O animal que logo ele é

Seu veado, macaco, porco, rato, cachorro, burro, jumento! Sua galinha! O que acontece quando chamamos os outros seres humanos de animais? O que acontece quando significamos outro ser humano como animal? O que quer dizer deixar de nos referirmos ao outro como ser humano para nos referirmos a ele como um animal?

Desde Aristóteles, particularmente, e os gregos antigos, a fala é o que define o ser humano e o diferencia da besta, isto é, o animal, ou ainda, o pior dos animais e, ao mesmo tempo, diferencia o ser humano dos deuses. É na fala que existe deste modo a essência humana que é, para ele, a razão, isto é, a capacidade de pensar que é expressa na fala enquanto expressão propriamente dita de um pensamento, no caso, como logos ou discurso, em contrapartida o pensamento tendo na fala sua expressão propriamente dita. O que, neste caso, estabelece-se um círculo vicioso, mas também perfeito de modo lógico, entre o pensamento e a fala, esta como expressão propriamente dita daquele que a considera como expressão propriamente dita dele, e, deste modo, há uma identidade entre o pensamento e a fala há muito tempo. Uma identidade chamada de metafísica na filosofia que é um logocentrismo, como diz Derrida, ao se estabelecer uma relação de igualdade em sua totalidade, de modo absoluto, entre duas coisas diferentes, que diferem entre si, no caso, o pensamento e a fala, que são vistas como iguais, idênticas, um único ser.

Eis o quão complexo, por sua vez, é o falar humano que o diferencia dos animais e dos deuses. Nenhum animal consegue pressupor tal diferir de si mesmo por sua fala, tão pouco pode-se imaginar deus necessitando deste diferir se se tomar como ponto de partida sua simplicidade onisciente que conhece tudo imediatamente sem necessidade de qualquer meio para isto, sem ser necessária uma fala ou linguagem para expressar o que é tudo para ele e ele mesmo para tudo, já que tudo advém de si em sua simplicidade e já que tudo é ele em sua simplicidade em cada ser. A fala não é somente aquilo que difere o ser humano dos animais e deuses, é principalmente aquilo que define o ser humano a partir deste diferir, o que faz ele ser quem ele é, o que dá a ele um sentido, um significado, o que dá a ele uma essência, uma identidade, um ser no mundo.

O que acontece quando se retira a fala do ser humano parece óbvio. O ser humano deixa de existir, não porque ele morra, mas porque sua existência deixa de ter tudo isto que a fala pressupõe nele, a começar pelo que o difere em relação aos animais e deuses. Como ele não se torna deus simplesmente por deixar de falar, é um animal que se torna em seus grunhidos, rosnados, uivos, bramidos, bem como gestos de todos os tipos quando não consegue falar. Se isto ainda é um querer dizer alguma coisa e ser possível uma comunicação entre os seres humanos assim animalizados por não terem fala, todavia, esta tentativa não expressa aquilo que é propriamente humano desde Aristóteles e os gregos antigos, isto é, a fala com todos os seus signos e significados ou com seu signo e multiplicidade de significados, ou ainda, com sua multiplicidade de significados sem constituir um único signo em seu sentido, interpretados conforme o contexto de modo anárquico.

Na medida em que a fala define o ser humano, quando é retirada dele, ele deixa de ser humano porque ele deixa de se expressar como ser humano e passa a se expressar como um animal já que se expressar como deus não é possível por sua própria constituição, mas também por não se saber mesmo como deus se expressa a não ser por uma aproximação dionisíaca ou mística vendo na fala embriagada ou cheia de mistérios e enigmas a fala dos deuses, de ambos os modos incomunicável ou, porque, intraduzível. Por fim, porque sem fala o ser humano emudece como os animais e não fala nem mesmo a língua embriagada ou cheia de mistérios e enigmas dos deuses, ou ainda, uma língua de sinais nos quais o ser humano fala uma língua muda, mas ainda assim fala, se concebe uma fala nele, pressupõe uma fala nele porque se percebe um pensamento, um logos.

Sabemos que foi um longo e difícil período histórico evolutivo que fez o ser humano falar tal como fala atualmente em cada uma de suas línguas e que muitas vezes durante todo este período ele silenciou, foi silenciado, impedido mesmo de falar pelo medo, por armas, pela morte antecipada tanto num como na outra. Mas também silenciado pela fala dos outros que se impõem a ele de modo abrupto, vociferantes, impondo-se em sua voz e através dela silenciando ao ponto de não falar mais como ser humano, tão pouco como animal ou deus em embriaguez, mistério e enigmas, ainda que parecesse um e quisesse ser um, mas como um esquizofrênico, preso num silêncio atroz em que a fala silencia a si mesma ao falar. Todavia, mesmo silenciado ele ainda podia falar e mesmo na fala esquizofrênica ainda se vê presente na fala um ser humano, o que não acontece quando o ser humano é silenciado, totalmente silenciado ao ser transformado pela fala de outro em um animal.

Se o ser humano se expressa pela fala, ainda que silenciosamente e esquizofrenicamente no seu limite, na medida em que a fala não expressa mais um ser humano, e, sim, um animal, ela deixa de ser fala e aquele que fala passa a ser um animal. Não é uma ofensa neste caso que simplesmente se coloca em questão quando alguém chama outra pessoa por um animal, mas o que acontece quando se ofende o outro como um animal que é o tornar-se não o outro um animal, pois é o ser humano que fala do outro como um animal que se torna um animal, pois a fala deixa de ser sua expressão como ser humano em seu pensamento racional ou lógico para ser a indicação de que ele já não tem mais razão, perdeu totalmente a capacidade de raciocinar, já não há mais uma identidade entre o seu pensar e o falar, pensar e falar não sendo mais iguais, absolutamente idênticos. Isto porque a fala deixou de ser uma expressão do ser humano para ser a indicação de que o ser humano deixou de ser humano, deixou de usar sua capacidade de falar e passa agora a grunhir, rosnar, uivar, bramir nela uma animalidade, pois a fala perdeu o seu sentido, o seu ser, sua essência que não é indicar algo, mas expressar o que o ser humano pensa de algo, pensa do ser e, neste caso, do ser humano que o outro é, mas também ele.

Quando um ser humano olha, portanto, para outro ser humano e ver neste ser humano um animal, não foi o ser humano visto desta forma que se tornou um animal, pois a fala não tem este poder de tal transformação na realidade, foi o ser humano que fala deste modo que se tornou um animal, pois não reconhece mais um ser humano e olha para ele como um outro animal. Acontece deste modo o inverso que acontece costumeiramente quando os seres humanos olham para os outros animais e veem eles como seres humanos e se envergonham até de ficarem nus na frente deles, como dos gatos, por exemplo, e os tratam como seres humanos dando a eles não apenas nomes e comida, mas comida especializada, roupas, brinquedos, promovem concursos de belezas deles, fazem perfis em redes sociais para eles, deixando até mesmo toda sua herança para si, alguns animais até mesmo já tendo sido eleitos como representantes políticos e terem também direitos políticos como os seres humanos, sendo animais domésticos ou não. Todavia, assim como por qualquer nomeação, vestimenta, alimentação e domesticação de costumes e direitos o animal não se transforma em ser humano tão pouco o ser humano não se transforma em animal quando é chamado como um animal, todavia não se podendo dizer o mesmo de quem chama um ser humano de animal.

A diferença é que o animal tratado como ser humano não se torna ser humano porque não sabe falar o que quer, expressar a sua vontade por assim dizer, apenas indicá-la, e isto tão pouco é um demérito dele, pois ele não perdeu ou deixou de ter algo, ademais, é a constituição de seu ser, de sua essência, de sua identidade como animal não falar, apenas indicar. Porém, o ser humano que chama outro de animal se torna um animal justamente porque agora sua fala apenas indica algo e a vontade nela expressa se é ainda a dele como ser humano é a expressão de um ser humano tornando-se animal, animalizando-se, tornando-se muitas vezes um animal feroz, ou ainda, o pior de todos os animais, uma besta. Neste caso, há uma perda do sentido do ser humano, de fato e de direito, quando sua fala já não possui mais razão nenhuma e aquele que assim se expressa deve ser temido de um ponto de vista legal na medida em que o seu falar demonstra em si mesmo sua incapacidade de agir como ser humano a qualquer momento colocando em risco todos aqueles que ele chama de animal ou trata seres humanos como animais. Em casos limites, devendo ser mesmo atestado sua sanidade mental, pois o ser humano que ele  diante de si em seus olhos é visto agora por si mesmo como um animal, pensando que ele é um animal e isto é algo patológico que deve provir de alguma doença que não é simplesmente de vista, mas psíquica e deve ser diagnosticada.

Eis algo complexo e difícil de ser pensado atualmente, pois depende de uma mudança de perspectiva problemática. Pois o que vem a ser uma ofensa, uma injúria, uma difamação por conta de raça, sexualidade, gênero e condição individual e social ao se chamar alguém como animal como foi dito no início somente é uma ofensa na medida em que o animal é desvalorizado em si mesmo como animal, quando se considera o ser animal algo negativo. Isto é, na medida em que o animal não tem valor algum para o ser humano, ou ainda, cujo valor é um valor desprezível, que pode ser desprezado, violentado de todos os modos ou morto sem que sua vida tenha valor ou direito a ser valorizada. Em outras palavras, quando o animal não é o ser vivente em sua constituição material, orgânica, corporal e, sim, aquilo, a que é dado um valor e retirado mesmo dele este valor quando necessário, um valor que oscila no mercado de valores dele. O animal visto deste modo pelo ser humano não é propriamente um ser vivo, mas a indicação de algo que tem ou não tem valor para o ser humano e se se diz que o ser humano se torna um animal quando deixa de falar, é porque há senão esta perda de valor, porque isto passa a indicar uma perda de valor do ser humano e também do animal como ser vivo, o chamar outro ser humano de animal é aquilo que indica a desvalorização do ser humano, por um lado, que passa a ser tratado como um animal, todavia, não como um animal doméstico ou que se queira bem, ainda que selvagem, mas como uma besta intratável, o pior de todos os animais.

Não existe propriamente o animal vivente, neste caso, na fala humana de quem chama o outro de animal, pois a fala não indica um animal na realidade como um ser vivo exterior a si que ele teme em sua diferença ou o torna semelhante, e que seria até mesmo o ser humano como animal a se indicar deste modo em sua fala. Não existe o animal vivente, nem exterior ao ser humano nem como o próprio ser humano em sua fala porque esta deixa de ser uma fala humana que reconhece a diferença entre ser humano e animal, que estabelece esta diferença entre ser humano e animal, que não confunde o ser humano com o ser animal que é o acontece quando se indica um ser humano com um animal. Todos os seres humanos que indicam seres humanos como animais já perderam esta capacidade de diferenciar que é própria da fala quando se fala de tudo que existe e dá a tudo que existe um nome, um signo, uma palavra e por meio destas quer dizer algo que existe na realidade em sua frente, presente, em sua presença exterior ou interior a si mesmo. Não são seres humanos que chamam outros seres humanos de animais, são seres desumanizados ou desumanizando-se em sua fala, seres humanos que estão perdendo a capacidade de falar e se não é um demérito ser um animal, pois este tem o seu valor independente do mercado porque é um ser vivo, é um demérito perder a fala, pois se perde com ela toda a expressão do ser humano e a partir de si dos animais. É retirado com ela todo o valor do ser humano e dos animais, um valor que se constituiu histórica e evolutivamente enquanto qualidade do ser humano propriamente, isto é, algo importante para si, algo que é um bem para si e para todos os seres humanos.

Ao se tornar um animal por só saber indicar as coisas de modo confuso, chamando seres humanos de animais, o ser humano se animaliza, mas não como um animal que existe na realidade e, sim, como um animal que não existe na realidade e é o pior de todos os animais, pois é uma besta, o nível mais baixo do ser animal na taxonomia aristotélica. No caso, um monstro, não por sua fisionomia, mas por sua fala, pelo que se indica nela, por meio dela, que é toda a monstruosidade dele, algo a ser temido, extremamente temido, mais temido do que os monstros divinos, que existem de modo ideal na imaginação por associação de vários animais. Todavia, a besta enquanto monstro não é algo nem divino e nem humano, tão pouco um animal que possa ser visto na realidade por mais feroz que seja, pois é o resultado de toda uma irrealidade e irracionalidade que a fala indica em si mesma e, por isto, a besta deve ser temida como um mal, um mal radical, que já não faz parte da realidade senão de modo animalesco, de uma animalidade que não chega à nossa compreensão como um ser vivente, nem à nossa fala que não consegue compreender como alguém, um ser humano pode chamar outro ser humano de animal, confundir de tal modo seres diferentes, a não ser que seja uma besta.

Aquele que chama outro ser humano de animal, o animal que logo ele é, portanto, é uma besta, o pior de todos os animais porque o pior de todos os seres humanos que já não difere o ser humano de ser animal, por já não se poder diferir nele o ser humano do animal e ser deste modo monstruoso, de uma monstruosidade que nunca podemos imaginar como ideal porque é senão o contrário de toda idealidade como um mal, o mal radical, aquele que destrói todos os ideais dos seres vivos em sua fala e, senão, em suas ações a partir dela, pois é senão o que tem em vista.

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