Quando encontramos o amor...

Durante dois anos num grupo de estudos sobre a filosofia do romantismo alemão nas músicas do Legião Urbana com duas estudantes do ensino médio, foram muitas as perguntas que nos fizemos sobre o amor, dentre elas, estas: quando sabemos que é amor? Quando sabemos que amamos alguém? Quando sabemos que encontramos o amor da nossa vida na vida?

Filosoficamente cada pergunta já contém em si a resposta. Neste sentido, o amor é a resposta para todas estas perguntas, pois, logicamente, é sobre ele todas elas, então, por uma questão de princípio, é preciso sabermos que amamos para chegarmos às respostas que buscamos sobre o amor, um amor que já está ali, em germe, nas perguntas, inconsciente, apenas esperando a sua expressão por meio de nossa linguagem, em geral, quando dizemos eu te amo. É, de fato, quando dizemos eu te amo que encontramos o amor, ao conseguir exprimirmos o amor na linguagem, mas não é tão simples dizer eu te amo, encontrar o amor em nossa vida, bem sabemos disso, mesmo que procuremos muito por ele, mesmo que digamos que amamos a quem convivemos por anos e que pensamos que amamos, pois pensar que amamos não é amar.

Se paramos para pensar que amamos alguém é sempre uma dúvida em relação ao amor que sobrevém e não o amor mesmo que encontramos. Pelo contrário, afastamo-nos do amor a cada vez que duvidamos que amamos. O amor é uma certeza que, como tal, não permite qualquer dúvida, mas não é a certeza cartesiana, pois há uma diferença abissal entre o amor e o pensamento em relação à existência, e não é de hoje que amor e pensamento são colocados em opostos, mesmo que ambos façam parte do ser humano, e ele não existe sem ambos de certo modo. Um frase no filme A ti te quería encontrar (2018), de Javier Colinas, demonstra recentemente a antiga oposição entre razão e paixão, esta primeira forma de amor, uma forma disforme dele, na qual ainda não se sabe que é amor, que encontrou o amor. Nele, Diego, prestes a casar, encontra Lu, e se apaixona inevitavelmente por ela, segundo a fórmula clássica dos filmes românticos, mas diante de suas dúvidas, seu amigo Jerome diz a ele: Não jogue tudo fora porque está apaixonado. Não é preciso muita imaginação para descobrir todo o enredo da história romântica de Diego e Lu e suas dúvidas se ela é a pessoa que ama e não Julia com quem vai casar, mas isso não importa, nem que o filme seja mais uma atualização do eterno romance de Romeu e Julieta de Shakespeare de modo óbvio.

Por mais óbvios que sejam os filmes românticos, por mais óbvio que seja o amor e que nada de novo se possa fazer em termos de relacionamento amoroso do que fez Shakespeare em Romeu e Julieta, ou ainda, antes dele, foi pensado por Platão no simpósio de O Banquete, e nada de novo depois que os românticos levaram às últimas consequências o amor platônico, este amor impossível que nunca há de se realizar no ser humano já que é infinito e o ser humano é finito, mas mesmo assim se realiza nele momentaneamente para danar sua alma para sempre, ainda assim não há como não se deixar danar com o amor, da pergunta sobre o que é o amor, de quando é que encontramos o amor, esta coisa tão óbvia, mas tão difícil ela mesma de encontrar, e que já não é possível esquecer desde que começamos a pensar nele em nossa vida.

Se por muitas vezes esquecemos o amor em nossa vida e não rendemos a ele elegias como diz Fedro iniciando o simpósio platônico sobre o amor, eis que o amor permanece inesquecível, pois, óbvio, como poder-se-ia esquecer o amor? Todavia, o esquecemos e é a partir deste esquecimento que começam os convidados de Agatão a discursar sobre o amor e cada um deles a expressar em diferentes linguagens o que é amor até que Sócrates encerra a questão com o seu discurso, mas não totalmente, pois ela ainda permanece aberta em sua mente e retorna a ela em seu diálogo particular com Fedro em Fedro. Por mais que tantos homens e Diotima enquanto mulher seja chamada por Platão para responder a questão sobre o que é o amor, a questão sobre ele permanece aberta, como permanece aberta nos filmes românticos do início ao fim se o amor que está tão óbvio nos personagens como para nós vai, enfim, se realizar e eles e nós encontraremos o amor na vida.

Que a questão do amor permaneça em aberto desde os filósofos gregos, isto é um problema para os filósofos que a retomam diversas vezes de diversos modos tanto quanto é retomada pelos filmes românticos, mas não tanto quanto esta questão é retomada pelas pessoas existentes no mundo que inevitavelmente buscaram uma resposta para ela por si mesmas, não apenas as que vivem atualmente, mas todas as que já viveram na terra. Talvez esta seja a maior questão de todas as questões que o ser humano se coloque em sua vida ainda que tenha chegado a alguma resposta para ela ou aceite, de certo modo, a resposta de alguém sem querer dar si mesmo uma resposta para as questões do amor. Todavia, não se pode dizer com certeza que mesmo aqueles que não a respondem diretamente não fiquem com esta questão em sua mente por um bom tempo e, sem dizer a todos, não busque ele também dar a sua resposta, se não para o mundo saber, pelo menos para si ou para quem ame, pois pelo menos quem ele ame deve ter alguma resposta, do contrário, não é difícil imaginar que o relacionamento acabe sem esta resposta, pois a dúvida tende a destruir o amor que exista de fato entre eles, mas não é dito, e os filmes românticos demonstram muito isto assim como o A ti te quería encontrar, que foi traduzido no português como Então eu te conheci.

O título em português, obviamente, se refere ao fato de Diego conhecer Lu antes de se casar e se apaixonar por ela, mas também pode se referir ao conhecimento do amor. Todavia, ele destoa do título em espanhol do filme mexicano, mais ainda, destoa em relação ao amor no sentido de que podemos até conhecer alguém, como Diego conhece Julia, mas isto não quer dizer muita coisa sobre conhecer o amor. Novamente, o diálogo de Jerome com Diego é esclarecedor neste ponto quando diz ao amigo em dúvida: A Julia é uma mulher incrível. Você nem conhece a Lu.* Não importa que Diego conheça Julia há 10 anos (!) e mal conheça Lu, pois o amor não é conhecido pelo tempo junto de alguém, por mais que se ame alguém por muito tempo e se viva a vida toda com seu amor. Não é propriamente o tempo que decide se amamos ou não e se encontramos o amor, pois esta é apenas a compreensão tradicional do amor, a compreensão cultural que se tem de que o amor está relacionado ao casamento, a uma relação duradoura e na qual não importa a paixão, como disse Jerome a Diego, o que importa é que Julia é incrível e uma mulher especial como diz Diego a ela no noivado e que jamais encontraria alguém como ela, antes de conhecer obviamente Lu...

Se o amor pode juntar duas famílias tradicionais como no filme e em diversas situações desde a época primitiva humana em suas alianças familiares por questões de parentesco, no caso para evitar o incesto, o amor não é a união entre duas pessoas por uma obrigação familiar. Se ele é visto deste modo é por uma questão cultural e não dele em si mesmo, e Romeu e Julieta de Shakespeare é a demonstração histórica de que o amor é sempre maior do que a união de duas famílias. Se o namoro entre eles se torna trágico é justamente por se querer submeter o amor a uma união familiar, a uma relação por interesses dos pais que impedem muitas vezes os filhos de amarem quem eles amam. Se o amor de Romeu e Julieta sobrevive ainda hoje depois de tanto tempo mortos e nunca terem estado vivos, pois são apenas personagens teatrais, é porque nele o amor se expressou de modo moderno e não mais tradicional ao romper com a ideia de que o amor é o desejo dos pais de unirem seus filhos e ser já o desejo dos filhos se unirem a quem amam independente do desejo de suas famílias. Por sua vez, se eles resolvem viver este amor para além da vida, morrendo um pelo outro, por não conseguirem viver sem amarem um ao outro, é porque a tradição impede que exista um amor como o deles e tal amor se torna impossível como pressupunha Platão em sua época, e como são impossíveis os amores homossexuais para aqueles que defendem uma família tradicional hoje em dia. Não importa o amor entre os seres humanos, seja como forem, o que importa segundo uma tradição é o amor dos pais pelos filhos e dos filhos pelos pais, o amor à ordem, no caso, a familiar de quem se deve amar.

Romeu e Julieta decidiram amar um ao outro independente de suas famílias, independente dos infortúnios da vida, resolveram abandonar tudo para viverem o amor que tinham um pelo outro. Não ouviram o que Jerome disse a Diego, e como poderiam? Romeu e Julieta se amavam e resolveram correr o risco de viverem esse amor deixando tudo de lado. Tudo que nos faz crescer é difícil. - diz a avó de Diego em relação às suas dúvidas sobre o que fazer e complementa: Viver é para os corajosos. E no filme que Diego e Lu assistem juntos é dito antes: Quem tem medo de sofrer, já está sofrendo...

Romeu e Julieta não tiveram medo de sofrer e sofreram as consequências do amor, como não poderia deixar de ser, pois o amor é um afeto e como tal um paixão, diz Spinoza, e paixão deriva da palavra grega pathos cujo significado principal é sofrer algo no corpo e na mente. Estar apaixonado Ã© ser afetado por alguém e, deste modo, sofrer por alguém, mesmo que este sofrimento seja o de uma alegria, um aumento da potência do ser, fazendo-o perseverar na vida, como diz Spinoza em sua Ética. O amor faz agir o corpo e a mente com sua alegria e que faz desejar a pessoa que ama e conhecê-la cada vez mais, já que não conseguimos evitar querer conhecer quem começamos a amar, quando encontramos o amor, querendo conhecer, enfim, o amor, se amamos, quando amamos, acabamos muitas vezes sofrendo devido ao desejo de conhecimento de tudo em relação a quem amamos e ao que é o amor. Pois a pergunta sobre o amor é tão imorredoura como ele a despertar sempre de um retumbar no peito quando começa a bater mais acelerado por alguém que mal conhecemos e queremos conhecer mais ainda, estar ao seu lado todo dia, conversando, beijando, trocando olhares, carinhos, carícias... e sofrendo quando não se tem isto...

Tudo isto é óbvio e tão óbvio que é melhor não perguntar o que é o amor, quando se encontra o amor, pois todos sabem o que ele é e continuar a escrever sobre o amor não leva a nada de novo. Racionalmente, Schopenhauer já colocou uma pedra na questão do amor como uma ilusão que a natureza criou para se recriar ela própria em sua vida natural. Ou seja, o amor não é algo racional, mas algo que está além da nossa razão, além da vontade racional como uma vontade que é da própria natureza, no caso, a humana, já que aos animais apenas interessam os ferormônios, o que demonstra o quanto é ridícula a explicação científica para o amor, pois sendo algo propriamente humano que vai além da fecundação e preocupação familiar demonstrada pelos mamíferos não pode ser demonstrado como algo natural. Foi Schopenhauer, mesmo que não diga, o último dos românticos, quiçá, o maior de todos, ou ainda, o único filósofo romântico, por dizer aos filósofos ditos românticos aquilo que eles esqueceram sobremaneira, que o amor não pode ser conhecido pela razão do espírito absoluto, que ele está para além da razão e do espírito, e se ele é absoluto não é da razão e do espírito em si mesmos de modo absoluto, muito menos em sua história como pensava o também romântico Hegel.

Se o amor é uma ilusão da natureza para que se possa gerar a vida humana naturalmente, do contrário, racionalmente não se geraria filhos para se colocar no mundo para sofrer, num mundo que é de sofrimento como diz Schopenhauer em sua doutrina do sofrimento do mundo, é também uma ilusão se perguntar sobre o que é o amor e quando o encontramos, em que momento de nossa vida, agora ou depois, em que momento do tempo e no tempo. Qualquer questão posta ao amor é já uma questão sem resposta e qualquer linguagem que se utilize para respondê-la não poderá dizer o que é o amor, pois não se pode dizer o que é uma ilusão de modo racional. A razão é a dúvida que retira do ser toda e qualquer ilusão dando apenas a ele a certeza de ser ele mesmo, de ser o amor ele mesmo deste ou daquele modo, aqui e agora, ou quem sabe depois, mas sempre sem engano, sem a ilusão dele em si mesmo. Descartes já advertira isto na certeza de seu pensamento ao por de lado todas as dúvidas dos sentidos, do que afeta o corpo e também a mente como o amor, para que justamente a mente não fosse afetada por dúvidas que não fossem as colocadas por ela e por ela própria tiradas, pois somente as dúvidas da razão podem ser resolvidas pela razão. E qualquer dúvida que não seja posta pela razão não pode ser resolvida por ela mesma, assim como o amor que põe uma dúvida para além da razão pondo a razão em dúvida quanto a si mesma e toda certeza que deriva dela não por menos.

Não há certezas no amor quando o queremos encontrar. A ti te quería encontrar diz o título do filme, deixando na dúvida que o amor é encontrado, deixando em aberto se Lu é o amor da vida de Diego, e ele dela, pondo em dúvida até o fim se vão ficar junto ou não, quando vão encontrar o amor, como em todo filme romântico, como em todo amor na realidade, pois quem sabe quando vai encontrar o amor? E se encontrar quem sabe se o amor é para sempre? Pra sempre sempre acaba, diz Renato Russo melancolicamente, e quanto amores já não se acabaram que eram para sempre? Não contemos, deixemos de contar, isto não se conta senão se começa a chorar com todas as perdas amores para sempre que perdemos e não importa mesmo contar.

Encontrar o amor não é da nossa conta, nem tão pouco perdê-lo. Ele é óbvio, aparece na nossa frente quando menos esperamos, sem aviso, como se estivesse ali o tempo todo e somente nós não percebíamos. Ele estava ali desde o início antes de pormos a questão, e estará depois dela, pois ele é anterior e posterior a qualquer questão que o limite em uma resposta racional, que busque dar conta do que ele é, busque uma razão para o amor. Ao pôr a questão do que é o amor, de quando encontramos o amor, já estávamos desde Platão deixando o amor para trás e colocando-o para frente dela, pois é impossível submetê-lo em sua presença ao questionamento dele no presente, seja o presente de Platão em seu diálogo, seja o presente deste texto. Se há uma presença do amor e dele de modo presente no tempo de nossa vida não é a partir de um questionamento dele, pois todo questionamento do amor faz esquecer o que ele é, o seu ser, impossibilita o encontro do ser com o amor, dos seres com quem amam, pois os questionamentos do amor são como os pais de Romeu e Julieta a impedirem-nos de encontrarem o amor um no outro, de se amarem...

É preciso esquecer o questionamento do amor para encontrar o amor. Somente se pode encontrar o amor quando não se questiona o que ele é. Quando encontramos o amor, não há nenhum questionamento, simplesmente amamos, e não importa o tempo do amor ele permanece inesquecível, para além de tudo que se interponha-se a ele de modo racional, por mais distância que exista entre nós e aqueles que amamos e pessoas estejam entre aqueles que se amam.

Não importa também se a questão do amor parece aqui fechada pelo esquecimento dela mesma, da razão que nos impele a questionar o que é o amor, quando encontramos o amor, pois é o amor que abre a questão, torna possível todas as questões da razão e as mantém abertas quando amamos o saber como filósofos e, deste modo, sempre retomaremos à questão e, cantando Renato Russo, diremos ainda muitas vezes em nossa vida ao amarmos e nos perguntarmos ou perguntarmos a outrem: Quem inventou o amor? E para não ficarmos sem resposta digamos que foi o próprio amor, que se reinventa a cada dia na nossa vida para nos dar alegria quando menos esperamos mesmo que nos faça sofrer...

* Para não dar spoiler sobre o filme, por mais simples que ele seja, ocultamos o nome de Lu como é ocultado a Diego por ela quando se encontram, apenas para manter o romantismo.

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