Os presentes da vida


Chega dezembro e as pessoas começam a pensar nos presentes de fim de ano, não apenas referentes ao Natal, mas também aos amigos secretos, amigos da onça, anjos doces e outras confraternizações de amigos e, por fim, o presente do tempo no ano novo que se anuncia e, com ele, muitos outros presentes da vida.

A busca por presentes é uma constante nos fins de anos e tudo muda quando se começa a pensar neles. Há uma variação de humor que vai da maior alegria por pensar em que presente comprar à maior raiva por ter que comprar um presente, por toda a correria da busca deles e de críticas à necessidade de se comprar presente e ao estímulo consumista na sociedade capitalista que faz muitos, esquecer a importância dos momentos de confraternização, principalmente o Natal. Há também a angústia que isto causa em muitas pessoas por não saberem o que comprar, sobretudo, de não ter como presentear alguém porque não tem dinheiro para comprar o que ela quer, no caso de uma criança, e que pode ser uma simples boneca ou carrinho de plástico. Ou então, a angústia de não ter quem presentear, pois vive-se uma solidão profunda que é melhor esquecer as festas de fim de ano e os presentes a serem comprados e ficar com as maratonas de séries em série ou alguma bebida alcoólica para passar logo este momento de encontro consigo mesmo que as festas de fim de ano fazem ter de modo angustiante para muitos.

Não importam os humores que os presentes despertem nas pessoas, o que eles carregam em si é muito mais do que um valor de mercado ou interesse econômico político, algo que a própria economia política capitalista faz esquecer atualmente, mas que é esquecido há bastante tempo segundo Heidegger, no caso, o esquecimento do ser cuja presença o ser humano enquanto ente está sempre a lembrar a cada presente de seu ser-aí, isto é, de seu ser-no-tempo, sua existência cotidiana. Um esquecimento do ser que é um esquecimento de si mesmo, da sua presença no tempo, bem como dos outros, daquilo que é essencial para sua existência. Um esquecimento que não é tão involuntário quanto se pensa, pois é produzido por muitas preocupações banais com a existência no cotidiano como comer, beber, transar, além de outras mais importantes envolvendo o trabalho, a economia e a política. Todavia, um esquecimento do ser que não por menos os presentes de fim de ano fazem lembrar, quando se pensa no ser além do presente dado ou recebido, no caso, o ser que presenteia ou recebe o presente.

Ao se perguntar simplesmente o que é que alguém gosta ao se comprar o presente para ela, coloca-se deste modo a questão do ser, daquilo que a pessoa é para além de seu ser presente no tempo como ser-aí, ou aqui, ou ali, visto a todo instante em casa, na escola, na faculdade, no trabalho, alguém que se está acostumado a ver, mas simplesmente não se sabe quem é, o que tal pergunta é o que angustia na hora da compra do presente. Pois, mesmo convivendo com uma pessoa durante um ano, ou muitos anos, a tarefa de comprar o presente para alguém é sempre angustiante porque não se saber quem ela é em si mesma ao se diferir da que cotidianamente se vê, mesmo com a convivência mais íntima com ela em sua cama, uma, duas ou três vezes na semana dependendo do quanto se veem ou durante toda a vida. E não raro acontecem os enganos de presente nesta busca de saber quem é a pessoa escolhida como amigo secreto, por exemplo, pois mesmo que se leia no papel o nome da pessoa que escolheu, quem ela é permanece uma incógnita ao ponto de que se ela vai gostar ou não do presente depende de cada circunstância e talvez o presente mais simples, como uma caneca com uma frase carinhosa a faça imensamente feliz.

Por mais que se possa querer antecipar a felicidade de alguém ao receber um presente, isto também é uma incógnita, seja por não se saber quem ela é para além do seu cotidiano, seja pelo tempo mesmo em que vai receber o presente, pois o ser é no tempo e o tempo define a existência humana, para o bem e para o mal. Para o bem, no sentido de que é o que define a existência em sua vida cotidiana e para o mal porque devido a esta existência cotidiana se esquece senão quem se é e quem são os outros, a importância deles em si mesmos e em sua vida. Vive-se a correria do tempo cotidiano muitas vezes ao lado de pessoas e não se pára para prestar atenção em sua presença, esta presença que se reflete em seus olhos como janelas da alma e que muitos recusam a perscrutar porque são seres no tempo, preocupados com o tempo, um tempo capitalista que faz oscilar entre a compra e a venda, ora consumindo produtos, ora fabricando produtos, no qual as pessoas se perdem na produção da vida material e seu processo de coisificação da vida.

Sempre se vive no presente em qualquer período da história, mas no último século isso se intensificou bastante na vida cotidiana e a valorização dos presentes nas festas de fim de ano são também um reflexo disto, de uma busca do presente que é a característica da modernidade. Antes, como se costuma dizer, havia uma busca maior da presença, do estar-junto de alguém, do ser alguém, pois havia toda uma identidade com o passado a partir do qual o ser já estava predeterminado de algum modo, ainda que também esquecido, todavia, presente ali a qualquer momento, sem maiores angústias, a não ser com o conflito de gerações, quando se busca esquecer o ser no tempo, no caso, no seu passado. De qualquer maneira, mesmo se esquecendo do ser, ou se desejando isto, ainda se sabia o que era, quem era quem, pois toda uma tradição determinava claramente isto e o presente era apenas uma repetição do passado como no tradicional provérbio filho de peixe, peixinho é. Em outras palavras, havia mais preocupação com o passado do ser do que com o presente do ser ao ponto de não se perceber qualquer diferença do ser no tempo, ao mesmo tempo passado e presente, tal qual nas lojas atualmente em se expõem roupas para pais e filhos idênticas, sem qualquer diferença entre elas e eles, pois é o mesmo ser que se repete ou se quer que se repita constantemente sem qualquer diferença, esquecendo mesmo a diferença entre pais e filhos, ou ainda, entre ser e ente, o ser passado e o ser presente que não necessariamente é o mesmo em sua história.

Todavia, assim como não dá para esquecer a diferença entre pais e filhos, por mais semelhanças que existam entre eles, tão pouco se consegue esquecer a diferença entre ser e ente, entre esta presença do que ser no tempo e do ser presente em seu tempo, que é a diferença entre o ser que se vê e vê o outro em seu cotidiano no tempo presente e o seu ser em sua essência, em um lugar recôndito e imperscrutável até a si mesmo ao qual se busca saber quem é ao comprar um presente para ele ou para si mesmo, por não se conhecer a si mesmo muitas vezes. Se não é possível conhecer o ser de alguém e o próprio ser assim esquecido no cotidiano através dos presentes, todavia, busca-se a cada vez chegar mais perto dele e de si mesmo. E a busca por um presente para as festas de fim de ano revelam pouco a pouco o próprio ser e o ser dos outros, mais ainda, revelam que não se pode esquecer o ser si mesmo e o ser do outro, quem se é e quem eles são em suas diferenças e que se agradar alguém é difícil é porque há uma diferença intransponível entre o que se é e o que são os outros que não pode ser também esquecida nas festas de fim de ano e no ano novo que se anuncia.

A cada presente que se compra para alguém e para si mesmo é algo mais que vem junto deste modo, é todo um ser que busca afetos de alegria no outro, com o outro e consigo mesmo, motivado pelo presente, mas que não se limita a ele. Pois junto aos presentes há frases afetuosas que não se diz todo dia a alguém, há carinhos que não se manifestam muitas vezes em público, há desejos de uma vida que somente se realizam neste momento, como no Natal, assim como promessas que somente se fazem no ano novo e se realizam muitas vezes em si mesmas, pois nunca são cumpridas na medida em que se esquece a cada ano do ser na existência cotidiana, isto é, esquece-se de si mesmo e dos outros. Ao mesmo tempo que pode ser lembrado a qualquer momento em que se busque olhar para si mesmo ou para os outros, preocupando-se com aquilo que é mais importante na vida, em geral, ela mesma, o ser-no-mundo, algo que não pertence ao ente humano que somente a vive o tempo que é permitido a ele viver em sua mortalidade.

Se se busca presentes neste momento para as festas de fim de ano, muitas vezes tão antecipadamente, aproveitando alguma promoção na Black Friday da vida, é algo muito além que se busca, no caso, o ser esquecido no tempo em meio aos presentes do tempo cotidiano. Ser que está em si, no outro, ou ainda, nas coisas que se compra e no presentear o outro com a sua presença, em ser-com-o-outro não de modo idêntico, mas em diferença partilhando uma mesma existência. Este ser que é esquecido por uma economia política capitalista atual que impede a cada dia as pessoas estarem na presença de alguém contemplando-se na mais sublime con-vivência.

Contemplar a presença do ser que se é e dos outros numa con-vivência, eis o que o lembram os presentes de fim de ano, do qual não se pode esquecer, pois os presentes lembram de viver com quem é amado por si e se quer viver ao lado cada dia até que a morte os separe e os junte, quiçá, em outra vida, lembra os presentes da vida em cada momento do tempo junto de alguém.

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