A.P. Filo
Se Chidi representa uma sutil ironia ao professor universitário em sua profundidade acadêmica que busca a filosofia com toda sua altivez como se a sabedoria fosse o último objetivo dela, mesmo que não consiga ensiná-la a ninguém, e se Merlà é uma ironia declarada aos professores de ensino médio em seu total distanciamento dos estudantes tratando-os como se não soubessem nada e tão pouco quisessem aprender, inclusive professores de filosofia que pensam que a filosofia somente se faz verdadeiramente na academia, Jack não busca nada disso, pois seu objetivo secreto é acabar mentalmente com Miles Leonard, o professor que tomou seu lugar de diretor do curso de Filosofia em Stanford, além de transar com todas as garotas da Califórnia por ter sido professor de filosofia de Harvard.
Se a filosofia até meados do século XX foi, em sua última manifestação metafÃsica, a busca do sentido do ser com Heidegger buscando resgatar o ser em sua origem num logos e numa verdade (alétheia) grega antes de toda esta busca de sentido, ser, logos e verdade ser sucumbida pela era da pós-verdade, a série A.P. Bio é a melhor crÃtica tanto a esta busca metafÃsica ou teontológica heideggereana como também à era de uma pós-verdade e o primeiro episódio intitulado Fakes já demonstra claramente isto. Sem a menor preocupação em ensinar biologia e tão pouco filosofia, Jack é um professor de A.P. Filosofia, ou filosofia avançada, que demonstra como a filosofia é mais do que uma sabedoria encastelada na academia e em suas profundas preocupações metafÃsicas ou um saber que dá sentido à vida sem sentido de estudantes problemáticos, pois é também filosofia prática cujo sentido está em fazer o bem para si do modo mais egoÃsta possÃvel como é o caso de Jack. O que, com isto, ele ensina ironicamente aquilo que é mais importante numa filosofia avançada, a crÃtica a si mesmo, e a possibilidade de ir além do seu egoÃsmo se preocupando com os outros, pois é diante da total ausência de sentido na busca de si mesmo na sociedade atual de uma pós-verdade que esta série demonstra que a busca de sentido na filosofia é totalmente vazia e niilista se não tiver como preocupação os outros, não dando um sentido à vida deles, mas fazendo-os buscar por si mesmos um sentido em sua vida, seja lá qual for, até mesmo o mais bizarro de todos como o das missões que Jack cria para acabar com seu arqui-inimigo Miles.
De modo radical, Jack recusa ensinar qualquer coisa aos estudantes e a cada entrada em sala de aula, ele arremessa o fruto proibido (maçã) depois de mordido apenas uma vez sem acertar o lixo, e diz seu jargão clássico: Beleza, pessoal! Vamos começar como? Calando a boca! Uma tapa na cara de quem espera algum sentido a partir dele nesta série que se torna cada vez mais sem sentido a cada episódio, destruindo qualquer possibilidade de aprendizado com Jack que não sejam formas de destruir Miles que ele obriga seus estudantes a pensarem junto com ele para não tirarem 0 (zero), uma ameaça que deixa claro desde a primeira aula e que todos os estudantes aceitam. Mas por quê? Como aceitar um professor autoritário deste modo que se recusa a dar aula de biologia avançada e que está ali simplesmente porque a escola quer fazer fama por ter um professor de Harvard?
Como diz Miles, o arqui-inimigo de Jack, em seu livro best-seller de filosofia pop, bem ao estilo Heidegger para principiantes, "A pergunta é a resposta". Isto porque em cada episódio é uma crÃtica mordaz que se faz a todos aqueles que querem ser melhor do que outros numa sociedade onde vencer o inimigo é o que importa e que Jack encarna em si mesmo em sua busca de retomar o cargo de diretor no curso de Filosofia de Stanford destruindo Miles. Neste sentido, se os estudantes concordam em não aprender nada de biologia e aceitar todas as grosserias e planos mirabolantes de Jack é tanto por medo de tirarem 0 como, principalmente, por quererem tirar 10 nas aulas de biologia avançada se não contarem nada para ninguém e ajudarem Jack com seus planos. O que é diante deste contrato social tão pouco rousseauniano e de regras de convivência escolar que se inicia esta série que é a mais non sense e irônica de filosofia e de professores já vista, totalmente antipedagógica quanto ao sentido pedagógico tradicional, pois não é uma autoridade do saber que ela busca, mas o contrário, fazer toda a crÃtica desta autoridade seja nas escolas de ensino médio, seja na universidade, ou ainda, na sociedade em geral.
Todavia, não nos enganemos, ainda é uma série de filosofia e ainda é um professor de filosofia que está presente nela e por mais ilógico e paradoxal que ele seja, há em cada episódio uma filosofia avançada, muito avançada para os padrões convencionais, e é no que ela nos faz avançar que devemos nos deter em cada breve episódio indo além do seu non sense e perceber como a filosofia é e sempre será em seu melhor estilo uma desconstrução de valores, para falar como Derrida, ou uma máquina de guerra, para falar como Deleuze e Guattari, ou ainda, um crepúsculo dos Ãdolos, para falar como Nietzsche, ou mesmo uma mutuca zombeteira a perturbar o sono dos outros para falar como Sócrates.
Se há um avanço na filosofia nesta série é questionar os valores sociais atuais em que estudantes preferem não aprender e tirar 10 para serem melhores que outros sem nenhum conhecimento, pais que não se preocupam com o aprendizado de seus filhos desde que eles entrem em Harvard, em que professores se preocupam apenas com status acadêmicos, diretores que não se importam em ter um professor de filosofia dando aula de Biologia Avançada só porque ele é de uma universidade prestigiada e pode melhorar a imagem da escola, filósofos que escrevem filosofia de auto-ajuda só para se tornarem pop, todos em uma total má-fé sartreana no sentido do auto-engano como fakes em seu ser.
É uma sociedade profundamente falsa em seus valores, por sua vez, a que é denunciada em cada um dos episódios de A.P. Bio da forma mais irônica possÃvel e a cada episódio não por menos acontecendo um avanço em cada um dos personagens que se tornam um pouco melhores do que eram por deixarem de ser falsos consigo mesmos e buscarem algo verdadeiro em sua vida, mesmo que seja algo tão egoÃsta como o que queriam antes, mas com uma diferença. Agora, eles sabem o que verdadeiramente querem em suas vidas e que é destruir todos aqueles que os subjugam com seus valores negativos como fica claro no último episódio da 1ª temporada, que é a maior crÃtica que se pode fazer hoje à sociedade. Por um lado, quando busca resgatar um sentido tradicional de valores querendo impor padrões culturais a todos de modo homogêneo e que vê como inimigos da moral e dos bons costumes todos aqueles que questionam seus valores familiares, não por serem bons, mas por serem os únicos que conhecem e que querem que todos aceitem como bons. Pois o que Jack faz com seus estudantes é o que toda uma polÃtica moralista religiosa questiona atualmente, no caso, no pensamento deles, transformar estudantes em militantes de uma causa contra os valores tradicionais e, neste sentido, Jack é o exemplo mais exemplar de crÃtica que esta polÃtica faz aos professores, principalmente de filosofia, mas também o exemplo mais exemplar da maior crÃtica filosófica a esta polÃtica moralista religiosa. E, por outro lado, uma crÃtica à sociedade quando transforma o conhecimento numa mercadoria e num status sem qualquer importância, pois o que importa não é o conhecimento, mas o que se pode conseguir com ele de modo pragmático o que, neste sentido, é contra todo o pragmatismo filosófico americano que se impõe no mundo atualmente que esta série se impõe demonstrando a que ponto leva este pragmatismo quando tudo já não faz mais sentido algum, o ser, o logos, a verdade.
CrÃtica mordaz à uma busca elevada de sentido e de seu outro extremo como negação total desta busca, a série A.P. Bio pode muito bem se chamar A.P. Filo, pois consegue ir além das séries de filosofia e professores de filosofia já produzidas e se não pode ser comparada com elas não é por ser melhor, mas porque demonstra que o professor de filosofia é muito mais do que o rostinho bonito de Jack, já que há muito que se aprender com ele mesmo que nunca ensine nada a ninguém, nem queira ensinar, como um filósofo grego morto há muito tempo que fez da filosofia uma ironia do saber, mais do que um amor ao saber, e não por menos ensinou que não se pode avançar na filosofia sem admitir que nada sabe e não se é melhor do que ninguém sendo filósofo, por mais que se diga o contrário, pois sabia que quando o filósofo diz que sabe mais do que alguém, seu destino é a morte, já que haverá sempre alguém querendo ser melhor do que ele e fazendo o possÃvel para conseguir isto, tomando seu lugar, como Jack em relação a Miles, ou Miles em relação a Jack, numa dialética que finda por destruir a todos e fazer tudo parecer sem sentido como é a época atual de uma pós-verdade na qual até mesmo a filosofia faz questão de entrar de pés e cabeça buscando resgatar um sentido para si mesma competindo com outros sentidos, mesmo que isto já não faça mais sentido nenhum, esta a grande ironia de A.P. Bio.
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