A verdade escondida em Green Book


A verdade sempre foi um mal, nunca um bem. Dizer a verdade como sendo algo bom somente serve àqueles que querem oprimir, reprimir, violentar e matar. É um método de intimidação e repressão como bem observou Foucault sobre a sexualidade e Deleuze e Guattari mais ainda em relação a como a sexualidade enquanto desejo foi tratada clinicamente pela psicanálise, pois não se tratava em ambos os casos em saber da sexualidade ou do desejo nela investido de modo inconsciente, mas de não saber, cada vez mais não sabendo, ocultando-se a verdade sobre ela.

É preciso ocultar a verdade. A verdade, em si mesma, compreendida pelos gregos, é oculta na medida em que é compreendida como uma alétheia, que se é aquilo que não é esquecido Ã© porque é guardado na Memória onde todas as verdades são escondidas ou guardadas. E se a verdade é lembrada pelas filhas da Memória, as Musas que inspiram os poetas a dizerem a verdade na época mítica é já com uma advertência, dada a Hesíodo em sua Teogonia quando inspiram seu canto: sabemos muitas mentiras dizer símeis aos fatos e sabemos, se queremos, dar a ouvir revelações. Ou seja, ocultam a verdade, mesmo quando a dizem e, mais ainda, dizem a verdade apenas se querem, pois sabem, como deusas, o problema que é dizer a verdade ou, para os humanos, ouvir revelações.

Toda a Teogonia de Hesíodo, por mais que revele as origens dos deuses é uma demonstração deste ocultamento da verdade, da necessidade de se ocultá-la, principalmente aos humanos, e que isto é um desejo divino. Céu obriga Terra a ocultar seus filhos com ela em si mesma feita prisão e cova deles por Céu não querer perder seu poder ou o poder de não realizar seu desejo, uma primeira demonstração de como a revelação da verdade leva seja a prisão ou à morte. Cronos, filho de Céu, depois que retira o poder de Céu, faz o mesmo que o pai, agora engolindo seus filhos com Réia e fazendo de seu próprio corpo prisão e cova, com medo também de perder o seu poder, o que acontece inevitavelmente quando é derrotado por Zeus, um de seus filhos, cuja verdade do nascimento é ocultada do pai que engole uma pedra em seu lugar dada por Réia. Ao derrotar Cronos, também receoso de perder o poder, ao se casar com Métis, sua primeira esposa, Zeus engole-a em seguida, por saber que ela teria uma filha igual a ele em força e sabedoria e o outro que seria rei dos homens e dos deuses, deste modo fazendo o que fez o pai para para ter senão a força e sabedoria e ser o rei dos homens e dos deuses. A atitude, por fim, de Zeus que o tornou o mais sábio, pai de todos os deuses e humanos na Grécia antiga, demonstra o quanto em tempos míticos a verdade é escondida, principalmente aos humanos, quando Prometeu a rouba de Zeus simbolizada pelo fogo eterno, isto é, o fogo divino, para dá-lo aos humanos e é punido por isto, pois somente os deuses podem saber a verdade que não pode ser revelada aos humanos senão em momentos trágicos.

Não muito diferente da tradição mítica grega é a tradição mítica cristã neste ponto quando o seu deus único pune os humanos por terem comido, pressupostamente, o fruto do conhecimento e por terem, deste modo, pecado. É pecado para qualquer cristão querer conhecer a verdade sob este ponto de vista e a Igreja Católica em seu auge na Idade Média europeia defendeu com milhões de mortes o ocultamento da verdade em nome de seu deus único. E aqueles que conheciam a verdade viviam senão presos como os filhos da Terra dentro de mosteiros sem nunca a poderem revelar ou a escondiam em seu próprio corpo ascético no caso dos padres que, mesmo em contato com outras pessoas, escondiam e ainda escondem a verdade por baixo de sua batina enegrecida e todo o desejo de contá-la expresso em seu corpo de modo inconsciente e, muitas vezes, conscientemente. Somente os fiéis, como demonstra Foucault, contavam a verdade para os padres e estes, pelo contrário, apenas recitavam as máximas da Igreja para culpá-los dos pecados e davam-lhes as orações para puni-los sob o lema de que a verdade liberta, mas como observam Deleuze e Guattari em relação à cura na psicanálise, isto nunca acontece em vida, e a liberdade no cristianismo assim como a cura na psicanálise ao dizer a verdade só advém com a morte, às vezes antecipada por uma fogueira santa ou um eletrochoque santificado.

Ao contrário do que se pressupõe, a verdade aprisiona em vez de libertar como se pode perceber nos mitos gregos e cristãos, bem como na história, e os filósofos, ao quererem dizer a verdade, sabem muito bem disso na Grécia antiga, da qual muitos foram expulsos por quererem dizer a verdade que o mito ocultava misturada a ditos símeis aos fatos e aqueles que não quiseram fugir, ocultaram-na como os pitagóricos, ou foram mortos como Sócrates e Hipátia, esta última no período helênico prenunciando a Idade das Trevas que adviria com o cristianismo em todo seu fanatismo medieval na Europa a ocultar a verdade de todos por milhares de anos. Dizer a verdade sempre foi uma sentença de exclusão, prisão e morte como a que foi dada a Sócrates e que ele mesmo antevia a cada momento que pensava em dizê-la ao ser advertido por seu daimon, motivo pelo qual senão dizia que só sabia que nada sabia, com isto entendendo o que os deuses míticos queriam dizer através de suas musas, principalmente o deus Apolo, que disse pressupostamente que ele era o mais sábio, o deus do sol que tudo ilumina e, assim, revela a verdade, mas cega aqueles que querem sabê-la totalmente olhando para a luz que ele irradia intensamente. E, mais ainda, dizer a verdade é uma sentença de morte cruel como se demonstra no início do cristianismo quando cristão enfurecidos dilaceram Hipátia e muitos filósofos quando começam a querer revelá-la no Renascimento moderno, como no caso de Giordano Bruno queimado em praça pública, e outros que, além de filósofos, são também cientistas, torturados e mortos cruelmente quando negam e ocultam a verdade como foi o caso de Galileu Galilei.

Crentes em mitos e religiosos nunca defendem a verdade, mas o ocultamento dela, sejam eles crentes nos mitos gregos ou, mais ainda, dos mitos cristãos, estes mais fervorosos do quaisquer outros em defesa das verdades ocultadas por seus mitos e das histórias em suas escrituras sagradas que somente eles podem saber a verdade, interpretá-las, e ninguém mais, ocultando-as em sua própria palavra. Cristãos sempre promoveram a morte para ocultarem a verdade em nome de deus e daqueles que o interpretam, no caso, os sacerdotes, e daqueles que representam deus na terra para eles, no caso, os reis e políticos. Mais ainda, sempre promoveram mortes cruéis como punição e para isto inventaram diversos instrumentos de tortura na Idade Média europeia e tantos outros na Idade Moderna como na ditadura brasileira para punir aqueles que não eram considerados cristãos, no caso, os ateus comunistas, estes hereges modernos do cristianismo capitalista que substitui o cristianismo imperial de Roma.

Se hoje, no Brasil e no mundo, cristãos de todas as denominações enquanto católicos, protestantes e evangélicos buscam ocultar a verdade em mensagens por meio de aplicativos de informática em defesa de seu deus e de seus políticos de extrema direita contra o fantasma do comunismo, isto não é novidade, pois estão fazendo senão aquilo que fizeram durante toda sua história mítica e humana. Nem tão pouco é uma novidade que defendam a crueldade das mortes e será novidade que eles possam produzir mais mortes em nome de sua fé em deus tal como já produzem em massa ao defenderem seu deus na defesa da honra masculina por ter sido o homem o primeiro a ser criado por deus contra as mulheres em seu feminismo, por defenderem seu deus contra homossexuais, por considerarem estes não conformes à natureza criada por deus, defenderem seu deus contra os negros, por não serem brancos como a encarnação na terra de seu deus e contra indígenas por defenderem a natureza como o paraíso na Terra criado por seu deus... Neste sentido, se a crueldade está na boca de qualquer cristão hoje em dia que vocifera nas redes sociais suas palavras de amor a deus, a seus sacerdotes e políticos e ódio a mulheres que defendem seus direitos como feministas, aos negros que defendem seus direitos contra o racismo, aos LGBTTs que defendem sua orientação sexual contra uma norma heterossexual e indígenas que defendem simplesmente sua vida em comunhão com a natureza, é porque a verdade não pode ser revelada a não ser na palavra cristã na qual ela se oculta e se revela somente àqueles que buscam ocultá-la em si mesmos.

A cada vez que há a morte de mulheres, negros, de LGBTTs e indígenas, além de todos os chamados de comunistas e ateus considerados como de esquerda pelos cristãos, brancos, indígenas ou negros de direita é a defesa do ocultamento da verdade que se manifesta e que se a verdade for descoberta, se ela for dita, é a morte que se produzirá e os militares que estão no poder atualmente no Brasil estão preparados para fazerem isto, como fizeram na ditadura imposta por eles para ocultarem a verdade cada vez mais, pois dizer a verdade é uma sentença de exclusão, prisão e morte e da mais cruel das mortes caso seja dita por aqueles que são ou defendem todas estas minorias.

Contrariando, assim, toda a história da filosofia e a música dos Engenheiros do Havaí, o que rege o mundo há muito tempo em sua história é não, não dizer a verdade, doa o que doer, (e) não dar o telefone, pois o que acontece num Piano bar deve ficar no Piano bar como percebem os próprios Engenheiros em seu Refrão de Bolero... Hoje em dia que cristãos fanáticos, racistas, machistas, neocolonizadores e militares tomam o poder, muitos deles controlando milícias em cada ponto da cidade no Brasil, e facções não menos cruéis dominam territórios em nome do deus cristão tatuado no peito, e obrigam também o ocultamento da verdade, é preciso ser cada vez mais como Don Shirley no filme Green Book (2018), escondendo a verdade de quem quer nos matar por dizê-la e buscando alguém que nos dê segurança quando estamos prestes a dizê-la e correr risco de vida, alguém que também tem algo a esconder e quer a mesma segurança.

Lembremos, por fim, que a verdade sempre prevalece por mais que quem está no poder queira ocultá-la e que devemos ocultá-la também na mentira em alguns momentos se quisermos viver e fazê-la viver como fez Galileu Galilei e ensinaram as Musas às quais deve inspirar ainda hoje em dia nosso canto de vida como fez Don Shirley não em qualquer Piano e bar confrontando os racistas de seu tempo e heterossexuais de seu tempo.


Piano Bar (Engenheiros do Hawaii

Refrão de Bolero (Engenheiros do Hawaii)

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