Recomeço
A cada fim de ano as pessoas buscam recomeçar suas vidas. Em geral, é um falso recomeço motivado por promessas não cumpridas de fazer algo diferente no ano novo que se inicia: emagrecer, cuidar da saúde, arrumar um emprego, viajar, casar, ter filhos, se separar, sair de casa, morar sozinho, estudar, voltar a estudar, pular de paraquedas... Não importa o recomeço, é sempre um erro que as motiva à mudança, a fazer de novo algo que não deu certo, a recomeçar.
Não existe recomeço sem erros. É preciso errar para recomeçar. E para recomeçar é preciso conhecer e reconhecer o erro, mudar o que não deu certo, ser diferente. Reconhecer o erro quer dizer aceitar que errou, mas também aceitar o erro, mudar seu valor negativo para positivo, aquilo que possibilita a mudança, mesmo quando não queremos ou nem pensamos em mudar. Se muitas promessas de ano novo não se realizam e são por assim dizer falsas, não são quando são ditas, mas quando não se cumprem. É porque quando são ditas aqueles que a fazem não reconhecem o erro, mesmo tendo conhecimento dele.
Neste sentido, há uma grande diferença entre o reconhecimento lógico do erro quando se admite que errou e o reconhecimento ético do erro, quando se diz Sim! à mudança que ele possibilita, à diferença necessária a partir dele, a uma transmutação de valor do erro, quando os valores são reavaliados como pressupunha Nietzsche e quando há um recomeço de fato. Entre o reconhecimento lógico do erro e reconhecimento ético a partir do qual é possível haver um recomeço, há uma mudança significativa do valor do erro. Em primeiro lugar, o reconhecimento do erro tem como significado o ser passivo ao erro e o recomeço é um substantivo. É quando o erro deixa de ser visto como negativo segundo a lógica como o contrário do acerto, logo, como algo a ser negado e passa a ser aceito de modo moral, como fundamento de toda moral, principalmente a religiosa, cujo objetivo é aceitar o erro e a punição em relação a ele por meio de violência. Seja uma punição verbal por meio de palavras de advertências, xingamentos ou discursos que produzem uma culpa em quem erra, sendo isto feito repetidas vezes, seja uma punição física, com agressões, tortura e até mesmo a morte caso seja julgado moralmente que aquele que erra vai errar continuamente durante a vida e não se pode permitir mais nenhum erro seu aplicando-lhe a pena de morte.
É uma aceitação passiva do erro como algo negativo a partir de uma violência o que toda moral busca e, em contrapartida, a mudança que há a partir dela é também passiva no sentido de que aquele que erra evita errar, busca negar o erro, seja de fato, seja por meio de mentiras para evitar a punição e a violência. Não é, neste sentido, uma mudança propriamente dita daquele que errou, pois esta mudança somente é possível quando o recomeço deixa de ser um substantivo, algo passivo e aceito como negativo, como uma mudança forçada pelas circunstâncias violentas, para ser um verbo, uma ação positiva de mudança independente de qualquer violência moral. Em outras palavras, quando deixa de ser avaliado de um ponto de vista lógico e moral para ser reavaliado de um ponto de vista ético, quando aquele que erra não simplesmente faz o que julga certo para o seu bem e para os outros, mas quando toma a iniciativa de recomeçar nem que seja tudo de novo por si mesmo e não porque é obrigado a fazer isto para não ser punido por alguém ou alguma divindade. É quando o erro deixa de ser aceito lógica e moralmente e passa a ser modificado eticamente em seu valor como negativo e é reavaliado de modo positivo, quando deixa de ser negado para ser afirmado e reafirmado constantemente a cada vez que se erra. É quando toda perfeição paradisíaca do ser humano sobre si mesmo, o mundo e deus é deixada de lado e busca-se agora recomeçar a vida admitindo o erro em si mesmo como parte dela, do ser humano em sua imperfeição, bem como do mundo e divina aos seus olhos quando ela traz profundas tristezas.
O ser humano está sempre em busca da perfeição de si, do mundo, de deus e constantemente nega a si mesmo como um ser que erra, que é imperfeito, bem como o mundo e deus que nunca erra aos seus olhos, segundo o que interpreta em relação a ele e suas palavras. Mais ainda, o homem que interpreta as palavras de deus e busca com isto a perfeição, considera-se perfeito por sabê-las de cor e salteado e repeti-las constantemente a si e a todos, bem como, por saber repeti-las tal qual está em seus textos sagrados, considera-se perfeito. Todavia, não é a perfeição das palavras em seu conhecimento e reconhecimento moral tal como foram escritas em tempos imemoriais que faz o ser humano deixar de errar e recomeçar. As palavras nada mudam naquele que as recebe e as repete passivamente reconhecendo que errou ao repeti-las novamente de modo correto em seguida. Tudo isto diz respeito apenas à lógica moral do recomeço quando se reconhece o erro, mas não se muda nada na vida, não se faz nada diferente nela, pois tudo que se faz é o que foi feito antes por muitos, mesmo que seja errado por não se reconhecer o erro de modo moral, isto é, em geral. O erro moral é o mais difícil de ser reconhecido, o mais difícil de ser negado e senão o que mais impossibilita o recomeço de fato, pois em relação à sua moral muitos não admitem que estão errados e quem erra é quem não pensa como eles. Nem sempre, porém, é o indivíduo que erra, mas muitos que veem na ação dele um erro sem ser e o punem violentamente de modo verbal e fisicamente, além de muitos serem mortos por erros que cometeram por não estar de acordo com uma lógica moral, mas estão de acordo com uma ética para a qual o erro é a possibilidade de uma mudança de atitude, inclusive de quem visa corrigir os erros dos outros com punições.
Se é tão difícil para as pessoas mudarem suas atitudes é devido uma lógica moral, não necessariamente doutrinária religiosa ou dogmática filosófica, mas que se estabelece como um costume, um nomos ou um hábito, isto é, uma ordem estabelecida pela repetição de ações no cotidiano que são difíceis de serem mudadas porque simplesmente se acostumou a agir deste modo ao ponto de não se poder agir diferente e, consequentemente, ser diferente. Quem se acostumou a comer muito por qualquer motivo biológico ou psicológico, dificilmente vai mudar seu hábito alimentar, o mesmo acontecendo com quem prefere ficar em casa e dificilmente vai querer sair para passear ou viajar. E aquele que se acostumou a ter alguém como companhia ou a ficar só dificilmente vai querer outra companhia ou querer alguém como companhia em sua vida, de modo que todos os costumes que se adquire ao longo da vida passivamente em suas ações são condições impossibilitadoras de qualquer mudança, mesmo quando são erros, e não basta dizer apenas que vai mudar porque alguém quer, seja alguém humano ou divino.
As palavras convencem, mas não mudam quem se é e todo recomeço depende da ação de alguém que quer mudar, de alguém que faz do erro não uma aceitação, mas uma motivação para o recomeço de sua vida com novas atitudes, mudando o valor do que era antes visto como um erro para o valor positivo de um acerto, fazendo do passado não um impedidor de algo diferente na vida, que visa conservar tudo como sempre foi e deve ser como é, mas como um motivador de um presente e de um futuro em que tudo pode ser diferente, desde que se aceite verdadeiramente o erro em sua vida, não o negue, tão pouco faça dele um sofrimento, mesmo que faça sofrer, pois o erro sempre traz consigo o sofrimento de alguém ou de muitos que nem se imagina o qual muitas vezes finge que não viu o erro e sofre em silêncio por anos e anos ao seu lado.
Reconhecer o erro de modo ético é negar o sofrimento para si e para os outros com suas atitudes, não aceitar a violência de qualquer modo, mesmo a de uma moral sobre si porque errou. É mudar suas ações independente de qualquer violência de outros sobre si, fazendo do erro algo positivo não no sentido de querer errar, pois querer errar é tão somente se contrapor ao acerto de uma lógica moral, e nunca uma mudança de fato ética de quem erra. É se submeter à dialética da lógica moral do sim e do não, em que há constante oposição e contraposição, contradição e contrariedade daqueles que se opõem dizendo sim ou não e a partir da qual nenhuma mudança individual ou moral é possível a não ser em termos de posições, quando quem diz sim passa a dizer não e quem diz não passa a dizer sim, não importando quem diz sim e não na ordem dos fatores e dos produtos, pois é sempre a violência que está em jogo no sim e no não.
Entre o recomeço lógico moral e o recoméço ético não necessariamente lógico, há uma diferença, a própria diferença como algo positivo, uma mudança necessária no valor dela mesma como algo que não é uma diferença em relação ao passado, mas uma diferença em relação ao futuro, quando o que é esperado é inesperado, pois não se sabe o que vai acontecer em seguida. É quando o erro se tornou grande demais para se prever qualquer ação e o que se tem diante dos olhos não é uma ação premeditada a ser feita, mas uma necessidade de mudança na vida completamente. Uma mudança que é um recoméço difícil de ser dito, no qual a voz se embarga sem saber o que dizer, como dizer, pois não é mais uma voz que discursa falsamente sobre a mudança que vai fazer, mas uma voz que já está implicada na mudança, que não é ela mesma prevista num sim e um não com todas as suas justificativas.
É a voz de Adão e Eva ou qualquer ser humano quando decide errar e sair do paraíso divino, desobedecer a deus, não necessariamente porque ele esteja errado em dar tudo que deu a si, dispor a natureza a si para seu prazer infinito em sua vida eterna, ou mesmo por querer desobedecer sua ordem por birra infantil, mas por decidir mudar sua vida completamente vendo na vida paradisíaca divina um erro, vivendo como um deus quando é um ser humano. Se existe um motivo para o ser humano ter errado em sua vida paradisíaca e se expulsar por causa disso quando poderia viver ali eternamente é por ele querer ser humano e não deus, errar em vez de viver uma vida sem erro algum, por erro não se entendendo uma afronta a deus segundo uma lógica moral, mas a possibilidade de uma vida diferente, recoméçada em toda sua plenitude mesmo que não haja nenhuma plenitude nela, na qual o mundo todo se modifica à sua frente, aos seus olhos, agora, como o seu mundo e não mais o mundo paradisíaco de deus no qual era um estranho, um estrangeiro, um ser humano e ao mesmo tempo divino, não apenas semelhante a deus, mas idêntico a ele em sua vida, vivendo como um deus com tudo ao seu dispor, inclusive, o próprio deus.
Se foi o erro que fez o ser humano ser quem ele é ao ser expulso do paraíso para viver agora a sua própria vida, este erro não foi o pecado original de desobedecer a deus segundo uma lógica moral, foi o erro do ser humano viver no próprio paraíso e decidir sair dele mudando sua vida completamente, dizendo com voz embargada por um futuro que se descortina em sua frente: deus, obrigado por tudo... eu recoméço a partir de agora a minha vida por mim mesmo como ser humano mesmo que sofra durante toda a vida em minha jornada na terra, inclusive com a morte na qual, quiçá, vemo-nos novamente.
Recoméço, eis a palavra da salvação humana de todo erro, reconhecendo-o não mais pela violência de uma lógica moral, mas porque decide agir eticamente tendo em vista a perfeição ciente de que nunca vai tê-la por ser humano.
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