A angústia do filósofo


O filósofo está constantemente em busca de respostas para suas perguntas e são propriamente as respostas que encontra que o diferencia das outras pessoas e não as perguntas. É a resposta a uma pergunta que dá ao filósofo sua identidade na medida em que a pergunta pode muito bem ser formulado por outros, mas não sua resposta. E mesmo que as respostas de alguns filósofos pareçam a mesma, não são devido a todo o contexto em que se inserem, seja geográfico, histórico ou linguístico, bem como a um contexto que diz respeito apenas a eles em sua existência singular.

Engana-se, porém, que os filósofos tenham resposta para tudo e imediatamente. Quem tem resposta para tudo são os religiosos e, no caso, uma única resposta. Neste sentido, nenhum religioso se diferencia do outro, mesmo que cultuem um ou vários deuses, que vivam em lugares e épocas diferentes, ou ainda, falem línguas diferentes. Os religiosos são sempre os mesmos, pois a resposta para todas as perguntas para eles é invariavelmente a mesma: deus. Não importa quando, como, onde, por quem, de que modo, com que formulação a questão seja colocada (o que é?, por que é?, como é?), deus é sempre a resposta para qualquer questão. E nenhuma outra é possível, seja pela filosofia ou ciência, nem mesmo pelo mito ainda que todas as religiões tenham os seus enquanto histórias narradas tradicionalmente em suas escrituras e nas quais se deve crer mesmo que ultrapasse os limites da simples razão. Ultrapassar a razão, ademais, é o que faz propriamente o religioso a partir de sua fé e o que o define particularmente de modo diferente do filósofo que se limita sempre à sua razão, ainda que esta razão muitas vezes não seja tão racional. Mas não por ir além da razão como é o caso da fé e, sim, por ficar aquém da razão, ser irracional em sua resposta como algo nem mesmo crível a partir de uma fé, por não condizer a uma realidade nem humana, nem natural, muito menos divina.

Se os filósofos não têm resposta para tudo e, por isto, sejam irracionais e não racionais como tanto desejam em todos os momentos, é porque também não buscam resposta para tudo. É uma resposta a uma pergunta muito particular o que eles buscam, algo até mesmo irrisório em muitos aspectos e desprezível para muitos. Qual a arkhé (origem, princípio, ordem) da natureza? Eis a primeira pergunta já respondida há muito tempo por todas as religiões cada qual com seu deus em particular e a partir de seus mitos de criação, mas para a qual o filósofo busca uma resposta mesmo que todos já a saibam em seu inconsciente e consciente há tempos.

Mas por que o filósofo pergunta algo tão banal e cuja resposta já é de conhecimento de todos? Porque há momentos na vida de uma pessoa que deus não é a resposta e muitos são os momentos em que religiosos perdem a fé e, consequentemente, sua crença em deus, o que não é tão problemático como se pensa a não ser que se pense como um religioso para quem deus é simplesmente a resposta para tudo e, sem ele, a vida perde todo o sentido. É da perda de sentido de tudo que o ser humano se torna filósofo, ou ainda, do desencantamento do mundo que a razão adquire seu encanto e que não é produzido pela própria razão conforme diz Weber. A razão nada desencanta que não esteja já desencantado, mas ela aprofunda consideravelmente um desencanto na medida em que se pense cada vez mais nele até um abismo profundo de descrença e perda de sentido numa depressão e profunda crise do ser humano quanto à realidade. O ceticismo, em sua forma de encarar o mundo sem um conhecimento verdadeiro da realidade, gera muitas vezes um pessimismo e faz com que a realidade não apenas perca sua objetividade, mas também o sujeito sua subjetividade, posto que também faz parte da realidade. Acontece, então, um processo niilista que se produz com o pessimismo a partir do ceticismo e cuja depressão e esquizofrenia é um fim quase inevitável.

O niilismo e toda a angústia proveniente dele é, porém, algo moderno, resultado de todo o período religioso da Idade Média no qual deus se tornou a resposta para tudo e da consequente ausência de resposta a partir de deus que a individualização moderna trouxe e todo seu desencanto. Mesmo com toda a efervescência religiosa em seu início com Reforma e Contra reforma religiosa, na medida em que deus deixou de ser a explicação para tudo como demonstrou a ciência, se deus é tudo para as pessoas e ele não consegue explicar a realidade em que elas vivem com toda a complexidade moderna, o que resta é nada, ou ainda, um ser humano sem nada que o defina ou alguém, solitário em sua existência. Se a ciência e as tecnologias avançaram tão rapidamente na modernidade, pode-se creditar isto à ausência de deus, mas não porque ele tenha morrido como Nietzsche pensou e, sim, porque na sua ausência-morte, a ciência e a tecnologia deram respostas tão imediatas e rápidas quanto a religião e deus era para os seres humanos até pouco tempo antes. Algo que o filósofo não podia dar, ademais, por suas respostas não serem nenhum pouco imediatas e rápidas, mas mediatas e lentas, depois de muito tempo ruminadas como diria Nietzsche, e quando são imediatas e rápidas, é apenas para fazer pensar em seguida, isto é, para pensar numa resposta que está ainda para ser descoberta em sua razão e tende a demorar a ser entendida e talvez nem seja entendida em sua resposta.

Ninguém demora mais para responder uma questão do que o filósofo, pois a velocidade da resposta é da ordem das religiões, das ciências e das tecnologias, por mais que estas últimas demorem para responder suas questões, pois é apenas uma demora relativa e não absoluta como a do filósofo. Retardar a resposta e demorar para dá-la é algo que o filósofo faz sobremaneira e sua tarefa, o que pode ser percebido em como as respostas de cada filósofo demoram no tempo enquanto as dos cientistas e tecnólogos não demoram quase nada e mesmo já nascem substituída por outras, obsolescentes, produzidas para uma obsolescência. Ao contrário, as respostas dos filósofos duram no tempo enquanto o tempo existe em seu espaçamento e nunca obsolescem, por serem ideias ou conceitos aos quais se remonta em sua duração e não perdem a realidade objetiva, pois não se referem mesmo a um objeto específico como o do cientista ou a uma máquina como o do tecnólogo, mas um objeto ideal ou conceitual criado a partir da resposta do filósofo.

Enquanto a resposta do religioso é sempre deus de modo invariável no tempo e espaço, a do cientista é sempre variável no tempo e no espaço, e do tecnólogo variável a cada máquina que produz, a do filosofo dura no tempo e no seu espaçamento ao longo dos tempos, pois é produzida para durar, como algo duro, que permanece em sua dureza que, neste caso, é a do próprio tempo, eterno enquanto dura, como diz o poeta. O poeta e os artistas, ademais, se são rivais do filósofo como diz Platão e seus discípulos, é porque também não têm uma única resposta invariável no espaço e tempo como os religiosos, ou ainda, variável neles como a do cientista e das máquinas dos tecnólogos, e, sim, uma resposta que também dura no tempo. Todavia, suas respostas não são ideias ou conceitos, mas versos consonantes ou dissonantes que o poeta entoa em sua voz ou silencia em sua escrita de modo a permanecer no tempo, já não enquanto o tempo dura, mas enquanto seus versos duram de algum modo, e cada artista tem algo material que faça sua arte durar no tempo. A resposta do filósofo, porém, se sustenta por si só no tempo cavalgando em suas costas, imóvel, deslocando-se com ele aonde for, e mesmo que não lhe reste nenhuma fala, ou nada escrito, ela permanece selada no tempo, até mesmo em meio à religião, ciência, tecnologia e arte a lhe servirem de linha de fuga no tempo. É como a resposta de Tales de quem nos chegou apenas um conceito ou ideia, água, como origem de todas as coisas, ou ainda, uma resposta que não é uma resposta, como é a de Sócrates, só sei que nada sei.

Se a resposta define o filósofo, sua maior angústia é, porém, não encontrar uma resposta e ninguém definiu melhor esta angústia do que o próprio Sócrates em busca de uma resposta para a pergunta se era ou não mais sábio do que os outros atenienses como disse Apolo por meio de sua pitonisa, no qual acreditou Querefonte, conforme relato Sócrates em julgamento na sua Apologia. A angústia de Sócrates, e do filósofo, porém, não é a angústia de que trata Heidegger e que diz respeito ao ser humano em geral em sua perda de fé quando se depara com sua própria existência sem nada que lhe apoie, por estar ele preso, no caso, à espera da morte como seu destino inelutável e para a qual deve se preparar. Não é uma angústia existencial que o leva para além de sua facticidade e define sua existenz como ser-aí (dasein), isto é, ser-no-tempo, que, por algum momento, perde o sentido do ser e o reencontra em si mesmo enquanto ente, pois Sócrates não é um homem comum como lembram Platão e principalmente Xenofonte narrando-lhe os feitos memoráveis, e tantos outros de sua época.

A angústia de Sócrates, o filósofo, não é a do ser humano comum, religioso, cientista ou tecnólogo, filósofo existencialista que busca o sentido do ser em seu ente de modo imediato e rápido respondendo uma questão que lhe é proposta ou feita a si por si mesmo deduzindo uma resposta que é deus, algo real, uma invenção ou uma filosofia que dê sentido à sua existência. A angústia do filósofo não advém da ausência do ser e de sua busca no ente, mas de ser ele um ente em busca de uma resposta que não é imediata e rápida, mas que dure no tempo em seu espaçamento, ou simplesmente dure ao longo do tempo. Uma resposta que poucos buscam e somente se pode encontrar se se almejar ser filósofo e sofrer a cada dia por não ter esta resposta e talvez nem a tenha durante toda sua vida. Uma resposta que não é uma tese, esta resposta invariável como deus ou variável como uma teoria científica e invenção tecnológica, ou ainda, uma obra de arte que dura enquanto dura seu suporte ou nem isto, perdendo-se entre tantas outras teses no tempo.

Enquanto os outros se angustiam enquanto entes apenas na medida em que percebem a ausência do ser e o buscam em suas vidas desesperadamente num determinado momento de suas vidas, os filósofos se angustiam a vida toda como Sócrates advertido pelo seu daimon a todo instante sobre os perigos que corria em sua busca de respostas até que seu daimon não mais o advertiu e ele encontrou a resposta que lhe fez cavalgar no tempo até os dias de hoje e enquanto existir o tempo. A resposta é que somente o filósofo é um ser-no-tempo, pode-se dizer, pois todos os outros são entes que perderam seu ser ou não querem ser, pois somente se preocupam com o ser-no-tempo de modo imediato em algum momento de sua vida enquanto ente. Deste ponto de vista, ninguém se angustia mais do que o filósofo, por ser ele incapaz de esquecer de ser-no-tempo e de buscar respostas cujo encontro pode levá-lo à morte como levou Sócrates ao se dizer ignorante numa época que já sob a racionalidade do logos não admitia que ninguém soubesse, muito menos ele, pois dizer que só sabia que nada sabia era algo totalmente ilógico, isto é, sem logos algum, algo contra o qual não se podia, portanto, argumentar como um sofista, logo, saber. E todos deviam saber, deviam desejar saber imediatamente o que Sócrates dizia e ele não podia esconder isto, seu próprio saber, mesmo que não soubesse de fato.

Ser-no-tempo, porém, não é um privilégio do filósofo pela angústia que ele causa tornando-o melhor do que qualquer outro em suas angústias de vida, pois não tem nenhuma relação com a imortalidade a qual muitos almejam para escapar do ente que são. Pelo contrário, ser-no-tempo, no sentido de ser filósofo aqui definido, é viver a própria mortalidade em toda sua angústia do início ao fim dos tempos e não a partir de um encontro fortuito. É, segundo a imagem platônica, no mito do destino das almas, vagar como fantasma e nunca se encontrar com os deuses numa terra verdadeira, por estar preso à terra mesmo depois da morte. Prisão que é a condição do filósofo em relação à existência e que ele admite, mas que não é uma prisão de fato, pois é para ele a própria vida em toda sua liberdade, aquela que os demais não querem viver por ser já uma vida limitada, uma vida vivida em toda sua limitação, uma vida que é a do limite mesmo a cada dia e que o filósofo atravessa em busca de um limiar, isto é, de uma resposta para ela em sua dureza e durabilidade no tempo.

Uma vida que é, por fim, a do limite da simples razão que ele escolheu viver eternamente sob o risco de ser irracional em algum momento, ou em vários momentos do tempo, sem que ninguém compreenda o seu ser-no-tempo, o porque escolheu esta vida, e nem ele mesmo saiba muitas vezes, mesmo sabendo de algum modo, como Sócrates por ventura soube, sem saber se a sua resposta para a vida, depois da morte, será uma boa ou má sorte. Mas não importa, a angústia do filósofo não é a morte, é a vida, que ele quer viver sempre no limite de sua simples razão em busca de uma resposta constantemente.

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