O ventre da criança


Num dos contos mais belos do livro Círculo dos mentirosos: contos filosóficos do mundo inteiro, de Jean-Claude Carrière, um velho chamado Markandeya, cansado de uma longa caminhada sem encontrar nenhum abrigo numa terra devastada, desesperado e angustiado em sua alma, avista uma criança debaixo de uma figueira que ao ver que ele está em busca de repouso oferece seu corpo. Quando a criança abre a boca, uma rajada de vento o suga para dentro dela e ele vê a terra inteira no seu corpo e anda por todo ele sem nunca chegar a um fim até que um vento o arrasta novamente para fora do corpo da criança e, diante dele, sob a figueira, ela lhe diz: - Espero que agora tenha descansado.

O nome deste conto é O ventre da criança presente no Mahabharata, poema épico da tradição indiana para a qual o círculo da vida é ininterrupto, poema tão grandioso como o corpo da criança com mais de 74 mil versos e 1,8 milhões de palavras e tão velho como o Markandeya, mas que nos faz rejuvenescer como se estivéssemos no ventre de uma criança. O velho e a criança representam neste conto o fim e o começo da vida, mas também o recomeço dela sendo a morte apenas aludida de passagem na entrada do velho do corpo da criança e pelo seu descanso para seguir a caminhada de uma outra vida. Ou ainda, a mesma caminhada enquanto velho que precisa constantemente do ventre de uma criança para continuar caminhando em direção à morte sem temê-la.

Não é preciso entrar no ventre de uma criança para nos sentirmos rejuvenescidos em nossa vida, basta um breve olhar para ela que sentimos este benfazejo descanso na alma e no corpo e se ela nos dá um sorriso é a própria transcendência que se manifesta em catarse pelos poros do nosso ser, ainda mais no caso de quem é velho. Pois o olhar de um velho para uma criança é o olhar de toda a natureza para a vida renovada e dele para sua própria vida vendo nela aquilo que foi um dia e se esta criança é o seu neto este olhar expressa toda a existência natural representada naquele que, um dia, quiçá, seguirá seus passos na história para além da natureza que já o faz seguir em seus genes. Mas quando uma criança morre e esta criança é o seu neto é a dor de toda a natureza que se faz presente neste momento, pois é o ciclo de vida que se rompe e a morte deixa de ser a passagem de uma vida a outra naturalmente para ser o impedimento da própria vida continuar seu ciclo e não há mais descanso dela no luto.

O círculo da vida é interrompido com a morte de uma criança, o fim da natureza que se expressa neste momento simbolicamente; E quando se comemora esta morte é a própria morte da vida que se celebra e não a vida como nos festejos mexicanos, é o fascismo e todo seu desejo pela morte que se expressa na morte do outro e da natureza. É o niilismo como um desejo profundo da morte como um nada de vida e não o descanso dela num nada de preocupação como o ventre de uma criança.

No luto, descansamos da luta da vida e pela vida. Quando um morto descansa, também nós descansamos. Mas o morto não sente a dor da morte, somente nós a sentimos. Não é a morte que dói, todavia, o que dói é a vida, a dor de vivê-la a cada momento para a qual a morte é um descanso, uma ausência de dor, mas nunca desejada por aqueles que amam a vida, que desejam viver e deixar viver e não morrer e fazer morrer. Uma criança é uma pequena morte para os olhos de um velho, como um orgasmo é uma pequena morte para o desejo. Um descanso para sua vida e desejo de viver que o faz reviver novamente e é preciso ser muito forte para voltar a desejar reviver sem uma criança para lhe olhar nos olhos e em sua inocência se ver inocente como ela, purgado de todos os seus pecados, de todas as agruras que a vida lhe fez suportar.

Quando a morte se expressa no rosto de uma criança que jaz em um caixão, ou vive alegre a fazer sinal de arma com a mão, não é mais um descanso para uma outra vida que se faz presente, é a vida que já não tem mais descanso, a vida como uma luta pela vida. Luta para suportar a dor de ver a criança morta e com ela morrer tudo que podia ser em vida para o bem de todos, luta por ver a vida morta na criança que faz arma com a mão e a carrega literalmente em suas mãos. Luta por uma vida que complete seu ciclo e se refaça como sempre se refaz na natureza mesmo que a morte sobrevenha como seu descanso, depois do ciclo da vida ter se cumprido com uma nova vida, pois o fim da vida não é a morte, mas outra vida.

Neste sentido, como os indianos e Markandeya é preciso que aprendamos a descansar na vida no ventre de uma criança deixando que ela desperte em nós a vida novamente em vez de despertar a morte e o medo dela. É preciso, por um momento, olhar para a criança, mesmo morta, e ver um rejuvenescimento como Markandeya viu ao ver a terra inteira de um modo diferente da que via antes de adentrar o ventre dela. É preciso ver na criança um outro e uma outra possibilidade de vida e não o fim dela, temeroso pelo que vai acontecer e o que nos fazer como um inimigo qualquer o qual se quer morto e se deseja celebrar sua morte mesmo que seja a morte de uma criança.

A natureza em todo seu desejo divino que Spinoza em sua Ética definiu como conatus deseja a vida e não a morte, muito menos a morte de uma criança, que é a sua própria morte. O olhar de um velho para uma criança é o olhar da natureza para si própria em seu conatus, o desejo de vida da natureza que na criança vê se cumprir. E mesmo que a criança morra naturalmente terá se cumprido sua vida segundo a natureza, pois é a vida que a criança expressa em si mesma mesmo em seu breve momento de vida ainda que a morte adorne seu corpo e alma.

É a democracia, e não o fascismo, o conatus político segundo a natureza e o que, conforme a natureza, devemos defender, pois somente numa democracia uma criança pode viver livre na natureza e um velho pode contemplá-la livremente, mesmo na dor profunda de uma despedida por vê-la morta em sua frente. É a democracia que sofre quando uma criança morre a despeito de toda a vida que tinha pela frente, seja sua morte pela natureza ou pelas mãos armadas de quem ensina crianças a pegar em armas para defender a morte e não a vida, pois uma vida não se defende da morte com a morte, uma vida se defende da morte com outra vida. Assim é na natureza quando o velho está diante de uma criança, a vida defendendo-se da morte com a vida dela cujo ventre e semblante nos faz reviver e continuar vivos depois de um breve descanso contemplando uma criança sem a qual não temos mais descanso.

Sem a vida do outro não há vida, pois é impossível ser feliz sozinho, como disse o sábio músico poeta Tom Jobim, e não podemos desejar a solidão que é a própria morte sem descanso e nem desejar a morte que é desejar a solidão de uma vida, muito menos de uma criança. A criança e toda a natureza dentro de seu ventre acolhe em descanso o velho morto depois de sua longa caminhada pela vida fazendo-o esquecer a morte que via por toda a terra antes de morrer, mas quem acolhe a criança quando é ela quem morre? São todos os humanos que veem em sua morte o fim de sua própria vida, o fim da natureza e o final dos tempos que já não renascerão mais a partir dela e por isso devemos chorar a morte de uma criança, pois se alegrar com ela é se alegrar com a morte de toda a vida.

P.S. No luto a luta e na luta o luto. O fim de toda luta é o luto e de todo luto a luta. Neste ciclo ininterrupto de luto e luta é a morte e não a vida que se expressa, a dor e não a alegria de viver. É preciso romper com a lógica de morte da luta que leva o luto e do luto que leva à luta para podermos voltar a viver novamente. Pois quando a luta e o luto são comemorados no momento de morte de uma criança, é preciso voltarmos a pensar na vida de luta e luta que levamos e mudá-la completamente, pois não deve ser a vida que queremos viver e na qual podemos viver realmente. Este texto é uma breve homenagem à morte do neto do ex-presidente Lula e toda a vida sem luta que ela e todas as crianças mortas devem nos inspirar contra uma política que deseja a morte delas, nossa ao desejarmos uma vida sem luta e de toda a vida.

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