Para além da Matrix


The Matrix Revolutions (2003), o último filme da trilogia Matrix criada pelas irmãs Lilly e Lana Wachowski foi decepcionante para a maioria dos cultuadores de The Matrix (1999), primeiro filme da trilogia, mas não mais decepcionante do que The Matrix Reloaded (2003) que deixa no limbo ainda muitos daqueles que cultuam o primeiro filme que, em 2019, completa 20 de o seu lançamento.

O motivo da decepção parece simples: sai de cena a épica luta do bem contra o mal do primeiro filme, na qual o hacker Neo Anderson luta contra o desconhecido sistema chamado Matrix, e entra em cena a aliança de Neo com o sistema para salvar os humanos puros de Zion, última cidade não dominada pelas máquinas da Matrix, no caso, salvá-los de mais uma vez serem destruídos pelas máquinas do sistema. Mas também salvar a própria Matrix de ser destruída por um dos seus agentes, Smith que defendia a Matrix contra Neo Anderson no primeiro filme, mas foi libertado por Neo e agora seu único propósito é destruir Neo, e se destruí-lo, destruirá também Zion, bem como a possibilidade da Matrix ser reconstruída e, assim, destruindo-a, de modo que se Neo é escolhido no primeiro filme é porque ele é senão o único que pode deter Smith e tudo isto. Donde a certeza de uma luta contra a Matrix que Neo adquire no primeiro filme, e dos antissistema numa nova épica, se desvanece na dúvida de um jogo de xadrez em que é preciso Neo fazer parte da Matrix, aliar-se ao Arquiteto dela e lutar contra Smith em defesa da Matrix para poder salvar os humanos de Zion cumprindo-se a profecia da Oráculo defendida por Morpheus e Trinity de que Neo era o Escolhido.

Passados quase 20 anos desde o lançamento de The Matrix, entende-se porque foi um marco no cinema por ter introduzido não apenas as tecnologias da computação como a nova forma de se fazer cinema, mas por introduzir uma análise tão filosófica em um filme aparentemente não filosófico, por ser um filme de ação. Um filme que até hoje suscita dúvidas profetizadas por Neo no final dele ao ligar para Matrix, ou para nós, e que fazem parte dos outros filmes, mas não são percebidas ou valorizadas pela maioria dos seus cultuadores que deploram a continuação de The Matrix numa trilogia, mesmo que ela tenha sido pensada desde o início pelas irmãs Wachowski e a continuação não ser uma tentativa de muitos estúdios que apostam em continuações para um filme que deu certo apenas para lucrarem mais continuando uma história que era apenas de um filme. Ao pensarem uma trilogia desde o início, Matrix também introduziu a criação de trilogias no cinema, como a de O Senhor dos Anéis, de Peter Jackson,  que faz o percurso contrário indo da dúvida de uma luta e alianças criadas num jogo de xadrez no primeiro filme, A sociedade do anel (2001), para a luta épica de O Retorno do Rei (2003), luta preparada por batalhas diversas em As duas Torres, porém, uma trilogia não cinematográfica propriamente apesar da revolução que causou também no cinema, pois adveio da literatura e Matrix é totalmente pensada a partir do cinema e como filme sem precedentes.

Ao nos determos brevemente nesta análise inicial de Matrix, percebe-se tanto a grandiosidade da trilogia de um modo geral, como o motivo da decepção com a continuação do primeiro filme. Isto porque o primeiro filme, apesar de filosófico, foi um filme feito para amantes dos filmes de ação e de luta desde os filmes de faroeste americano, ou mesmo amantes de filmes de ação que foram criados a partir destes filmes. Posteriormente, que cresceram com os filmes de ação e luta de policiais e bandidos nas cidades urbanizadas americanas em o forasteiro da cidade se torna o assaltante, o traficante, o mafioso, difícil de ser pego, mas, no fim, sendo preso. Filmes de ação e luta nos quais em seguida o bandido deu lugar a extraterrestres a querer dominar o planeta estadunidense defendido agora não mais por xerifes e policiais, mas pelo exército americano. Filmes de ação e luta em que as máquinas, robôs ou clones produzidos pela tecnologia se tornaram os grandes forasteiros, bandidos e extraterrestres muitas vezes, as quais foram substituídas atualmente pelos terroristas, quiçá, comunistas.

Se Matrix é uma trilogia sem precedentes não é porque a sua história é totalmente original, mas porque toda a ação e luta destes filmes ganham uma amplitude épica e filosófica em Matrix como um filme de ação e luta contra o sistema representado nestes filmes, qualquer que ele seja, e por seus telespectadores do lado de quem não faz parte dele, de quem resiste a ele, mas cuja resistência foi transformada em forasteira, bandidagem, extraterrena, maquínica, terrorista, comunista. Em contrapartida, não se ver mais o sistema como tão bom o quanto se pensava em sua defesa da lei, da ordem e segurança individual e nacional, por ações militares que destroem toda uma cidade e matam milhares de pessoas, mas para defender a todos de um inimigo comum. Se pensarmos neste sentido, a decepção com a continuação de The Matrix não está no fato de que os outros filmes perdem em ação e luta, ou de um motivo para lutar, como gostam os amantes de filmes deste tipo, pois, em The Matrix Reloaded, a guerra infinita de Neo contra os simulacros de Smith e de Neo, Trinity e Morpheus contra os gêmeos fantasmas de Merovingian é de fazer perder o fôlego a qualquer amante de filme de ação e lutas marciais de tão impressionante e duradoura, com cenas de perseguição e destruições urbanas épicas ainda hoje no cinema. Bem como também são épicas e de perder o fôlego, em The Matrix Revolutions, as cenas de ação e luta dos humanos em Zion contras as máquinas a invadir a cidade em que o Capitão Mifune representa toda a emoção de uma batalha, sem esquecer a luta mitológica e cósmica de Neo contra Smith que arrepiam ainda hoje qualquer um que goste de ação, batalhas, lutas e guerras, e tudo que as motiva, não em defesa de uma lei, ordem, segurança individual ou nacional, mas contra qualquer tipo de opressão e destruição dos seres humanos.

Não foi nada disso o problema das continuações de The Matrix, devemos dizer, mas a amplitude e complexidade que as ações e lutas adquiriram, bem como seus motivos, o que os amantes de filmes assim não esperavam, como não esperam esperam os convocados para uma guerra, pensando que ela vai acabar assim que eles chegarem. Mais ainda, uma amplitude complexidade que faz a ação e a luta mesmo perderem o sentido contra a Matrix na medida em que o sistema não era o único a se opor como em The Matrix. É por serem as sequências da trilogia Matrix muito mais complexas em ação e luta e filosoficamente no pensamento sobre isto do que as pessoas pensavam que elas são mal vistas, ou mesmo denegadas, todavia, Neo advertiu quanto a isto de modo profético como o Escolhido ao dizer para todos que fazem parte da Matrix no fim de The Matrix, desconstruindo também a quarta parede cinematográfica:
Sei que você está aí. Eu sinto você agora. Sei que está com medo. Está com medo de nós. Está com medo das mudanças. Eu não conheço o futuro. Eu não vim aqui te dizer como isso vai acabar. Eu vim aqui te dizer como isso vai começar. Vou desligar este telefone. E vou mostrar a estas pessoas o que não quer que elas vejam. Vou mostrar a elas um mundo sem você. Um mundo sem regras e controle, sem limites e fronteiras. Um mundo onde tudo é possível. Para onde vamos daqui é uma escolha que deixo para você.
O fato de Matrix retomar lutas antigas de humanos contra terroristas, máquinas, extraterrestres, bandidos e forasteiros, mas do ponto de vistas destes numa luta agora contra o sistema, ou ainda, que retome a antiga luta entre a inteligibilidade ou essência das Ideias e da razão da alma contra a sensibilidade ou aparências dos sensações e sentidos do corpo desde Platão faz com que muitos pensem que a trilogia Matrix desde o primeiro filme se resume à eterna luta do bem contra o mal motivada pelo etnocentrismo e logocentrismo humano, por mais que Matrix não deixe de engrandecer esta perspectiva sobremaneira. Até se poderia pensar nisso se as irmãs Wachowski não fossem filósofas, isto é, não tivessem lido Platão, Descartes e, principalmente, Baudrilard com sua teoria em Simulacros e Simulação de modo que se no filme há uma referência direta ao etnocentrismo e logocentrismo de toda uma luta maniqueísta do bem contra o mal, em que o mal é o sistema agora, tal referência denuncia senão aquilo este etnocentrismo e logocentrismo mais do que são defendidos enquanto perspectiva humana e filosófica. Neste caso, entendendo-se aqui que o etnocentrismo é a defesa de uma cultura humana por meio da violência em relação a tudo que é considerado estranho, estrangeiro, não humano e o logocentrismo o que motiva este etnocentrismo a partir da defesa violenta, por seres humanos, de uma verdade (alethéia) em seu sentido a partir de um pensamento lógico discursivo (logos)  numa fala (phoné) em relação à verdade defendida em seu sentido e pensamento lógico numa fala por outros considerados senão estranhos, estrangeiros, não humanos, em ambos os casos, o etnocentrismo e logocentrismo excluindo qualquer diferença em relação ao ser humano pressuposto a partir de uma identidade étnica e lógica.

Para se entender a complexidade que a trilogia Matrix alcança em sua análise filosófica da realidade vista a partir do sistema chamado Matrix, na qual se inclui o virtual computacional e cinematográfico, deste ponto de vista etnocêntrico e logocêntrico, basta pensarmos que as irmãs Wachowski eram irmãos Wachowski e que estes, ao mudarem de sexo, são como o Neo Anderson e não mais o Thomas A. Anderson. Todavia, o Neo ou novo, neste caso, não é mais o novo moderno oposto ao antigo numa dialética como método etnocêntrico e logocêntrico das identidades contra as diferenças, mas um novo que é a desconstrução das identidades em diferenças na qual o moderno e antigo não mais se opõem, posto que são vistos em diferença. Neste sentido, se o Neo Anderson é o Escolhido é por ser humano e máquina, um humanóide, e, como o/a personagem, as irmãs Wachowskise tornaram-se homem e mulher, ambos desconstruindo suas identidades em algo novo que é sem você, isto é, sem o sujeito dotado de uma identidade étnica cultural e lógica que impõe regras e controles, fronteiras e limites, em que nada é possível ou tudo que é possível é tornado impossível por contra a sua identidade, diferir dele, ser diferente em relação a ele.

Ao tomar assim em revista a trilogia Matrix, pode-se perceber como ela é o filme mais filosófico de todos os tempos no cinema, ou ainda, como ela tornou um filme cinematográfico numa teoria filosófica sobre a realidade inserindo na tela virtual o que se coloca em questão na realidade atual que são as questões culturais e filosóficas em relação às identidades e diferenças, pouco discutidas quando foi lançado o primeiro filme da trilogia. Obviamente, isto vai além do que cinéfilos querem ver no cinema e diz respeito mais aos amantes do saber, os filósofos, do que a eles, o que isto tão pouco é um demérito quanto à compreensão do filme dos cinéfilos por não perceberem as questões filosóficas colocadas aqui, pois não se trata de opor a filosofia a uma cinefilia, ou ainda, a um senso comum amante de Matrix. Muito pelo contrário, é uma expansão da compreensão da filosofia em relação a uma cinefilia e senso comum no sentido de que a filosofia é uma ampliação do conhecimento que se pode ter e não uma oposição ao conhecimento que se tem comumente segundo regras e controles, fronteiras e limites e impossibilidades de se pensar diferente, neste caso, os filmes, conhecimento comum que é muitas vezes o de um sujeito em sua cultura que impede ir além no sentido de um conhecimento.

Se atualmente se coloca cada vez mais em questão o senso comum ao ponto de se retomar a ação e luta entre a filosofia, bem como a ciência e a arte, contra o seu conhecimento cultural e subjetivo, isto se deve ao fato senão de que indivíduos em sua cultura e lógica permanecem ou retomam a perspectiva moderna de oposição, agora não mais contra o que era antigo, no caso, a Idade Média, e, sim, contra o que é novo em relação à modernidade, ou seja, o que é pós-moderno, entendido aqui neste caso como um ir além da oposição e luta dialética a partir da qual os indivíduos e culturas sobrevivem na modernidade e sem as quais deixa de fazer sentido sua existência étnica cultural etnocêntrica, bem como, o que a sustenta, a verdade de seu pensamento lógico e fala logocêntrica ao pensar em si mesmo como eu cultural e idêntico que deve se opôr a tudo que difere de sua identidade cultural e individual.

No que diz respeito a isto é interessante como de The Matrix para The Matrix Revolutions, podemos perceber que as lutas e oposições dialéticas entre humanos e máquinas que surgem com a modernidade são desconstruídas pouco a pouco com o desenvolvimento da tecnologia da computação  e as regras, fronteiras, limites impostos de modo etnocêntrico e logocêntrico deixam de existir. Assim é que os aspectos culturais dos seres humanos puros na cidade de Zion estão no interior das máquinas e estas estão no interior de novos seres humanos, humanóides como Neo, humanos e máquinas ao mesmo tempo, "libertos" como ele e por ele, depois de terem sido criados pelas máquinas para serem suas fontes de energias, já que o corpo humano detêm a energia de que as máquinas precisam para se manterem funcionando. The Matrix conserva ainda aspectos de uma modernidade em seu renascimento e apogeu cultural e individual com a luta dos seres humanos contras as máquinas que culmina com os proletários contra capitalistas donos delas, e arquitetos do sistema em que as coisas dominam a realidade. Todavia, as revoluções que acontecem na modernidade atualmente para além da revolução copernicana de Galileu e seu telescópio e da revolução industrial com o surgimento da tecnologia da computação, são revoluções culturais e individuais contra a modernidade enquanto sistema racista, machista, homofóbico e fascista, no caso deste último, uma política de oposição e luta contra minorias culturais e individuais em geral. Revoluções que já estavam presentes desde o início da modernidade, mas que foram apagadas pela luta pela sobrevivência dos seres humanos em relação às máquinas e a defesa capitalista delas a partir de uma perspectiva econômica política de lucro e riqueza cultural e individual das nações em detrimento da existência do ser humano em multiplicidade e da valorização dele em sua diferença.

Pode-se entender a partir de Matrix porque os modernos retomam perspectivas antigas atualmente em oposição ao que se coloca de modo pós-moderno na medida em que seres humanos em defesa de sua multiplicidade cultural e diferença individual buscam ir além seja da perspectiva do indivíduo em sua identidade cultural e subjetiva, seja dele em sua perspectiva econômica política de lucro e riqueza numa nação. Isto porque, além disso, atualmente este ser humano múltiplo e diferente se tornou o inimigo comum do ser humano moderno machista, racista, homofóbico em sua identidade cultural etnocêntrica e individual logocêntrica, cada vez mais fascista na sociedade capitalista atual. Um inimigo ainda não mais perigoso quando tem a consciência dos proletários e comunistas que ainda servem como modelo do ser humano em sua multiplicidade e diferença, pois os trabalhadores são aqueles que buscam algo comum e uma riqueza coletiva e, por isto, diferem do capitalista em sua identidade cultural e individual voltada para o lucro e a riqueza individual numa nação, e desta cultural e individualmente. Todavia, neste caso não é mais Marx o modelo de pensamento que vigora atualmente numa pós-modernidade, apesar que ainda ser parte dele, e, sim, Rousseau, no sentido de que é a perda de uma humanidade do ser humano em sua vida comum num estado de natureza que coloca em questão a sociedade capitalista atual na medida em que o ser humano ao sair do seu estado de natureza selvagem como bom e tranquilo e entrar no estado político em sociedade com outros seres humanos, isto é, por contrato social, a saber, o contrato de trabalho na sociedade capitalista, este ser humano se torna um indivíduo político com outros indivíduos e perde, ou limita enquanto cidadão civilizado a bondade e tranquilidade do ser humano enquanto selvagem numa vida comum sem necessidade de uma identidade cultural e individual e tão pouco lucro e riqueza numa nação ou de uma nação cultural e individualmente.

Porém, se Rousseau descreveu a passagem do ser humano bom e tranquilo num estado de natureza selvagem em sua vida comunitária e individual para um estado político no qual ele se torna mau e intranquilo numa vida em sociedade, no caso, como um indivíduo trabalhador na sociedade capitalista e como cidadão de um Estado político, Hobbes antes de Rousseau antecipa como é a vida do indivíduo trabalhador na sociedade capitalista e cidadão de um Estado político nos quais ele se insere a partir de então como um ser humano mau e intranquilo numa guerra de todos contra todos. Neste caso, o ser humano que era bom e tranquilo no estado de natureza enquanto selvagem segundo Rousseau, deixa de ser bom e tranquilo e passa a ser selvagem agora de outro modo, no caso, em sua civilidade no estado de natureza da própria sociedade econômica capitalista e do Estado político moderno em seu liberalismo econômico político, bem como filosófico, científico e cultural, estado de natureza ao qual Hobbes se opõem e busca impor limites a partir de um estado político absolutista e civilizador contra toda e qualquer perspectiva do indivíduo selvagem capitalista sua cultura liberal individualista.

Neo é, deste modo, o indivíduo selvagem preconizado por Rousseau como bom e tranquilo, todavia, se torna um selvagem capitalista quando não se adéqua ao sistema imposto pela sociedade econômica capitalista da Matrix enquanto Estado político que domina os seres humanos tecnologicamente a partir das máquinas transformando-os em fontes de energia como antes eram as forças produtivas da sociedade capitalista. Diante da revolta de Neo contra o sistema, é que Smith se insurge, em primeiro lugar com parte do sistema contra o liberalismo de Neo, mas depois como representante da Matrix como sistema totalitário a se impor na Matrix na medida em que utiliza o sistema para conseguir o que quer individualmente. Smith, como Hobbes não aceita a liberdade, e pressupõe um poder absoluto na Matrix, pois ao ser liberto por Neo e viver uma vida, por assim dizer, liberal, ele perdeu sua identidade no sistema e, individualmente, a verdade em seu sentido, no caso, a partir de um pensamento lógico expresso, de modo magistral, em The Matrix Reloaded, no diálogo do Smith liberto com Neo, no qual também estão presentes os agentes do sistema que ele transforma em Smith em sua luta contra Neo Anderson, e que acontece antes de uma das batalhas mais impressionantes que o cinema já produziu:


Smith
- Sr. Anderson! Recebeu meu pacote?
Neo
- Sim.
Smith
- Que bom. Surpreso em me ver?
Neo
- Não.
Smith
- Então, tem consciência.
Neo
- Do quê?
Smith
- Da nossa ligação. Não entendo bem como aconteceu. Talvez uma parte de você inserida em mim, algo sobrescrito ou copiado. Agora, é irrelevante. O que importa é que o que aconteceu teve um motivo.
Neo
- E que motivo seria esse?
Smith
- Eu matei você, Sr Anderson. Vi você morrer... com uma certa satisfação, devo dizer. Aí, algo aconteceu, algo que eu sabia que era impossível... mas que aconteceu assim mesmo. Depois disso, eu sabia as regras, entendia o que deveria fazer... mas não fiz. Não consegui. Fui compelido a ficar... compelido a desobedecer. E agora aqui estou, por sua causa, Sr. Anderson. Por sua causa, não sou mais agente do sistema. Por sua causa, mudei, estou desconectado. Um novo homem, por assim dizer. Como você, aparentemente livre.Neo
-Parabéns.
Smith
-Obrigado. Mas, como você sabe, as aparências enganam... o que me traz de volta ao motivo de estarmos aqui. Não estamos aqui porque somos livres, mas porque não somos. Não há como fugir da razão, como negar o propósito, pois, como ambos sabemos, sem propósito, não existiríamos.

Smith 1
- Foi o propósito que nos criou.
Smith 2
-O propósito nos conecta.
Smith 3
- Ele nos impele.
Smith 4
-Nos guia.
Smith 5
-Nos motiva.
Smith 5
-O propósito nos define.
Smith 6
- O propósito nos une.
Smith
Nós estamos aqui por sua causa, Sr. Anderson, para tirar o que tentou tirar de nós. O propósito. (...) É inevitável.


Neo ter sobrevivido em The Matrix é o grande problema para Smith, assim como o selvagem sobreviver no ser humano como um indivíduo social e cidadão político liberal é o grande problema para Hobbes. Smith anseia por matar Neo que não apenas fugiu dele no início do filme, mas também fugiu da morte no fim do filme, como o selvagem fugiu do indivíduo na sociedade no início da modernidade e da morte como indivíduo moderno. Todavia, agora, a luta do bem contra o mal que houve em The Matrix entre Neo e Smith se amplifica em The Matrix Reloaded, pois assim como Neo, Smith também se libertou, e o selvagem cidadão liberal não é mais o bom e tranquilo selvagem rousseauniano no início da modernidade. Isto quer dizer que assim como o ser humano libertou o selvagem que havia em si no liberalismo econômico ao qual Hobbes opôs o seu Leviatã como Estado político absoluto, e deste modo, também emergiu o totalitarismo do século XX com o fascismo de Hitler em sua liberdade total de violência tal como o monstro bíblico pressuposto por Hobbes no século XVII, assim também Neo libertou o ser humano selvagem pelas tecnologias contra a Matrix, mas ao libertar Smith, o sistema também se libertou e tornou-se um Leviatã impondo-se de modo absoluto como todo o sistema de modo fascista. Neste sentido, Smith ao tornar todos do sistema idênticos a si tendo como único propósito a violência contra a diferença e morte de toda diferença se torna uma clara expressão do etnocentrismo e logocentrismo fascista, que já era o de Hobbes em não tolerar o liberalismo individualista e diferente que Neo representa, não mais como um liberal capitalista moderno com o qual se identificaria em The Matrix, mas um ser humano livre da oposição moderna na medida em que é ao mesmo tempo ser humano e máquina, o qual Smith não admite e não por menos busca evitar isto tornando Neo idêntico a si, assimilando-o, ou matando-o caso isto não seja possível.

Se Neo assume num primeiro momento as características de um ser humano liberal moderno em luta contra o sistema do qual ele mesmo faz parte como personagem principal da trilogia Matrix, todavia, ele não é um ser humano qualquer. Ele é o Escolhido para salvar ao mesmo tempo os humanos e as máquinas na medida em que é tanto humano como máquina e sente e entende tanto os humanos como as máquinas, faz parte e já não faz mais parte do sistema. Ambíguo, ele é o mais livre em poder para enfrentar o poder conservador de Smith a impor a destruição dos humanos e das máquinas em defsa do sistema em sua identidade cultural e individual totalitária. Ele é enquanto o Escolhido, ademais, o que centraliza o poder de humanos e máquinas e, deste modo, equilibra os poderes destas e daqueles e não deixa que se destruam em luta, no caso, a dos humanos contra o sistema de máquinas, ou não sejam destruídos pelo desequilíbrio produzido por Smith no sistema de máquinas no qual os seres humanos malgrado ainda vivem. Em outras palavras, Neo é o Escolhido porque é o único a poder equilibrar o sistema com o seu poder centralizador e canalizador as forças dos seres humanos e das máquinas contra o poder descentralizador e desequilibrador de Smith e suas simulacros que se opõe às diferenças de forças dos humanos e máquinas, ainda em oposição, mas que têm um problema em comum maior a ser resolvido.

Assim é que são duas as ações e lutas que seguem paralelamente na trilogia Matrix desde o início, mas são melhor percebidas na sequência de The Matrix: a luta dos humanos contra as máquinas do sistema da Matrix, com todas as características da sociedade econômica capitalista e política do Estado moderno na realidade, e a luta de Neo em sua diferença contra Smith em sua identidade, com todas as características das diferenças étnicas, raciais, sexuais, religiosas e de gênero que adquirem poder desde o século XX, principalmente, e às quais se opõem o poder e domínio das identidades étnicas, raciais, sexuais, religiosas e de gênero na sociedade capitalista e política de Estado moderno na realidade.

Neste sentido, se Neo enquanto o Escolhido ganha destaque na luta contra a Matrix que se torna fascista com Smith, tão pouco ele está só, e na trilogia pode-se perceber desde o início esta questão das lutas das diferenças contra as identidades no que diz respeito aos personagens Morpheus e Trinity, o primeiro do ponto de vista negro, ou afro-americano, a segunda do ponto de vista feminino, na medida em que têm um papel decisivo seja na luta contra o sistema que utiliza eles como fontes de energia, seja na perspectiva fascista do sistema com Smith que não tolera as minorias. Mais ainda, pode-se perceber esta questão das diferenças negra-afro-americana e feminina na Óraculo que encarna ambas as diferenças em oposição ao Arquiteto, um homem branco tradicional, inclusive, no que diz respeito às vestimentas. Bem como seu pensamento mítico e imprevisível como ser humano foge a lógica do ser humano lógico enquanto Arquiteto e que vence este, ademais, em seu próprio jogo. E para o desespero do sistema que também a quer destruir, assim como Neo, ela também renasce em The Matrix Revolutions depois que sofre as consequências por ter ajudado Morpheus, Trinity e, particularmente, Neo. Além de tudo isto, Zion é uma cidade em que todas os seres humanos em suas diferenças étnicas, raciais, sexuais, religiosas e de gênero coexistem de modo livre em relação à identidade que o sistema impõe como indivíduos criados para lhe servir como fonte de energia, ou ainda força produtiva na sociedade econômica capitalista e política de Estado moderno que, se não é fascista, é não menos destruidora das diferenças entre os seres humanos tornando-os indivíduos iguais como trabalhadores.

Em todas estas lutas modernas e pós-modernas que se fazem presentes no filme Matrix, além das questões envolvendo a questão tecnológica em que Neo é um hacker contra o sistema informático da sociedade econômica e Estado político capitalista, o que torna extremamente decepcionante a sequência de Matrix para aqueles que se empoderaram com Neo em The Matrix, em particular com sua fala no final do filme quebrando e não quebrando a quarta parede cinematográfica, é que não é possível se pensar ou ir para além da Matrix tão facilmente como eles imaginavam. É o que se pode perceber depois de todas as revoluções recarregadas em The Matrix Reloaded quando se percebe que a luta de Neo e dos humanos contra a Matrix já é bastante antiga e aconteceu diversas vezes até o momento do aparecimento de Neo como o Escolhido. Decepção maior ainda quando, em The Matrix Revolutions, percebe-se que tudo não passa de um jogo entre a Oráculo e o Arquiteto que são, dentro da perspectiva dos jogos, o imprevisível Acaso e o previsível Destino, ou ainda, a falha e o sistema que tenta suprimi-la, e se ela vence de certo modo isto não quer dizer que o sistema seja destruído por ela como se poderia desejar aqueles que são contra o sistema de modo radical. Um jogo, por fim, no qual Neo é o personagem com quem joga a Oráculo em toda sua imprevisibilidade e acaso e Smith o personagem com quem joga o Arquiteto em toda sua previsibilidade e destino, pois somente de modo aparente Smith se opõem ao sistema na medida em que foi criado pelo Arquiteto para defendê-lo assim como Neo foi criado para se opor a ele pela Oráculo.

Ao vencer a batalha épica contra Smith, a força mais poderosa do sistema produzido pelo Arquiteto contra suas falhas que fugira aparentemente do seu controle, Neo se torna o Escolhido definitivamente como Salvador dos seres humanos de Zion da destruição pelas máquinas do sistema, mas também aquele que vence o jogo pela Oráculo contra o Arquiteto. Contudo, a vitória de Neo é às custas de sua própria morte como ser humano e de sua integração ao sistema como uma extraordinária fonte de energia a qual ele se revela imprevisível e previsivelmente. Ao fazer isto, ele produz o equilíbrio necessário entre seres humanos e máquinas, mas também daqueles que jogam com ele e com os seres humanos, a Oráculo e o Arquiteto, que, em seu último diálogo no alvorecer após a guerra entre humanos e máquinas e batalha de Neo e Smith, deixam claro o jogo de vida e morte a que o Arquiteto submete os seres humanos impedindo que eles se libertem do sistema com a ajuda da Oráculo, bem como, o jogo que a sociedade econômica capitalista e política de Estado moderno em sua identidade submete os seres humanos em suas diferenças culturais e individuais enquanto cidadãos que não conseguem sair tão facilmente da sociedade econômica e do Estado político representados pela Matrix e que esperam muita vezes um Escolhido mítico para que os salve de toda a opressão que vivem cultural e individualmente por serem múltiplos e diferentes e haja uma mudança em suas vidas para viverem em paz.

Arquiteto
- Seu jogo foi muito perigoso.
Oráculo
- Toda mudança é.
Arquiteto
- Quanto tempo acha que essa paz vai durar?
Oráculo
- O tempo que for possível. E os outros?
Arquiteto
- Que outros?
Oráculo
- Os que querem sair.
Arquiteto
- Obviamente, serão libertados.
Oráculo
- Tenho a sua palavra?
Arquiteto
O que acha que eu sou? Humano?

Por fim, pode-se dizer ainda metafisicamente que, mesmo sendo representados como seres humanos, a Oráculo e o Arquiteto, não são humanos, tão pouco máquinas. São representações sobre-humanas, forças divinas, uma mítica e dionisíaca, a outra religiosa e apolínea, mas também forças naturais na medida em que a Oráculo é uma representação da Terra em sua força prodigiosa terrível e o Arquiteto é o Céu em sua força desejante celestial. O que Neo, neste caso, em relação a estas forças divinas naturais, é o Sol como aquele que brilha no Céu e na Terra, que resplandece em sua força extraordinária como fonte de energia e força produtiva de tudo que existe em sua identidade celestial, mas também de toda mudança e diferenças terrenas tal como o Sol criado pela garotinha Sati para Neo ao fim de The Matrix Revolutions.

Sol que em seu eterno retorno é o que se repete de novo de modo diferente a cada dia e que a cada retorno seu visto de modo diferente é possível ir para além da Matrix, para além da sociedade econômica capitalista e a política de Estado moderno, o que, como prenuncia a Oráculo, é possível ser visto como Neo, algum dia.



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