O incômodo filho
Na sociedade, de modo geral, os filhos são vistos como um incômodo antes mesmos de serem concebidos, pois se existem formas de se prevenir contra a gravidez é porque os filhos são já pensados como um incômodo e não se quer tê-los. Incômodo bastante antigo, desde épocas míticas gregas, no caso, em relação ao incômodo Édipo do qual deriva todo o complexo dos filhos para os pais que veem neles um incômodo e que é um modelo do quanto um filho pode ser incômodo, mais ainda dois, e muito mais múltiplos filhos.
O problema de Édipo é o problema familiar e social por excelência e não é possível discutir a família e a sociedade como derivação da família teoricamente, e não naturalmente, sem pensar Édipo como o incômodo filho. Ou ainda, pensar a complexidade que é um filho gerado hoje cada vez mais precocemente por adolescentes que ainda são crianças sem qualquer maturidade para a criação de filhos, a não ser pela maturidade do próprio corpo que torna possível a concepção deles. Isto porque é com Édipo que o filho passa a ser visto como um incômodo já na família tradicional e mais tradicional de todas as famílias, a família real e divina, e se torna o modelo de incômodo filho quando Laio decide matá-lo por saber pelo oráculo divino que Édipo irá matá-lo, casar com a sua esposa Jocasta, mãe de Édipo, e gerar quatro filhos com ela... O que, deste modo, se Édipo é um problema para Laio como filho, pois vai matá-lo, bem como para a mãe a ser desposada por ele em incesto, os filhos de Édipo também são um problema ao serem gerados a partir do incesto com a mãe e todo o mito de Édipo imortalizado pela peça teatral trágica Édipo Rei, escrita por Sófocles na Grécia antiga, é deste modo sobre o incômodo filho que é Édipo e sobre seus incômodos filhos, quaisquer filhos vistos a partir de Édipo e da família tradicional desde então como incômodos apesar da defesa da família.
Todo o complexo de Édipo na sociedade psicologizada e psicanalizada atual deriva do incômodo que é Édipo como filho, não apenas enquanto parricida, incestuoso, mas também como aquele que leva ao suicídio da mãe quando ela descobre que gerou filhos de seu próprio filho, pois Édipo não é morto como Laio ordenou e se casa com ela sem saber que é sua mãe, bem como ela que ele é seu filho. Mais ainda, Édipo é aquele que não apenas destrói a família que o gerou, isto é, seu passado familiar, mas também a família que ele gera ao se tornar rei de Tebas, mas também destrói toda a descendência familiar a partir de si, posto que seus filhos são destinados a morrer, senão por disfunção biológica co-sanguínea de parentesco, por questões históricas, segundo o que acontece nas peças escritas por Sófocles como sequência a Édipo Rei, no caso, Édipo em Colono e Antígona. E não há, deste modo, filho mais incômodo do que Édipo na história e não por acaso ele serve como exemplo do quão os filhos são pensados ainda como incômodos e atualmente não se quer ter nem mesmo um, porém, não mandando matá-lo como Laio o fez, mas negando-os antes mesmos de serem gerados.
Se em sua época mítica, Laio mandou matar seu próprio filho para que tudo isto não acontecesse tendo fé na presciência do oráculo que previra a ele tudo isto, mas foi impedido por seu servo que não seguiu suas ordens (e nestes servo talvez recaia toda a culpa da tragédia de Édipo por não ter matá-lo), tal como também foi impedido Abraão de matar seu filho Isaac em sua fé no deus judaico, no caso, impedido pelo próprio deus na hora que ia cometer o ato de fé que é sempre um ato de morte, esta morte pela fé é hoje deplorável. Apesar disto, o incômodo filho ainda é um problema na sociedade capitalista na qual se generaliza a negação da geração de filhos em proveito do prazer do consumo e bem-estar individual como um regra que se impõe cada vez mais a muitos, bem como o filho único, que deixou de ser uma imposição autoritária como na China comunista para se tornar uma uma política familiar no capitalismo devido a contensão de despesas. De qualquer maneira, seja política, religiosa ou economicamente, o filho é um incômodo para a família tradicional e o que se tem é o problema do Édipo como filho incômodo sendo matizado na sociedade atual em que não querer o filho é a primeira opção ao se pensar em todo o mal que ele pode fazer a si individualmente, tirando seus poderes familiares políticos e religiosos de reis ou seu poder político econômico de consumo de prazer.
Assim é que o problema de Édipo se tornou o problema da família e sociedade tradicional, bem como na família e sociedade moderna, no caso, a sociedade para a qual a família é o mais importante, não o filho, o qual deve se adequar à ela e não ela a ele, não sendo ele um incômodo para pais. É a família acima de tudo, e acima dela a facção política, econômica, religiosa, ou ainda, criminosa como forma de poder sobre ele que o considera um incômodo a ser acomodado, a se tornar cômodo, para o qual é preparado pela família um cômodo como lugar à parte desde que se percebe sua concepção, para que, nele, o filho fique acomodado e não incomode os pais, isto é, o prazer dos pais que mesmo tendo filhos negam a geração deles em proveito do prazer sexual. O que se se agrada o filho, seus ou de outros, é senão para que ele não incomode, para que ele faça parte da família sem nenhum incômodo, não seja a ovelha da família, mesmo já sendo isto desde que o prazer da concepção se torna a preocupação com ela.
Nada mais incômodo do que a geração de um filho neste momento, em outro momento, em qualquer momento da vida, passada, presente e, quiçá, futura. Neste sentido, diferente do que se pensa em relação a uma defesa da família não há família quando filhos são vistos como um incômodo antes, durante e depois do ato sexual, mesmo que se diga que eles são desejados. Pois se antes e durante o ato sexual eles são vistos como incômodo, se tornam um incômodo ainda mais quando começam a se desenvolver no útero materno, impedindo o prazer da mulher e também do homem no ato sexual. Depois que nascem são mais incômodos ainda com seus mijos, fezes e choros a qualquer momento sem conseguirem os filhos expressarem o incômodo que também sentem. E à medida em que crescem e, mesmo quando adultos, eles se tornam um incômodo ainda por impedirem muitos outros prazeres dos pais, no caso, de estudarem, trabalharem, viajarem, de se divertirem, de estarem juntos, de se separarem, de se juntarem novamente com alguém depois de separados, porque o filho não pode saber, até mesmo o incômodo para os pais morrerem em paz...
Por conseguinte, durante toda a vida o filho é um incômodo, um elefante que incomoda muita gente e dois elefantes incomodam muito mais, e três nem se fale, quanto mais múltiplos e pede-se logo para parar de cantar. Não se pode fazer nada por causa deles, dizem muitos pais, muitos deles defensores radicais de uma família tradicional a qual não existe como tradicional se não houver incômodos filhos. O que numa família moderna em contrapartida a situação dos filhos não melhora, pois o filho continua a ser um incômodo, de modo que a família moderna mais racional e radical não quer filhos e a racional e alternativa, para não ter o incômodo da concepção quando ela é possível, decide adotar um filho, mas que não seja, obviamente, um incômodo para si: seja pela idade, peso, cor de pele, cabelo, olhos, peso, sexo, número de irmãos (nenhum, de preferência), seja por sua história individual e nível de abandono, opressão, negligência familiar possível causadoras de incômodos futuros que não se quer adotar.
Se não se pode matar o filho tal como Laio mandou matar Édipo, eis que as formas de negação do filho foram matizadas por uma racionalidade que cada vez mais facilita a vida para os pais dando a eles a possibilidade de um filho que não seja um incômodo e a ciência tende a contribuir cada vez mais para isto. Pois diversas metodologias científicas foram criadas para solucionar o problema dos pais com os filhos, desde a mamadeira para substituir o seio materno, passando pelas fraldas descartáveis, até a escola em tempo integral com todos os aparatos físicos e tecnológicos e metodologias pedagógicas para que o filho não seja um incômodo para os pais também na escola, apenas para os professores que devem educar os filhos dos pais que não querem ser incomodados pelos filhos. E para além destas contribuições científicas, há também as construções a partir da ciência e tecnologia de produtos-mercadorias para o consumo capitalista que é uma grande ajuda com tudo que dispõe para os filhos não incomodarem os pais, desde os brinquedos infantis de todos os tipos a programas infantis na mais tenra idade até os jogos virtuais em videogames e computadores, além de filmes e séries em stream ou baixados da Internet, bem como as redes sociais e toda a Internet ao dispor dos filhos para que não sejam incômodos aos pais. E que, quando se tornam um incômodo por tudo isto também, é só tirar deles, porém, gerando o incômodo de cuidar deles, o que não é visto como útil e benéfico segundo a ética pragmática e utilitarista da sociedade capitalista atual cujo beneficio deve ser sempre o prazer individual, neste caso, o prazer dos pais para os quais deve contribuir o prazer do filho não sendo um incômodo.
Por sua vez, quando nada dá certo e o filho se torna um incômodo de tal forma problemático que a família, religião, escola, política de segurança pública, quartel, trabalho e todos os tipos de punições morais já não são solução, há sempre a ciência moderna da psicanálise para fazer o filho perceber o incômodo que ele é como um complexo de Édipo. Fazer o filho perceber a importância dos pais em sua vida por terem concebido eles, mesmo que ele não devesse ter nascido, devesse estar morto pelo ódio ao pai e amor incestuoso que ele deseja inconscientemente e se sentir culpado por tudo isto, de modo a ser agradecido pela vida mesmo assim que seus pais lhe deram, a família que tem ou que não tem, pois, afinal, família é família, não importa se tem ou não tem, ela é o que importa e não os filhos... E em nome da família, o filho deve se sentir culpado vendo-se como um incômodo para os pais, o que é científica e psicanaliticamente e moralmente bom, já que ele percebe que como Édipo é alguém que só traz tragédia e deve ele mesmo, no caso, evitar esta tragédia ao ser um bom filho negando seu inconsciente desejante de destruição da família ao ser um incômodo para os pais e perceber conscientemente que não deve incomodar seus pais seja de que modo for e, assim, poder existir um bem-estar familiar, uma família feliz sem o incômodo filho...
Diante de tudo isto, algumas questões que o incômodo filho coloca: por que o filho é visto como um incômodo para os pais e pelo qual os pais fazem tudo para justamente não serem incomodados pelos filhos? Por que é tão incômodo conviver com o filho, desejando estar com ele sem vê-lo como um incômodo a cada momento? Por que não se colocar ao dispor do filho não para fazer seus gostos, mas para perceber seus gostos, orientá-lo em seus gostos, fazer com ele o que gosta, sentir o cômodo de estar com ele sem querer vê-lo como um incômodo para suas vidas, atrapalhando-a em ser vivida? E por que veem o filho de tal modo incômodo, por negligenciarem eles como incômodos muitas vezes, ao ponto de precisarem de ajuda psicanalítica para dizerem aos filhos o quanto são incômodos aos pais que não querem ser incomodados por eles? Por que é que se defende tanto uma família, tradicional ou moderna, considera-se o filho uma graça divina, mas o filho é tratado como incômodo a tolher a cada momento a vida dos pais juntos ou separados no que querem fazer quando não é prejudicial a eles, algumas vezes, no caso, prejudicial à família que não quer ser incomodada pelo filho homossexual, problemático na escola, de comportamento e valores políticos e religiosos que não são os seus?
Eis que, enfim, o complexo de Édipo como incômodo filho é um grande problema para a família e sociedade tradicional e moderna, não por ser o filho um incômodo, mas pelos pais se incomodarem com os filhos constantemente e fazerem de sua própria vida um incômodo por causa dos filhos e culparem os filhos por causa disto, como Laio o fez. Trata-se do problema dos pais não saberem conviverem com seus filhos sem os verem como incômodos para suas vidas e fazem de tudo para não matá-los ou não serem mortos por eles de fato, por direito ou de vergonha. É o problema de Laio e de Jocasta veem Édipo como incômodo filho para o que são em poder como pais, reis e representantes de deus na terra.
Neste sentido, há hoje uma família e sociedade totalmente edipianizada, uma família e sociedade que antes mesmo do filho nascer prevê que ele é um incômodo, um problema que pais devem pensar quando desejam conceber um filho e mais ainda quando não desejam, pois este é um grande problema da família e sociedade atual o filho não ser desejado como filho, mas visto em relação aos prazeres dos pais como um incômodo filho, o que acontece não por os filhos serem de fato incômodos e impedirem os pais de fazerem o que desejam, mas pelos pais transformarem os filhos em incômodos para sua vida, negando seus próprios desejos por causa deles e os culpando por causa disto, criando uma nova geração de filhos incômodos, edipianizados para todo o sempre.
É preciso desepianizar os filhos, o que se deve fazer desedipianizando os pais em relação a eles, do contrário, todo um ciclo vicioso do Édipo e do incômodo filho se perpetua indefinidamente.
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