O ano da différance
Muitas pessoas querem uma vida tranquila, sempre a mesma em seu cotidiano, sólida e sedentária, estática, mesmo a vida sendo líquida desde o princípio e não somente a partir da modernidade, como diz Bauman, pois ela muda, sempre muda e, sempre muda, está em constante mudança como um rio em seu burburinho dissonante, como disse Heráclito, e é sempre um Kháos a diferir-se constantemente, fazendo-a outra a partir de si mesma, partindo-se e em seu partir-se produzindo uma vida diferente a si, um ser diferente ao si, produzindo uma diferença em si mesma a partir de sua différance.
Em geral, por conta dessa mudança constante da vida, as pessoas querem uma vida segura, sem sobressaltos, sem diferença alguma no cotidiano. Querem acordar, comer, trabalhar, se divertir um pouco, voltar para a casa, comer e dormir e fazer tudo de novo no outro dia que é também o mesmo em cada dia do seu cotidiano e nada exemplifica melhor o eterno retorno de Nietzsche do que o cotidiano, seja ele qual for em sua intempestividade. Pois apesar de se pensar que o que se faz no cotidiano é sempre o mesmo, há sempre diferença a cada instante do cotidiano, de um dia a outro dele desde que se perceba a diferença de cada instante e cada dia dele e se afirme a diferença de cada dia ao se viver a diferença da vida a cada dia nele de modo dionisíaco, mesmo sem embriaguez, contra todo o tédio do que se faz a cada dia de forma apolínea. E fazer perceber esta diferença da vida a cada instante e a cada dia se afirmando perante todo o sofrimento do mundo que Schopenhauer lhe ensinou é o grande ensinamento da filosofia de Nietzsche que não se pode esquecer no cotidiano.
Esta vida em segurança que nunca muda, esta vida que quer ter uma identidade na qual constantemente se afirma como um eu, ego, superego diante de tudo na vida em constante diferir em si mesma produzindo algo novo, esta vida idêntica que exclui, nega, opõe-se a toda e qualquer diferença é o que leva muitas pessoas ao desespero quando perdem uma vida segura e percebem que a vida não é a ficção de tranquilidade que fazem dela, muitas vezes acreditando que algo vai mudar sem perceber que a mudança já está em si. Estão sempre a esperar que alguém, em geral, um homem, o pai, o professor, o militar, o médico, o religioso, o ator, o presidente, deus produzam uma mudança em suas vidas quando a todo instante na afirmação de si mesmas em uma identidade excluem, negam e se opõem a isto constantemente. Vivem a esperança de uma mudança em suas vidas sem perceberem que a vida já está em mudança desde quando nasceram e que seu nascimento é uma mudança da vida literalmente, é o diferir da vida produzindo-se de novo, novamente, em si e a partir de si, e que há de mudar, mudará com o tempo, de lugar, terá novas experiências, enquanto viver sem que seja preciso fazer muito por isto a não ser evitar as mudanças.
E como a vida difere a partir do nascimento! Quantas mudanças acontecem na vida desde a origem dela ao nascer! E nada se pode fazer a não ser mudar com a vida não deixando que morra, definhe parada num mesmo lugar, numa cama, casa, corpo, ou num instante, dia, mês, ano, século do tempo, num lugar e tempo que já passaram, que está na memória e não vai voltar senão na lembrança, já diferido, diferente.
A Terra na qual todos anseiam encontrar uma segurança para a vida nunca foi segura, nunca será segura, pois está em giro constante em torno de si, do sol e girando em torno de si a lua que a muda a cada dia em sua rotação. Esta segurança na terra é uma ilusão que se produz facilmente por não se sentir girando nela devido a toda uma gravidade que a engravida de seres a cada dia e a cada dia os tem perto de si, sempre perto de si, como boa mãe que é a lhe dar o sustento e o chão firme da realidade. Mas a Terra é também prodigiosa quando quer a produzir solavancos e irrupções, secas e tempestades, tufões para dizer que não é a calmaria de um chão em que se pisa como quer e que se deve sempre pisar com cuidado nela para não lhe fazer sofrer se não quiser sofrer por ela também.
Mudanças na vida são vistas deste modo como algo que trazem insegurança para as pessoas e, algumas vezes, muito mais do que se quer, por colocar a vida em risco realmente e não apenas por se querer ter a mesma vida numa calmaria tediosa. Cada diferir da vida é motivo de uma insegurança porque não se sabe o que há por vir, não se consegue compreender o que está diferindo, não se possui um significado ainda do que difere, tão pouco se consegue prever o que difere a não ser de modo problemático, perigoso, temeroso e horrível dependendo do que difere e da diferença que se produz, podendo ser a mesma que já se viveu de modo traumático. Neste sentido, cada diferir da vida é um motivo de preocupação na medida em que há uma diferença, pois esta coloca em questão uma mudança no que cada pessoa é em sua aparência e principalmente em sua essência, e por querem ser sempre as mesmas, idênticas e a mesma identidade, terem sempre a mesma vida, mesma roupa, mesmo modo de falar, mesmos amigos, mesmo trabalho, mesma casa, mesma companhia, mesmo cotidiano, a preocupação se torna, por vezes, em um mal. Grita-se, ofende-se, humilha-se, oprime-se, violenta-se, mata-se aquele que produz qualquer diferença em sua vida e se faz isto não apenas a ele, mas a si mesmo, produzindo cada vez mais sofrimento a si com isto, pois produz em si mesmo uma contradição, uma contradição à vida, sofrendo constantemente a cada diferença dela independente dos outros, da diferença que os outros produzem em sua vida simplesmente sendo outros, diferentes do que se quer que eles sejam.
Como muitos não conseguem mudar nem os outros e nem a si mesmos, isto é, impedir que a vida mesma mude a cada diferir, há apelos e lamentos de segurança a quem as pode dar e ressentimentos por suas dores e tristezas infinitas vivendo a amargura no espaço e tempo de uma vida que se quer sempre a mesma. Vive-se a mesma história num cotidiano de lamúrias sem se escrever outra história, sem pensar numa escritura diferente da história, da vida, para além do que se conhece a partir das escrituras há muito escritas de uma história que há muito já diferiu no espaço e tempo em sua vida. E que já não se pode viver mais sem perceber a diferença dos dias, dos anos, dos séculos, dos milênios que já se foram e não serão mais como foram, mesmo que se force constantemente que sejam, pois o diferir não cessará de se fazer na história a partir de uma différance que se produz nela sempre.
"É preciso mudar! É necessário haver uma mudança! Temos que mudar! Vamos fazer a diferença!" Nada mais sem sentido do que estas palavras de ordem que não buscam uma mudança, mas apenas uma diferença que lhes dê segurança na vida, algo novo que as faça viver o que querem viver, mas não conseguem viver, pois são covardes para fazerem isto. A segurança que buscam numa vida diferente é a covardia de uma vida, de aceitar as mudanças na vidas, é a segurança que se produz como uma força totalmente contrária à vida ao buscar a paz perpétua da morte com suas armas e línguas ferinas que buscam ferir o outro e a si mesmas em vez de aceitar o diferir do outro em relação a si mesmas, aceitar um diferir de afetos em si produzido pelo outro e por si mesmas a si mesmas.
Não é preciso mudar, não há necessidade de mudar, não se tem que mudar, fazer a diferença, pois isto acontece a todo instante e a diferença e a mudança não são aquilo que se busca por uma ordem qualquer, como uma ordem, com a imposição de uma ordem, o imperativo categórico de uma razão, a exigência de uma consciência. O que é preciso, necessário, tem que se fazer é perceber a mudança, o diferir que acontece, a insegurança que ele traz e compreender que a vida não é tão segura quanto se pensa e não há nenhuma segurança possível e que se deve constantemente proteger a vida, a sua, a do outro, de todos os seres, o que importa na vida.
Proteger a vida não é buscar a segurança fictícia de uma identidade ou diferença qualquer de vida que nunca se vai ter dela nem mesmo com armas, mas buscar tudo aquilo que protege a vida e a mantém viva em seu corpo e mente. Proteger a vida não é viver a vida como num filme de ficção de faroeste em que se vive constantemente o matar ou morrer, o medo da violência e da morte no corpo e na mente fazendo da proteção da vida uma paranoia de segurança. Proteger a vida é segurar na mão de alguém e não soltar atravessando a rua, não soltar porque a ama, porque apesar dos afetos diferentes que ela produz em si, do diferir dela em relação a si, você não solta a mão dela e de ninguém quando simplesmente quer o bem de outra pessoa e sua mão está sempre disposta a protegê-la sem fazer o mal, buscando o bem dela em sua diferença como de si em sua diferença em relação à ela.
Contra o tédio e todas as ameaças de violência e morte da diferença, de uma vida diferente, de um diferir da vida no cotidiano a partir de uma busca de segurança e identidade querendo que a vida seja sempre a mesma é que a vida difere, está em constante diferir, há uma constante différance dela, um kháos a produzi-la a partir de si e viver este diferir caótico da vida a cada dia, mês, ano, década, século e milênio em sua história seguindo o rio heraclitiano em todas as suas tortuosidades e sentindo a Terra a girar sob os pés em sua prodigiosidade ao mesmo tempo que dá proteção com sua firmeza, é viver a vida em toda sua différance, ou ainda, no a-partamento que nela se anuncia.
P.S. Este texto é uma homenagem tardia aos 50 anos do texto "La différance" de Jacques Derrida, proferido em conferência em 27 de janeiro de 1968, e às mudanças que ele produziu em sua vida e não por menos na minha.
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