Filmes que vi sem Freud


Quando Platão expulsou a poesia da República do filósofo, ele expulsou muito mais do que a arte poética, pois expulsou toda a ficção da realidade, ou pelo menos tentou, já que suas Ideias são tão poéticas e fictícias na realidade atual quanto os deuses nos mitos dos poetas gregos antigos em sua época.

Desde os primeiros filósofos, a ficção foi deixada de lado pelas ideias filosóficas em busca de conhecerem a realidade em si, em sua essência, verdadeiramente e os poetas foram os primeiros a sofrer com isto, assim como o cinema sofre na realidade atual, pois quantas vezes não se ouve alguém dizer: Ah, que mentira, só podia ser em filme mesmo! Olha que filme mentiroso! A realidade é muito diferente da ficção! E deste modo tão cotidiano e habitual, muitos repetem um gesto filosófico que deplora filmes que não mostram a realidade por serem uma ficção e valoriza filmes porque mostram a realidade como ela é, isto é, sem ficção.

Nada mais estranho do que assistir a um filme para se ver a realidade, por exemplo, um filme chinês no qual os personagens voam de um lado a outro da tela e que se sabe que na realidade isto não acontece, ou um filme romântico em cenas de amor inimagináveis na realidade, sem falar em filmes de super-heróis e desenhos animados em que animais falam e se tornam deuses como pressupunha Xenófanes que fariam se fossem como os seres humanos. Mas o que importa a realidade? O filme é uma ficção e não uma representação da realidade como muitos querem que seja com seu olhar filosófico desde que Platão expulsou da realidade a ficção, ainda que, mesmo ele, não tenha conseguido deixar a ficção totalmente de lado em sua filosofia, pois em seus diálogos Sócrates tem sempre um mito para exemplificar o que diz retomando a antiga tradição de contar histórias em mitos, muitas destas recriadas por Platão de modo poético e fictício ao seu modo, como um modelo.

Assim como é vão assistir a um filme querendo ver a realidade sendo mostrada nele, é vão querer separar a realidade da ficção e a filosofia da poesia e do mito até mesmo em Platão, o mais ferrenho defensor desta separação. No mito, há uma lógica, e na lógica filosófica há muito de mito, na realidade há uma ficção e na ficção uma realidade, e qualquer tentativa de separar absolutamente uma da outra para depreciar uma pela outra é uma tentativa vã por não se conseguir isto a não ser dissimuladamente. Quem vive na absoluta realidade sem ficção alguma, vive preso sem imaginar nada que seja possível para além do que pensa na realidade sobre a realidade como a realidade, assim como quem vive na absoluta ficção sem realidade alguma, vive preso sem pensar nada que seja possível para além do que imagina em sua imaginação. Em ambos os casos é a vida de prisão absoluta real e fictícia que se vive e nenhuma vida é possível presa à realidade e à ficção absolutamente.

Se realidade e ficção não se separam absolutamente tão pouco se misturam completamente e querer ver tudo junto e misturado sem se discernir nada é tão aprisionante quanto a absoluta separação. A esquizofrenia de unir tudo é tão doentia quanto a paranoia de separar como dois pólos de um inconsciente maquínico adoecido no qual a separação e a união absoluta de realidade e ficção são os problemas da sociedade capitalista em que se vive atualmente, que é ou paranoica separando absolutamente a ficção da realidade ou é esquizofrênica unindo a realidade absolutamente à ficção. Pois os paranoicos abandonam a ficção absolutamente para produzir uma realidade e os esquizofrênicos abandonam a realidade absolutamente para produzir uma ficção, em ambos os casos sem perceberem que não se produz a realidade sem ficção, nem ficção sem realidade absolutamente.

Querer separar ou unir ficção e realidade absolutamente é o ato de pessoas traumatizadas ou edipianizadas pelo complexo de Édipo freudiano que não admitem que realidade e ficção difiram sem se oporem, sem se contradizerem, sem se negarem, sem se excluírem, ou se identificarem absolutamente, e que o mito enquanto ficção possa fazer parte da realidade e esta fazer parte daquele, mas sem traumas, sem Édipo, sem Freud. Foi pensando nisto que os filmes que compõem o segundo volume da Revista Arkhephylosophia, a partir de ensaios do blog Arkhephylosophia, foram reunidos a partir da categoria de Filmes que vi sem Freud, o que por este título se quer dizer sem pensar a separação e união absoluta entre realidade e ficção, filosofia e mito, poesia, filmes, sem pensar o complexo de Édipo que faz ver toda ficção inconsciente maquínico como uma representação da realidade, no caso um teatro da realidade a partir do qual se quer ver nos filmes como no teatro e os sonhos, uma realidade que em oposição à ficção, contradizendo-a, negando-a e excluindo-a da realidade, ou ainda, identificando-a totalmente com a realidade. Em contraposição a isto, por outro lado, se opondo, contradizendo, negando-se e excluindo-se a realidade da ficção por uma arte pela arte, por uma pureza da ficção sem qualquer relação com a realidade a partir de um sentido fictício ou da falta de sentido a partir do non sense fictício.

Cada um dos filmes aqui pensados filosoficamente não são pensados, neste sentido, tentando-se mostrar uma realidade presente neles e tão pouco se fazer fugir da realidade ao pensá-los. Busca-se pensar a partir da ficção deles a realidade bem como pensar a partir da realidade sua ficção, sem que a realidade e a ficção sejam elas absolutamente em si mesmas separadas ou unidas, mas num a-partamento que as separa e une ao mesmo tempo segundo o princípio e método de uma arkhephylosophia, neste caso, o de um a-partamento da realidade com a ficção e da ficção com a realidade relativamente. Deste modo pode-se ler os ensaios filosóficos aqui reunidos como realidade e como ficção a partir da realidade e dos filmes pensados a partir de si, realidade e ficção intimamente relacionadas a partir deles.

Escritos em tempos diversos, os ensaios filosóficos literários deste segundo volume da Revista Arkhephylosophia subtitulado Filmes que vi sem Freud foram reunidos seguindo um critério de seleção adotado no primeiro volume que é o de visualizações do blog Arkhephylosophia, com exceção do último que foi escolhido deliberadamente, mas não muito distante do critério de visualizações, pois as dele são próximas do penúltimo elencado. O motivo de se utilizar este critério pode ser dito a partir do que se entende quanto à relação entre realidade e ficção, pois se, na realidade, o texto pertence ao autor, todavia, isto é uma ficção, pois ele pertence também ao leitor, e se o leitor se apropria do texto na realidade, isto também é uma ficção, pois o texto na realidade não lhe pertence. Há em cada texto escrito uma relação entre autor e leitor na qual cada um existe na realidade e é uma ficção nela, o leitor como ficção do autor quando escreve na realidade, e o autor como ficção do leitor quando ler o que foi escrito na realidade. Em outras palavras, é a partir da visualização de um e de outro na realidade e de modo fictício a partir dos textos que eles se relacionam e a quantidade de visualizações, neste caso, determina aqui os textos escolhidos, não por serem os melhores ensaios filosófico dos filmes sob a categoria de Filmes que vi sem Freud, mas por serem os ensaios em que mais o autor e o leitor se relacionaram em sua realidade e ficção a partir destes ensaios e foi criada uma relação a partir deles com maior intensidade.

Todavia, a ordem dos ensaios não obedece uma hierarquia de visualizações que determina que ensaio é melhor do que outro, do menos visualizado para o mais visualizado como se estes fossem mais importantes do que aqueles, pois foram ordenados em pares por temas percebidos aproximados a partir da seleção deles. Em primeiro lugar, dois ensaios sobre esportes coletivos, no caso, Invictus: um time, uma nação, a partir do filme Invictus, e Football: o jogo de vida, a partir do filme O jogo de uma vida, em ambos os ensaios, buscando-se pensar os esportes a partir deles, a saber, o rúgbi e o football estadunidense, e cujo primeiro ensaio foi também o primeiro a ser escrito sobre filmes no blog com categoria de Filmes que vi sem Freud. Ensaios em que realidade e ficção são vistas a partir dos jogos e das regras que cada jogo possui em si mesmo de modo fictício, mas que também são regras na realidade, ainda que nestes ensaios não se desenvolva estas ideias plenamente, pois são ainda de uma época na qual não se pensava deste modo, e são ainda textos simples quanto a isto.

Em seguida, dois ensaios sobre a justiça, no caso, A justiça dos oito odiados, a partir o filme Os oito odiados, e Spotlight - segredos não revelados, a partir do filme Spotlight - segredos revelados. Dois ensaios que pensam a justiça a partir de uma justa indignação que se expressa, por um lado, como violência no primeiro e, por outro, em justa medida no segundo, e a partir dos quais se pensa a justiça em seu limite, muitas vezes indiscernível na realidade e na ficção, quando se está envolvido em situações limites cuja decisão e ação justa se faz injusta em meio à raiva da indignação e já não se consegue pensar o que é justo e o que é injusto. Ou ainda, o que é perdoável e o que é imperdoável como fim último de uma justiça em suas penas aos atos considerados injustos, seja o perdão uma ação humana ou divina.

Pensando a questão da educação e como ela vai contra ações injustas sobretudo, são os ensaios Ágora e o ódio que move a fé, a partir do filme Ágora, e Professores: como estrelas na terra, a partir do filme Como estrelas na terra, este último no qual se marca uma passagem de ensaios com uma maior racionalidade do pensamento, por assim dizer, para uma maior sensibilidade a partir do segundo ensaio sobre educação, o que esta sensibilidade ganha intensidade nos ensaios seguintes. Nestes dois casos é uma educação tradicional que é questionada sobremaneira na medida em que, no primeiro caso, a educação filosófica é vista como contra uma educação tradicional religiosa movida pela fé, mas também pelo ódio, que leva à morte aqueles que não são educados nos preceitos religiosos. No segundo caso, a educação voltada para uma relação mais aproximada com estudantes vista como oposta a uma educação distanciada deles em que seus problemas não são importantes e o que importa é o ensino tradicional de todos sem perceber suas diferenças singulares na educação. Em ambos, realidade e ficção pensadas a partir da educação e de como na educação se produz uma ficção pensada como realidade e como na realidade se produz uma educação que é uma ficção quando se percebe o ódio que motivo aqueles que são educados na realidade e na ficção de uma tradição.

Sobre a vida, os ensaios Feridas da alma, a partir do filme Tudo vai ficar bem, e A velhice e sabedoria de Mr. Morgan, a partir do filme Último amor de Mr. Morgan. Nestes, em primeiro lugar, pensa-se a vida em sua dor, tristeza e sofrimento e como é difícil superar tudo isto ao longo dela, no segundo, uma vida pensada com prazer, alegria e felicidade por tê-la vivido bem, amando viver ao lado de alguém intensamente ao ponto da morte não ser mais vista como a maior dor, sofrimento e tristeza da vida, advinda como um deixar ser fictício para ser uma realidade na vida e a vida deixar ser real para ser uma ficção na morte.

Por fim, dois ensaios sobre a infância, o primeiro, A pequena princesa, a partir do filme O pequeno príncipe, e o segundo e último ensaio deste volume, A volta do E.T. - O extraterrestre, a partir do filme E.T. - O extraterrestre, escolhido deliberadamente pelo que representa em termos de a-partamento da realidade com a ficção e da ficção com a realidade, intimamente ligado a um a-partamento da vida em realidade e ficção. Em ambos os filmes, é a infância pensada como momento em que, na vida, realidade e ficção não se separam absolutamente, pois estão separadas e unidas ao mesmo tempo relativamente segundo o princípio e método de um a-partamento. Em ambos os ensaios colocando-se em questão indiretamente esta absoluta separação entre realidade e ficção, principalmente no primeiro filme, quando a infância é pensada a partir da realidade feminina tolhida totalmente em sua ficção por uma edipianização em que qualquer ficção é vista como uma doença na realidade a partir de uma paranoia masculina do trabalho representada por uma mãe fazendo o papel de pai. No segundo filme, por sua vez, esta edipianização acontece quando a ficção é tolhida na infância em geral e o outro é visto como um E.T., extraterrestre que, por não ser idêntico na realidade aos seres humanos, não se acredita nele e é visto como terrível ao ponto de se querer matá-lo desde a infância ou não se importar com sua morte. Todavia, neste caso, percebendo-se a partir das crianças que não se pode separar realidade e ficção na vida adulta tal como acontece na infância, pois na infância o outro não é um doente por transformar a realidade em ficção ou a ficção em realidade, já que é isto que fazem as crianças, e tão pouco o outro é na realidade a ficção de um extraterrestre terrível, inimigo, oposto a si, negando-o ao ponto de não se importar com sua exclusão e mesmo sua morte por diferir de si, não ser idêntico a um ser humano, pois as crianças não são capazes de fazer isto e choram com a separação e partida do E.T, o extraterrestre, bem como a possível morte dele, mesmo que o E.T. difira delas enquanto seres humanos na realidade e seja o próprio E.T uma ficção.

Que os ensaios filosóficos literários aqui reunidos possam, enfim, fazer parte da realidade e da ficção de cada leitor como são parte da realidade e ficção do autor e que estes Filmes que vi sem Freud sirvam para pensar os traumas e edipianizações que separam muitas vezes a realidade e a ficção absolutamente e para aprendermos a viver sem esta separação, vendo a vida na realidade como a ficção de um filme e a ficção de um filme como a vida na realidade, sem Freud.

Jean Pierre

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