A velhice da filosofia
Estou velho. Já sou velho há bastante tempo, desde os 14 anos. Foi por me tornar velho muito cedo que resolvi ser filósofo. É o que resta para quem é velho, pensar na vida, o que faz o filósofo ou aqueles que muito cedo começam a envelhecer. Toda filosofia, ademais, por mais atual que seja, hoje ou daqui a milênios, é sempre velha, antiga em sua arkhé.
Não por acaso a questão o que é a filosofia? é colocada na velhice como disseram Deleuze e Guattari, pois é na velhice que aparece a questão da vida, a mais importante da filosofia, a primeira e a última, vida que foi a última questão colocada e respondida por Deleuze em seu último texto, Imanência, uma vida... E se aparece neste texto é porque, por mais que a questão do que é a filosofia já tivesse se colocada por ele juntamente com Guattari em O que é a filosofia? e sido respondida há muito tempo por eles, não havia a imanência da vida propriamente dita apenas uma ideia ou conceito dela. Um amor pela vida de modo platônico sem a vida mesma, um amor adolescente quando se tem o primeiro encontro e pensa que é o último, isto é, para sempre, e pensa-se que já se sabe o que é o amor, o que é amar. Como dizem Deleuze e Guattari (1992, p. 9): "TÃnhamos muita vontade de fazer filosofia, não nos perguntávamos o que ela era, salvo por exercÃcio de estilo; não tÃnhamos atingido este ponto de não-estilo em que se pode dizer enfim: mas o que é isso que fiz toda a minha vida?"
Foi só no fim da vida que, segundo eles, também Kant alcançou isto com sua CrÃtica do juÃzo, quando "todas as faculdades do espÃrito ultrapassaram seus limites, estes mesmo limites que Kant tinha fixado tão cuidadosamente em seus livros de maturidade." (DELEUZE E GUATTARI, 1992, p. 10) Também Platão, podemos dizer, ainda que de maneira espúria, fez isto quando resolveu pensar na sua vida numa série de Cartas estabelecendo um diálogo totalmente diferente do que fizeram antes tornando-se ele me mesmo seu personagem conceitual em vez de Sócrates, mesmo que já tivesse definido muito cedo o que é a filosofia notadamente em Fédon no qual diz que ela é uma preparação para a morte. Todavia, em seus diálogos socráticos ão havia a vida de Platão mesmo, pois era Sócrates que ele buscava reviver depois de morto até que não pôde mais fazer isto e teve que começar a escrever por si mesmo, falar por si próprio, filosofar por si mesmo e não mais pela boca de outros, enfim, pensar na sua própria vida. Pois é o que se aprende quando se envelhece, a não repetir tudo o que os outros dizem a não ser para fazer rir, ironizar a fala do outro como um velho rabugento, sem se preocupar com o que os outros vão dizer, como Sócrates fazia e Platão, jovem, quis também fazer, mas não era o seu estilo.
E foi senão já velho que Sócrates começou a filosofar, e mais seriamente na véspera de morrer, quando fora julgado e condenado à morte e teve que defender sua liberdade e sua vida. Sócrates já filosofava antes, mas, como ele mesmo disse na Apologia de Platão, não gostava de fazer discursos e consequentemente defender opiniões como faziam os sofistas ou Ideias como fazem os filósofos desde Platão. Sócrates não era retórico e tão pouco polÃtico, ou ainda filósofo no sentido platônico, pois sua missão era falar sobre o que dizia respeito à vida em sua justiça, beleza, verdade, piedade, coragem imanente, tudo aquilo que Platão resolveu falar em si mesmo a partir de si mesmo como uma ideia em si mesma e para si mesmo de modo transcendente. Não era com isso em si mesmo que Sócrates se importava como filósofo, mas com a vida, pois nenhuma virtude tem importância se não se referir à ela, isto é, nenhuma ideia de virtude em si mesma importa se a a vida não for virtuosa.
Platão era muito jovem quando conheceu Sócrates e seu amor platônico por ele o fez por muito tempo esquecer isto. Algo natural, pois os jovens não prestam atenção nos velhos, não querem saber o que eles dizem e na época de Platão os velhos já eram bastante antigos, muito antigos em seu saber poético homérico de milênios. O problema de Platão com os sofistas talvez fosse isso, o fato deles quererem resgatar saberes tão antigos como se fosse uma sabedoria nova, a deles mesmos, para parecerem sábios. Como todo jovem, Platão queria algo novo e Sócrates, mesmo velho, trazia uma sabedoria nova, uma juventude no modo de falar, do contrário não teria tantos jovens como Platão que quisessem escutá-lo e serem velhos como ele ainda tão cedo em sua juventude.
Talvez essa seja, ademais, a maior perversão que fizera Sócrates ter sido condenado à morte: levar a juventude a querer ser velha, perverter a natureza deste modo. Mas também disso ele não teria culpa, pois tal perversão é impossÃvel já que um jovem nunca vai ser velho imitando um velho. A velhice não se imita, assim como a juventude quando velhos querem ser jovens. O tempo tem seu próprio tempo e não se pode apressá-lo nem retardá-lo e a vida segue inteiramente seu ritmo jazzÃstico. Se a velhice dá uma juventude não é a de uma "eterna juventude" em seu corpo e modo de agir, mas, como dizem Deleuze e Guattari (1992, p. 9) a de uma "soberana liberdade, uma necessidade puro em que se desfruta de um momento de graça entre a vida e a morte, e em que todas as peças da máquina se combinam para enviar ao porvir um traço que atravesse eras".
Se a filosofia aparece deste modo como um pássaro de Minerva com os olhos voltados para o passado, é apenas uma impressão produzida pela dialética platônica em sua reminiscência antes de ser hegeliana. Pelo contrário, a imagem do pensamento da filosofia neste caso seria mais propriamente a do anjo da história descrito por Benjamin a partir do Angelus Novus, de Paul Klee, como as duas faces de Jano, uma voltada para o passado e a outra para o futuro, tendo em vista enviar ao porvir um traço que atravesse eras, como faz o filósofo, mas também os artistas segundo Deleuze e Guattari.
É com o tempo que nos tornamos velhos e portanto, filósofos, adquirimos esta soberana liberdade para filosofar, ou ainda, para sermos quem somos em nossa vida. É quando a vida é como queremos que seja e somos livres para decidir como vamos ser que nos tornamos velhos, logo, filósofos. Ser quem somos é a maior dificuldade em nossa vida e a maior liberdade que conseguimos nela, pois muitas coisas durante nossa vida nos impedem de sermos quem somos. Quando crianças, são os pais. Quando jovens, a escola. Quando adultos o trabalho, a famÃlia, os filhos. Quando estamos velhos, o corpo. São raros os momentos em que somos quem queremos ser, pois em todos estes momentos, por mais que sejamos nós em cada um deles, somos mais para os outros do que para nós mesmos, somos um indivÃduo em sua multiplicidade de obrigações e não um indivÃduo em sua univocidade de ser, quando todas as peças da máquina se combinam.
Por mais natural que seja a vida, não é de modo natural que ela é para nós neste sentido, isto é, como um movimento a produzir uma alteração num corpo. Se a vida fosse o movimento de um corpo em alteração, ela seria uma pedra rolando do alto de uma montanha, deteriorando-se até se fazer em pedaços quando chegasse ao chão e formar, com o tempo, um novo sedimento rochoso. Sócrates sabia que isto não resume o viver e começou a questionar a todos em sua vida por conta disso, pois se a vida se altera, modifica-se, não é deste modo. Não é pelo movimento, mas com o tempo. A vida é ser no tempo como pensou, de certo modo Heidegger, mas não é uma presença do ser tal como é ao pensamento ou deve ser segundo o pensamento que pudesse ser imitada por outro e tornada presente tal como ele pensava como alemão a partir dos gregos. Nenhum alemão consegue imitar um grego, assim como nenhum jovem poderia imitar Sócrates, e se os cidadãos atenienses pensassem melhor em quem foi Sócrates em toda sua vida não o teriam julgado por perverter a juventude neste sentido. Pois algum dos jovens seria virtuoso o bastante para salvar AlcibÃades? Algum deles beberia tal como Sócrates? Falaria tal como ele? Questionaria tal como ele? Seria tão irônico tal como ele? Pensaria tal como ele a vida?
Não se pode imitar a vida. A vida não pode ser imitada. Qualquer imitação da vida é literalmente uma aparência. A vida é inimitável, uma essência. Não se trata, todavia, aqui de uma recusa à imitação ou negação dela, ou mesmo uma exclusão da possibilidade de imitação da vida de modo artÃstico, por exemplo. Trata-se de uma limitação da própria vida, que ela impõe ao não poder ser vivida duas vezes, não poder ser repetida de modo idêntico, a não ser de modo diferente, mesmo que se queira viver tudo que foi vivido novamente num eterno retorno, isto é, na crença que de que há outra vida para além da que vivemos, transcendente, e que apesar de outra seria a mesma que vivemos porque assim a queremos repetir mais e mais eternamente. A vida, porém, não é um jogo de crianças que morrem e nascem de novo com uma nova vida ou um jogo moral em que se morre e renasce novamente até ser bom, ou ainda o jogo do artista fazendo e desfazendo sua arte até se tornar perfeita.
Se a vida se repete de algum modo, ou se deseja repeti-la tal como é eternamente retornando a fazer tudo que se fez nela segundo Nietzsche, é porque não foi perfeita e boa, segundo a arte e a moral, e se se repete perde todo seu sentido, já que foi perfeita e boa, e não há menor necessidade de repetição neste sentido, pois ela basta em si mesma. Qualquer forma de pensar uma repetição da vida, como a mesma ou como outra, é não viver a vida em sua imanência, apenas sua transcendência, como uma Ideia que se rememora ou a qual se retorna em pensamento sem a ter vivido realmente. Não se pode repetir a vida, porque a vida não é algo com o qual se joga como demonstrou Edgar Allan Poe em seu conto Não aposte a cabeça com o diabo. Pois toda vez que se joga com a vida, ela é jogada fora, pois isto é próprio do jogo, jogar fora a vida, ainda mais hoje com os jogos virtuais em que morrer e renascer com uma nova vida é uma diversão. Nada disso tem relação com a vida já que ninguém quer jogar fora ela mesma ainda que a jogue fora com os jogos sem perceber, apesar de que pode querer jogar sua vida fora por já não ter mais importância e se ter vivido bastante como disse Sócrates após ser condenado à morte.
Ninguém joga fora algo importante para si e a expressão jogar a vida fora entendida como se desfazer da vida é algo que mesmo que se queira não é possÃvel fazer, pois a vida em jogo ainda é uma vida em toda sua imanência, jogando consigo mesmo, vivida até o limite de si, o que não acontece na juventude ou num jogo por diversão, somente quando se é velho e por isso a vida não pode ser imitada. Como se joga fora uma vida quando é jovem e não se viveu quase nada ainda? O jovem não tem nenhuma vida para jogar fora, apenas a possibilidade de uma, uma vida virtual como em seus jogos. Do mesmo modo que um feto não tem uma vida, a não ser a possibilidade de uma e o aborto ser o aborto de uma vida possÃvel e não de uma vida vivida de fato, nem mesmo naturalmente em todas as suas fases naturais e todas suas angústias com elas. Não se vive apenas por ter um corpo, pois a vida é muito mais do que ter algumas sensações, do contrário, ninguém sentiria vontade de morrer, de cometer eutanásia, ou choraria pela morte de um animal. O animal também não é apenas um corpo, mas algo dotado de ânima, esta outra palavra para vida advinda do grego, que diz respeito tanto ao movimento da vida como ao afeto que este movimento causa no corpo em si mesmo e o transborda para além de si mesmo, o que é neste transbordamento do corpo pelo ânimo, ou alma propriamente que há a vida em sua soberana liberdade como um momento de graça entre a vida e a morte ou em sua separação do corpo, depois da morte.
A vida é muito mais do que os jovens fazem e pensam e muito mais do que adultos pensam e fazem ao querer dizer o que jovens devem fazer e pensar. É preciso ser velho para entender que a vida não é o que não é o jovens e adultos fazem e pensar, menos por falta de saber, do que por falta de velhice para saber. Não se pode pensar a vida sem a vida mesma para ser pensada e querer pensar a vida sem viver e a dos outros sem vivê-la é o que de pior se pode fazer em relação à vida querendo que ela seja tal qual se tem ou se pensa que deve ter, pois, lembremos, a vida não pode ser imitada nem pelo pensamento nem por outra pessoa, apenas vivida.
Quem quer viver a vida pelos outros, quem quer viver a vida dos outros, o máximo que consegue é não viver a sua própria vida até que ela aparece para si em sua velhice por si mesma como aquilo que não viveu. É quando chega a velhice que a vida chega em si mesma, sem antecipação nem retardo pelo pensamento. É quando a vida em sua imanência se torna transcendente ou transcendental, isto é, em si mesma, quando é vivida e pensada ao mesmo tempo no tempo, o que acontece no corpo é sentido na alma profundamente, as peças da máquina se combinam. Pois o que acontece com o corpo quando é jovem não é uma preocupação e quando é adulto é uma preocupação demais por se estar ficando velho sem querer. Em contrapartida a isto, na velhice, é o momento em que nos preocupamos com o corpo a cada momento dele, a cada alteração, pois cada alteração é uma alteração do tempo, a percepção de que está velho, não se é jovem ou adulto para continuar fazendo as mesmas coisas, jogando a vida fora em seu pensamento, a não ser no sentido de levá-la ao limite.
É na velhice, por fim, que jogar a vida fora não é um prazer, mas um motivo para viver mais e melhor, com mais potência de vida, quando o jogo deixa de ser um jogo de vida e morte com a vida em risco para ser um jogo de vida apenas, em que tudo o que importa é viver. É o que importava para Sócrates no seu julgamento, era o que importava para Platão em suas Cartas, era o que importava para Deleuze e Guattari mesmo que tenham elevado a potência de suas vidas para além dos limites dela mesma. Foi o que Spinoza fez durante toda sua vida de beatitude e o que todo filósofo faz inevitavelmente quando se torna velho em qualquer época de sua vida, pois a velhice não é uma deterioração do corpo em seu movimento até a imobilidade da morte como a pedra que rola da montanha até o chão. A velhice é este conhecer aos poucos o que é a vida regredindo até a infância dela como no conto de F. Scott Fitzerald, O curioso caso de Benjamin Button, quando cada dificuldade dela é superada até que não há mais nenhuma em seu caminho e ela se torna livre em relação a tudo, inclusive, no pensar na vida, e o que existe é a pura alegria de viver que nenhuma tristeza tira, pois é logo esquecida.
Ser velho, todavia, não é ser criança novamente. É saber que um dia foi criança e não precisava se preocupar com a vida, apenas vivê-la, até o tempo cobrar sua dÃvida com a vida depois de ter se concedido a ela. Ser velho é agradecer o tempo por sua vida sem querer vivê-la novamente eternamente tal qual foi nem tão pouco se lamentar pelo que não foi, não ter vivido nela. Foi o que Sócrates quis dizer aos seus discÃpulos em Fédon em seu último dia de vida filosofando pela última vez ao dizer que já tinha vivido bastante para saber o que era a vida, que ela tinha chegado ao seu limite, ainda que não definido pela própria natureza, pois a natureza não é o limite mesmo da vida, nunca foi, nunca será. Pelo contrário, ela é o que nos faz viver, assim como a filosofia é o que nos faz viver virtuosamente como pressupunha o Sócrates platônico já que viver virtuosamente é viver a própria vida e por isto ela não pode ser ensinada como pressupunham os sofistas.
Se a virtude do bem viver, esta que Sócrates que descobriu e exortava a todos a viver não pode ser ensinada, não é porque não se possa ensinar qualquer conhecimento sobre a vida enquanto Ideia, é porque não se pode ensinar a viver. É preciso viver para saber o que é a vida e cada vida é diferente da outra por ser vivida em sua soberana liberdade diferente em si mesma de outras por natureza e por pensamento em si mesma. O que os sofistas ensinavam era apenas uma imitação da vida, uma aparência dela que pode ser identificada e repetida por outros sem que seja a sua vida mesma e se Platão se parece com um sofistas jogando com opiniões contrárias em seus diálogos, mesmo que busque imitar a vida de Sócrates, ele viveu a partir de Sócrates sua própria vida diferente em si mesma, motivo pelo qual foi filósofo porque virtuoso tanto quanto o mestre ao viver sua própria vida.
Viver a própria vida em sua virtude foi o que aprendi ao ser velho aos 14 anos, mas somente agora que estou velho consigo compreender, ou quase, quem sabe, pois ainda há muito tempo o que viver e pensar na vida em minha velhice que se inicia, assim como minha filosofia da vida em sua arkhé, minha arkhephylosophia.
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