Como nascem os gênios


Como nascem os livros? Não sabemos. As palavras simplesmente surgem em nossa frente e as vamos seguindo como seguimos a vida sem saber para onde vamos, onde vamos parar, quando vai ser o ponto final. À cada palavra escrita vamos conhecendo um pouco do caminho, talvez um pouco de onde surgiram, mas elas seguem como um rio, sempre para frente, nunca voltando à fonte das quais vieram, da cabeça de um gênio.

Livros nascem de diversos modos. De dores, de alegrias, de tristezas infindas, de um momento de esperança com o que virá sem se saber o que esperar. São sentimentos, razões, crenças, tudo de que se faz um ser humano além das palavras, mas que somente as palavras conseguem expressar ou talvez não. Pois ao serem escritas as palavras ganham uma vida que o gênio nunca imaginasse, significados escondidos em significantes que ele despertara sem ao menos saber e tão pouco têm relação com  que pensava. Os gênios não sabem de tudo ao contrário do que as pessoas pensam, por isso são gênios.

Foram os românticos alemães os primeiros a perceberem que existe uma genialidade no ser humano, uma raiz profunda que retira da terra a seiva para folhas e frutos que nenhuma outra planta produz. Cada árvore é um gênio a fazer da seiva um fruto saboroso que um ser humano aprecia e pode até reproduzir quantos queira, mas nunca terá produzido um só como a planta. Assim também livros e mais livros são produzidos de uma seiva bruta que há em cada ser humano, mas apenas alguns conseguem fazer dela arvores com folhas e frutos de genialidade.

Quando um escritor consegue escrever algo é como uma planta em cada estação a brotar apenas uma vez depois de um ano de espera na agonia do outono, no desespero do inverno, numa breve alegria de primavera e ou no fervilhar do verão, quando brotam as palavras desejantes de serem expressas com o calor do momento. O momento breve de um relâmpago que corta o céu escuro e ilumina tudo apenas por alguns instantes até desaparecer nas profundezas da terra e que, no momento em que toca a terra, transfere para ela toda sua energia que está presente na seiva mais profunda de seu ser a alimentar as plantas, os animais e os seres humanos.

Sem as palavras de um gênio, o ser humano ainda existiria, mas sua seiva seria desperdiçada sem dela provir frutos maravilhosos em sabor, mesmo quando muito azedos. No seu peito, as dores morreriam, as tristezas se consumiriam, as alegrias deixariam de iludir e sua vida não passaria de um grande silêncio na mais profunda escuridão. Palavras podem ser ditas a qualquer instante, usadas de qualquer modo, mas são as palavras de um gênio que dão sentido à nossa vida e não existimos senão por causa delas, destas palavras cujos sentidos sondam o mais profundo do nosso ser, o mais profundo da terra e retiram de suas profundezas as seivas que nos alimentam para conseguirmos suportar os dias sombrios.

São as palavras em sua genialidade que nos salvam quando nem nós mesmos conseguimos nos salvar. São elas que nos mostram o caminho por onde seguirmos, as águas nas quais devemos navegar, pois navegar é preciso, viver não é preciso. É navegando no rio de palavras que viver se torna necessário, que a vida adquire sentido, que percebemos o sentido, isto que muitas vezes não percebemos, deixado para trás por inúmeras razões. É quando tudo para nós é sentido pelas palavras que então começamos a sentir a vida, saber como ela é, ou ainda, imaginar como ela poderia ser diferente da vida em que vivemos. Pois as palavras não apenas nos fazem sentir a nós mesmos em nossa vida, elas também dão novos sentido a nossa vida.

Nem sempre percebemos o sentido das palavras, pois nem sempre temos genialidade para isto, e nem os gênios conseguem isto a todo instante, muitas vezes lutando por uma palavra que faça algum sentido numa folha em branco, que sugue das profundezas de seu ser a mais bruta seiva com toda a energia de uma vida. Significados podem ser encontrados por nós em diversas palavras, mas o sentido delas somente advém com a genialidade e esta já não sabemos como vem, nem se volta algum dia. Algumas vãos com as palavras ao vento e se perdem sem conseguirem ser escritas vagando na memória e adormecendo no inconsciente quando não há o que fazer, apenas senti-las naquele breve momento de relampejo, brilhando entre nuvens espessas, descarregando-se sem cortarem o céu e deixarem sua marca na existência da terra.

Quando o escritor escreve algo somente vemos o que está escrito, palavras cujos significados reconhecemos rapidamente, ou talvez não, mas que nada dizem se não fizerem sentido para nós. Eis porque é tão difícil escrever, pois para quem as palavras farão sentido? Em que leitor o sentido delas para o escritor se fará sentido? E como será sentido? Quererá continuar a ler ou perderá para si toda a leitura na palavra a seguir? Cada palavra é um barco que se lança sobre as ondas sem saber em que terra aportará, se é que aportará em algum lugar ou se perderá no meio do caminho, no vazio oceânico de uma folha em branco. Nas palavras estão as esperanças de alguém que um dia quer ser lido, quem sabe entendido, compreendido em tudo que queria dizer mesmo que não tenha conseguido dizer tudo, somente palavras que fazem algum sentido para si naquele momento e, quiçá, para outros em algum momento. Palavras que escoam de uma fonte desconhecida para si e nunca mais voltam para si em sua jornada na folha em branco na qual se perdem mesmo que um ponto determine o final do livro, que nunca é, pois há o fim vem depois do ponto final libertando as palavras e o livro de toda escatologia no meio da folha em branco.

Um livro nunca ao chega ao fim mesmo que escreva fim ao final deles. O ponto final é apenas o início de uma nova história, ou ainda, o fim de uma história que é muito mais do que está escrito. Uma história que transborda as margens dos livros e o ponto final dele. É quando um livro acaba que começa o seu sentido para nós e as palavras fluídas pelo autor refluem em nosso ser profundamente por toda a vida. Terminar de ler um livro é sentir o que foi sentido, é fazer do sentido do autor o nosso sentido, é comungar com ele o sentido da vida que não é a dele, não é a nossa, que ultrapassa qualquer entendimento nosso ou dele, e que é sentida por nós no momento em que lemos as palavras de um livro ou onde quer que elas façam sentido para nós em um texto qualquer e demonstrem sua genialidade.

Escritores não escrevem livros, não escrevem textos. Escritores escrevem palavras que façam sentido para nós algum dia e estas se escrevem em qualquer lugar, de qualquer modo, em qualquer circunstância, com qualquer coisa que faça delas algo vivo para que alguém as possa ler e sua vida fazer sentido, principalmente aquele que as escreve, o leitor anônimo, imaginado por cada escritor. É para si que os escritores escrevem palavras, nelas buscando algum sentido em sua vida. São eles os leitores imaginados por si, aqueles que buscam desesperadamente por uma palavra de salvação para suas mais profundas dores e tristezas e se alguém sente as palavras que ele escreve como a si mesmo é porque veem nelas a mesma salvação que si.

A palavra da salvação do escritor é gênio. É o gênio que dá sentido às palavras para ele e para quem as lê. Que gênio é este? É o que habita cada ser humano, mas somente é reconhecido nas palavras quando elas fazem sentido para nós quando a lemos. Os escritores escrevem palavras para poder se veem como gênios, para saber se são gênios, mas somente sabem isto quando as leem. É o leitor que define sua genialidade e não ele mesmo. É o leitor que mostra ao escritor o gênio que talvez soubesse que fosse, mas não tinha certeza, nem teria se ninguém lesse o que escreveu.

É na leitura que as palavras fazem sentido, pois, na escritura, elas são apenas sentidas. Ao escrever, o escritor sente as palavras, mas, ao lê-las, elas fazem sentido para si. Os maus escritores são perdoados pois eles não sabem realmente o que fazem, isto é, nunca leem o que escrevem ou o que outros escrevem. É preciso ler para saber escrever e ler mais ainda para escrever algo que, um dia, faça sentido, para si, para alguém, e não sejam apenas palavras ao vento sem sentido algum, pois sem ninguém que as consiga ler, perdidas no mar da desesperança onde morrem todos os escritores, mesmo os gênios quando as palavras já não conseguem ser lidas para si em sua genialidade e morrem no mais profundo esquecimento sem nunca serem sentidas.

É na leitura de si mesmos em toda sua vida que nascem os gênios.

FIM

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