ser pensado a partir disso também nas ciências humanas com a busca de uma cientificidade medida por instrumentos tecnológicos cada vez mais específicos e não mais métodos ou modos de conhecimento definidos há tempos pelos filósofos em relação ao seu saber em geral.

Contribuiu para isto toda a perspectiva do novo que as tecnologias trouxeram desde o início da modernidade e que, dentro de um âmbito econômico, se tornou cada vez mais comum com as tecnologias difundidas no âmbito social pelo capitalismo que começaram a ser vistas de modo diferente pelos universitários, mas não sem limites. Pelo contrário, vistas como aparelhos de vigilância, estas tecnologias se tornaram um novo perigo iminente dentro das fronteiras universitárias invadindo o espaço daqueles que veem na reclusão sua única possibilidade de serem livres e na autonomia a sua única possibilidade de ação. Deste modo, ao mesmo tempo em que a universidade em sua perspectiva científica se voltou para um conhecimento cada vez mais tecnológico e submeteu às pressões e repressões econômicas e políticas, por outro lado, em sua perspectiva filosófica, não apenas de filósofos, mas principalmente destes, houve a sensação de invasão das tecnologias que ultrapassavam as linhas fronteiriças da universidade e, mais ainda, expunham-na ao mundo e toda sua mundanidade vista como algo negativo em seu aspecto manual e não cerebral.

A contemporaneidade em que a universidade está inserida hoje pressupõe, por sua vez, uma relação conflituosa e, às vezes violenta dela com uma perspectiva social, econômica e política a partir das tecnologias que advém de fora dela e a retiram da sua reclusão costumeira, mas também necessária para a constituição de seus conhecimentos. Não é um conflito e violência deliberado em relação a tudo que advém de fora, mas com aquilo que atinge seu âmago profundamente, que é a liberalidade e liberdade de pensamento possíveis com uma autonomia, mas não apenas com esta, devemos dizer contemporaneamente. Pois é preciso também pensar numa heteronomia da universidade e sua submissão à ordem do outro ainda que não imperativamente. No caso, uma heteronomia como relação com o outro, o mundano, fora de si e em relação ao qual, em princípio, não há motivo para conflitos e violência, por mais que o passado tenha incrustado em seu inconsciente esta autodefesa para se manter viva em sua liberdade de pensamento e mesmo para sobreviver às intempéries de tempos ditatoriais.

Apesar deste inconsciente maquínico reacionário que habita o âmago da universidade e que a faz recuar em suas fronteiras cada vez mais para dentro de si, é preciso ver no outro não uma natureza a qual se deve temer ou que deve ser submetida ao domínio, disciplina e controle, tão pouco igualmente uma natureza humana mundana a qual se deve subjugar cientificamente dominando, disciplinando e controlando pelas tecnologias. O outro não deve ser um motivo de conflito e violência a priori sob este aspecto, mas aquilo ou aquele com o qual se entra em contato e a partir deste contato se estabelece uma relação que torna possível um conhecimento sem conflito e violência necessariamente. A universidade que acolhe há tanto tempo diversos saberes em si mesma sobre o que está fora, impondo limites ao fora de si, precisa, portanto, sair de si mesma e ver no outro esta possibilidade de conhecimento que somente é possível com ele e não a despeito dele de modo exato, neutro, autônomo e profundamente individualista como aqueles que são muitas vezes questionados pela universidade em sua mundanidade social, econômica e política.

Abrir as portas e dizer que está aberta a todos que queiram entrar nela não é o bastante para a universidade hoje em dia, pois, mesmo que repita incessantemente este discurso, há muros invisíveis dentro dela que impedem muitas vezes qualquer pessoa de entrar e até mesmo de passar de um âmbito ao outro do saber dentro dela e, quiçá, dentro de um mesmo saber no qual se formam grupos que nem mesmo entram em contato uns com os outros. Não são as pessoas que devem entrar na universidade cada vez mais, é ela que deve sair de si, dispor de modo mais acessível seus conhecimentos que transformam a vida de pessoas a todo instante voltados para a economia e a política, mas não para o bem comum. São conhecimentos humanos que precisam ser acolhidos pelo que está fora assim como são acolhidos por quem está dentro dela em seus diversos campos de estudo e pesquisa por pessoas que também precisam hoje também cada vez mais de acolhimento de um público na medida em que se veem impedidas de pensarem livremente.

A universidade precisa abrir as portas e sair de si e isto é uma questão de sobrevivência atual mais do que fora antigamente, pois não há mais espaço para reclusão, nenhum abrigo seguro para o pensamento, nenhuma autonomia possível, nenhuma tutela de um rei ou reitor soberano. Não é possível um pensamento liberal e livre que não seja comungado por todos que lhe garantam a liberdade e a sobrevivência. Pois o liberalismo e liberdade econômica e política tem um preço que é o da economia capitalista do Estado-nação em sua pressão e repressão da liberalidade e liberdade do pensamento científico e filosófico.

É preciso que a universidade entre em contato, portanto, com o outro de um modo diferente do que habitualmente tem em seu seio, no caso, acolhendo-o em si sem o acolher de fato, com uma hospitalidade condicional e condicionada pelo receio de se abrir para ele, com medo, obviamente do que lhe pode acontecer. É preciso que ela faça o caminho inverso do que faz costumeiramente de ir para dentro de si em busca de liberdade, pois, em vez de esperar em seu lugar comum que todos venham até si, é preciso ir para fora por mais que não se possa fazer isto sem qualquer receio, pois o perigo ronda a universidade constantemente desde seu princípio, e ainda mais hoje que toda sua cientificidade é questionada a partir das novas tecnologias que a expõe sem a conhecer em toda sua profundamente. Se as tecnologias ultrapassam, neste sentido, cada vez mais a universidade em suas fronteiras visíveis e invisíveis e constituem um perigo constante aos seus conhecimentos que correm também o risco de se perderem cada seja desfeita a simbiose cada vez maior entre ciência e tecnologia, é preciso ver nas novas tecnologias uma possibilidade da universidade sair de si e se pôr em contato com o mundo de um modo positivo sem positivismo, posto que sem exatidão e sem neutralidade possível, no caso, de modo afirmativo.

É preciso que as universidades se afirmem no mundo de modo diferente do modo social, econômico e político individualista buscando um âmbito cultural diferente a partir do contato com o outro o qual torna toda cultura possível. Para isto, utilizar as tecnologias em rede atualmente é uma forma de estabelecer este contato tornando possível um conhecimento do outro a partir de sua diferença e não de uma identidade pressuposta pela universidade que ela busca ter em si mesma a partir de sua autonomia e reclusão. Diferença do outro que não se reduz à identidade de uma forma exata e neutra, mas cujo conhecimento é sem exatidão e neutralidade na medida em que não é propriamente um objeto ao conhecimento, mas também um sujeito do conhecimento, e cujo conhecimento é desmedido por qualquer instrumento tecnológico, ou qualquer pressão e repressão econômica política.

É atravessando seus próprios limites em direção a este outro que é diferente do que a universidade pensa em sua mundanidade e estabelecendo um contato com ele que ela deve se dirigir com as novas tecnologias, ainda que com passos receosos, e sem qualquer perspectiva missionária de que o outro precise do seu saber divino científica e filosoficamente. É indo em direção ao outro numa heteronomia ativa e não simplesmente passiva que ela pode se expandir para além de suas fronteiras e superar não apenas o seu temor quanto a todos que a rodeiam, mas também o temor daqueles que voltam a vê-la com temor, e que possam cada vez mais conhecê-la e ter contato consigo e seus conhecimentos científicos e filosóficos, naturais e humanos. É preciso deste modo ter como objetivo uma comunidade de conhecimento que não seja restrito apenas àqueles que vivem nos intramuros da universidade e dentro dos intramuros de seus campos de conhecimento e que invisibilizam o saber dentro de si, o que se torna possível hoje com as novas tecnologias.

Somente assim a universidade vai ser realmente livre, quando todos comungarem do seu conhecimento e não forem vistos também como inimigos assim como muitos a veem como inimiga e que adquirem cada vez mais poder para destruí-la, agora, a partir de dentro, pois as fronteiras estão definitivamente abertas na contemporaneidade, assim como sempre estiveram, mesmo que cerradas e encerradas nas celas dos mosteiros e abadias.

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