O silêncio ao redor
...Em pleno Carnaval, contemplo o silêncio ao redor. Nada melhor que o silêncio para filosofar e um feriado prolongado para ter a oportunidade de fazer isto. Ficar em silêncio, pensar, filosofar. Talvez pareça estranho isto, quando a regra no Carnaval é fazer barulho, mas engana-se quem pensa que o silêncio é oposto ao Carnaval por causa do barulho, pois não há época mais silenciosa do que a do Carnaval.
O silêncio não é a ausência de som, como o de um barulho qualquer. O silêncio é a ausência de fala. Se o Carnaval é a época mais silenciosa que há é senão porque nele não se fala a não ser por um breve momento em que o corpo para de foliar e se fala sem cantar músicas carnavalescas enquanto dança, pois cantar não é propriamente falar.
É preciso compreender todo o logocentrismo ao qual Derrida se refere para perceber como a desconstrução da fala não é algo produzido por sua filosofia, mas pela própria vida atualmente na qual as pessoas não falam, pois preferem o silêncio ao redor. No ônibus, no carro, em casa, no trabalho, na escola, diante das diversas telas de aparelhos tecnológicos, passa-se longas horas em silêncio até que uma fala retumbe, isto é, se faça presente e volte a sucumbir ausente no silêncio do qual adveio e para a qual retorna. Falar, como adverte Derrida, não é fundamental, constitui uma presença momentânea em toda a vida silenciosa que levamos há muito tempo na história, apesar do privilégio ou poder que se dá à fala, a quem fala, ao que se fala, ao que é falado, ao lugar a partir do qual alguém fala.
Por mais que se pense que falar é algo que todos fazem por proferirem palavras ao léu constantemente no cotidiano, falar não é propriamente isto e as falas cotidianas manifestam mais o silêncio do que uma fala propriamente dita. São poucos os que realmente falam, muitos os que escutam silenciosamente uma fala e muitos outros que apenas repetem o que outros falam sem nunca falarem propriamente na realidade, ainda mais atualmente com as novas tecnologias da comunicação e massificação das falas. A diferença entre os que falam e os que silenciam, ou silenciam mesmo falando algo, não está no pronunciamento das palavras, isto é, na voz, ou ainda, na diferença entre a fala e a escritura. A diferença está entre a fala enquanto expressão de um pensamento e o silêncio de uma escritura não-fonética, isto é, que não representa a fala e tão pouco é um suporte para ela e um suplemento, e que é temida por Platão não por silenciar a voz, mas silenciar a expressão do pensamento pela fala. A proposição de Wittgenstein de que quando se não tem nada a dizer, deve-se calar, neste sentido, refere-se propriamente a isto e marca a diferença entre o que se tem a dizer ou falar e o que não se tem a dizer ou falar e, por isto, silencia-se.
É fácil perceber como em geral não temos muito o que falar e é o silêncio ao redor que domina tudo, as escrituras não-fonéticas, e no Carnaval mais ainda quando o corpo silencia o pensamento, isto é, impede-o de se expressar numa fala, expressando-o em si mesmo, expressando em silêncio. Talvez se diga que, no Carnaval, os corpos falam, porém isto é apenas mais uma expressão do logocentrismo no qual a fala adquire um privilégio em relação ao pensamento de tal modo que qualquer meio de expressar o pensamento é visto como algo que fala. Assim é que o corpo fala, a escritura fala, as paredes falam, o criado mudo fala, até mesmo o silêncio fala... Tudo que está em silêncio se torna um vestígio e uma testemunha da fala, isto é, fala, pois falar se tornou historicamente expressar um pensamento. Deste modo, a fala domina todo o silêncio ao redor, com exceção do Carnaval, quando o silêncio se impõe ao pensamento com sua folia silenciando qualquer expressão dele calando também os que dizem que o corpo fala, principalmente, a língua do seu desejo de tê-lo e, neste sentido, fala que os deseja mesmo que nunca falem isto, nem mesmo estejam pensando em falar, pois é justamente o contrário o que querem, não falar, nem mesmo a língua do desejo.
Corpos não falam, sentenciou Platão há muito tempo quando disse que o corpo atrapalha o pensamento da alma, isto é, a expressão dele na fala ao impedir a alma de pensar, por exemplo, quando o corpo adoece. O corpo não fala, vive em silêncio, e isto não atrapalha a expressão do pensamento na fala, pois o silêncio não é oposto ao pensar e ao filosofar obviamente. Contudo, quando o corpo adoece, o silêncio do corpo domina os pensamentos que já não podem mais se manifestar numa fala, pois o corpo quando está doente não deixa falar ou, em seu delírio, a fala não é mais a expressão de um pensamento como a requer Platão e, além dele, muitos outros. O delírio do corpo, isto é, sua folia, impede que o pensamento se manifeste na fala, impede que haja um logos, uma fala ou discurso que expresse o pensamento, impede a manifestação de uma lógica como união da fala e do pensamento num logos.
Quando o corpo delira em folia carnavalesca, perde-se toda a lógica, deixa-se de falar. Falas e pensamentos são entrecortados por silêncios abruptos produzido pelo corpo em folia que desconstrói a expressão do pensamento na fala e o manifesta em dança, gritos, embriaguez que desvanecem o pensamento impedindo que se manifeste numa fala. É o que acontece num esquizofrenia que expressa de modo catatônico, tagarelo ou vociferante, uma ruptura entre a fala e o pensamento e um silenciamento do pensamento na fala. Motivo pelo qual a psicanálise deixou de lado qualquer tentativa de compreender o esquizofrênico, pois ele é incapaz de falar o que pensa, no caso, sobre seus sonhos e sobre a realidade, e, sem isto, não se pode ter de modo psicanalítico nenhuma interpretação de sua fala a partir do tragédia de Édipo já que o pensamento é silenciado na fala esquizofrênica, isto é, não há uma relação entre pensamento e fala, e é silenciada senão toda a compreensão de que o mito, e em particular o de Édipo, é uma fala do inconsciente e, ademais, sua primeira expressão.
O mito não é, nunca foi, nunca será a expressão do inconsciente na fala primordialmente, a não ser na medida em que o inconsciente expressa a desconstrução de uma fala, isto é, de uma consciência que se pretenda reconstruir em sua fala, que é senão o caso da psicanálise ao buscar reconstruir a fala de uma consciência da família tradicional destruída pelas relações sociais modernas individualistas, assim como no mito e tragédia de Édipo houvesse esta destruição. No caso, reconstruir uma fala ou consciência familiar que as relações sociais antigas reforçavam em sua tradição e buscavam evitar sua destruição senão com a representação trágica na história de Édipo Rei de Tebas impedindo que um individualismo destruísse a família como aconteceu nesta família tradicional tebana. Neste sentido, nada mais sintomático do retorno do Édipo psicanalista do que a fala, o discurso e a retomada de uma consciência familiar tradicional, bem como de todo o complexo edipiano que ressurge com mais força ainda aumentando a ida aos consultórios psicanalíticos em busca de ajuda por não ser o individualismo o problema da família senão aquilo que ela produz a partir de uma repressão familiar que impede o indivíduo de expressar o que pensa na família tradicional.
Na modernidade, não é a família que se deve reconstruir, mas o indivíduo dilacerado pela repressão de uma consciência familiar na fala de pais que silenciam filhos, de professores que silenciam estudantes, de sacerdotes que silenciam fiéis, de patrões que silenciam empregados, de militares, policiais e políticos que silenciam cidadãos com palavras de ordem que querem dizer uma única palavra de ordem: Silêncio! Mesmo que não digam isto, pois em cada palavra que pronunciam segundo esta consciência familiar e poder autoritário de uma fala em sua defesa é o silêncio que eles pressupõem como medida para seu poder, um silêncio que não é produzido ao redor e faz pensar e filosofar, mas que é produzido por uma fala que priva os outros de falarem, que impõe o silêncio àqueles que pretendem falar assim como aqueles que pretendam expressar o pensamento silenciosamente em seus corpos e escrituras e até mesmo inconscientemente destruindo seus desejos de vida. Cada vez mais reprimidos em sua fala pelo poder familiar que os priva de falar é, por sua vez, nos consultórios dos psicanalistas que os indivíduos buscam falar, porém, é ainda a mesma fala de uma família que se coloca para eles de modo trágico ou simbólico numa tentativa de ajudá-los a falar aumentando ainda mais a repressão sobre seu desejo de falar através do complexo de Édipo e tornando senão sua cura interminável na medida em que é a repressão da fala que os leva a falar num círculo vicioso de repressão da fala e fala da repressão familiar, como bem demonstrou Foucault sobre a sexualidade, donde provém toda a fala psicanalítica, bem como sua autoridade em falar dos desejos e poder sobre o inconsciente.
O mito é a expressão de uma consciência e não de uma inconsciência, pois a inconsciência se manifesta senão no silêncio que não se opõe à fala, a não ser quando uma fala busca se impôr sobre o silêncio com seu poder, quando tudo passa, então, a falar e não há mais o silêncio, pois tudo é um testemunho da fala de um pensamento, inclusive o inconsciente, o que define propriamente o logocentrismo segundo Derrida. Ou ainda, há oposição entre o silêncio e a fala quando outras falas são silenciadas e o silêncio é uma imposição de uma fala sobre outra e não aquilo que faz falar, no sentido, de que possibilita uma expressão do pensamento na fala, pois, e nisto consiste senão a desconstrução da fala, somente existe uma expressão do pensamento na fala devido ao silêncio. Neste caso, um silêncio que se antepõe à fala em sua relação de expressão do pensamento, um silêncio que é, deste modo, o meio de expressão do pensamento anterior à fala e na fala, aquilo que Derrida chama de escritura pré-literal, isto é, antes da letra ou arquiescritura.
Se existe um grande problema na compreensão da desconstrução da fala é em ver, deste modo, a desconstrução como algo que destrói a fala, quando ela é senão o que possibilita que a fala retome o pensamento na medida em que na modernidade em que vivemos fala-se cada vez mais sem qualquer relação com o pensamento, pois se impõe uma voz que silencia a todos a partir do poder de quem fala e do que é falado para aumentar este poder, isto é, o privilégio de falar que é senão o privilégio de uma fala em detrimento de todas outras falas em sua expressão do pensamento e em detrimento do próprio silêncio como expressão do pensamento por qualquer meio alheio à fala. É contra a destruição da fala que, neste sentido, a desconstrução se coloca, no caso, contra a destruição de uma fala que é a expressão de um poder no sentido de um privilégio em relação ao pensamento e em relação a outras fala, e não de uma expressão propriamente dita dele na fala. Trata-se de desconstruir uma fala que impõe o silêncio à outras falas e ao pensamento expresso silenciosamente e não é, deste modo, uma fala que por meio do silêncio expressa o pensamento.
A desconstrução da fala, neste sentido, é a desconstrução do privilégio de uma fala em relação ao pensamento, isto é, a desconstrução do poder de quem pretende expressar o pensamento em sua fala de modo absoluto sem que outros tenham o mesmo poder de expressar o seu pensamento numa fala. Eis a différance que a desconstrução da fala pressupõe, isto é, uma diferença que não é de poder em relação ao pensamento no sentido do que ou quem pode expressá-lo, e, sim, uma diferença de expressão do pensamento por qualquer meio e por qualquer um que queira expressá-lo sem qualquer poder ou privilégio de um meio ou de alguém para impedir isto. Uma diferença que é produzida pelo silêncio ao redor da fala em relação com o pensamento e não pelo silêncio imposto por uma fala privilegiada por um determinado poder na expressão do pensamento.
Se o Carnaval, por fim, é uma das época mais silenciosas é porque nele, portanto, o pensamento se expressa silenciosamente no corpo em folia e a fala como expressão do pensamento é destituída de qualquer poder e privilégio, pois falar é o que menos se deseja no Carnaval no sentido de expressão de um pensamento, o que não quer dizer que não se possa escrever e, assim, foliar filosoficamente.
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